CIÊNCIA & TECNOLOGIA
O desafio do comércio eletrônico
Por que não uma regra geral para esse mercado de logística? Isso não estimularia a competição, com proveito de toda a sociedade?
O debate polarizado no Brasil, e também no mundo, provoca vários efeitos nefastos. Um deles é reduzir a discussão, a disputa e a controvérsia, deixando de lado o diálogo racional e a busca do consenso. Outro efeito é afastar do debate pessoas que estão de saco cheio de lacração e cancelamentos.
O grave é que o Brasil necessita muito de toda a inteligência disponível para enfrentar as ameaças e para superar os enormes desafios que temos, sejam eles herança de problemas antigos e persistentes, ou novas adversidades, fruto de maus governos e da pandemia. Não há como identificar oportunidades e buscar soluções sem furar a bolha do radicalismo e começar a argumentar de maneira exploratória e construtiva.
Isso é ainda mais importante se considerarmos que estamos vivendo um período de disrupção social e econômica, fruto da evolução científica e tecnológica. Estamos vivendo uma revolução industrial onde a internet transformou-se na principal infraestrutura acarretando mudanças em todos os campos dos processos produtivos e na vida em sociedade.
O papel do Estado na produção de bens e serviços é um desses temas que eleva os ânimos. Antes de defender privatização ou estatização, é bom ter a prudência de olhar os detalhes, os números e buscar o melhor caminho para toda a sociedade. Fortalecer o bem comum, deveria ser o propósito.
Vamos examinar um caso importante. Uma das mudanças mais profundas e perceptíveis que estamos vivendo está no modo de vender e comprar. Durante o período da pandemia, quando a sociedade transformou seus hábitos, muitas pessoas passaram a adquirir vários tipos de bens pela internet.
Não foi somente no Brasil que o comércio eletrônico cresceu, abrindo oportunidades e desafiando a tradição da maneira de fazer comércio. Um mundo novo de possibilidades, mas também de desafios se abriu para todos.
Imaginem do lado de quem produz, as chances que se abrem para pequenos produtores industriais, para inovadores, para artistas, para produtores regionais, para artesãos e para todos os que produzem para nichos de mercado, espalhados em diferentes regiões. Esses podem chegar ao mercado com preços competitivos, por conta de custos fixos mais baixos, com a possibilidade de vender para áreas geográficas distantes e com um canal de vendas sempre aberto e à disposição de seus consumidores.
Para quem compra, as vantagens também são muitas, começando com preços mais baixos, com a possibilidade de comprar diretamente produtos importados, a conveniência de comprar e receber a encomenda sem sair de casa, a variedade de métodos de pagamento, a facilidade de encontrar o produto desejado, a possibilidade de comparar preços, o amplo horário de funcionamento, o acesso a opinião de outros compradores e a possibilidade de usufruir de um maior número de promoções e códigos de desconto, entre outras vantagens.
Há um sem número de desafios, é verdade, e esses precisam ser debatidos para que as evidências ajudem a encontrar os remédios para as dores identificadas. O certo é que o e-commerce chegou para ficar.
Durante a pandemia, o comercio eletrônico no Brasil cresceu mais de 47%, contra o mesmo semestre do ano anterior, alcançando um faturando superior a 38 bilhões de reais no primeiro semestre deste ano. Esse aumento está relacionado a um crescimento do volume de pedidos de 39% acima do mesmo período de 2019.
Entretanto, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento, Unctad, publicou estudo sobra a situação do e-commerce mundial em 2019, estudando 152 países, e o Brasil, uma das 10 maiores economias do planeta, ocupa apenas a 74ª posição. Estranho isso, não é mesmo?
Para entender essa situação, vale observar atentamente os números, anteriores a pandemia, de penetração relativa do comercio eletrônico de outros países continentais. Enquanto apenas 6% do nosso comércio é feito pela internet, nos Estados Unidos esse número é 12% e na China supera os 20%.
Para crescer nessa área, o Brasil vai precisar de uma estrutura logística bem mais parruda, que dê conta de um crescimento enorme do volume de pedidos e entregas de produtos.
Dados de 2018 mostram que os brasileiros compram pela internet o correspondente a 1 produto por habitante a cada dois anos, enquanto nos EUA são comercializados e entregues 30 pacotes por habitante a cada ano e na China cada habitante recebe, em média, 50 encomendas anuais. Mesmo em São Paulo, o nosso estado mais desenvolvido em comércio pela internet, os números são ainda desproporcionais ao mundo mais desenvolvido. Cada paulista encomenda, em média, 3,4 produtos por ano, pelas plataformas digitais.
Para entendermos essa enorme diferença, antes de buscarmos as causas, é bom conhecer os tempos médios de entrega de encomendas nos vários países comparados.
Enquanto no Brasil uma compra por internet leva, em média, 13 dias para ser entregue, melhorando para 6 dias no estado de São Paulo, nos EUA os consumidores recebem seus produtos em uma média de 2 dias e na China, país de considerável extensão territorial, os consumidores esperam, em média, 1 dia para receber suas encomendas.
A grande transportadora dos produtos comercializados pelas plataformas digitais no Brasil é a Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos (ECT), os nossos Correios. Existem outras operadoras, que concorrem com a ECT. A maior parte delas são pequenas empresas privadas, existem startups, muitas são brasileiras e poucas internacionais e algumas usam sofisticada base tecnológica.
Entretanto, todas essas empresas concorrentes trabalham em um ambiente de competitividade injusto, operando sob uma legislação que dá inúmeros e indevidos privilégios para a empresa estatal.
Os Correios têm, por exemplo, algumas exclusividades legais muito curiosas e certamente contrárias ao interesse da sociedade.
Somente a ECT pode transportar mercadorias sem notas fiscais, ao contrário de suas concorrentes. Os custos de obrigações acessórias que uma empresa tem para transportar um produto de um estado para outro é enorme, desestimulando a concorrência com a estatal. Imaginem um caminhão que tenha que atravessar 10 estados, com notas fiscais de entrada e saída em cada um, o tempo e o gasto que isto significa? Os Correios não têm esse problema.
Somente os Correios têm o privilégio legal para transportar produtos importados, com preços inferiores a 100 dólares, sem pagar imposto de importação. Se o importador, em geral uma pessoa comum, comprar um produto de pequeno valor no exterior e usar uma operadora mais ágil, terá que pagar o imposto, não exigido da lerda estatal.
Outras isenções tributárias também são exclusivas da ECT. Sendo uma empresa da União, ela tem também isenção de ICMS, não pagando esses impostos estaduais, enquanto as suas concorrentes pagam, como todo mundo.
Por que não uma regra geral para esse mercado de logística? Qualquer regra, desde que todos tenham que estar sob a mesma norma. Isso não estimularia a competição, com proveito de toda a sociedade?
Me pergunto, por que uma empresa que opera mal, tem incentivos fiscais injustos e resultados econômicos insuficientes – para ser elegante – tem que ocupar o centro de um mercado que parece ser estratégico para o desenvolvimento do país?
Alguns dizem que a ECT cumpre funções sociais que as outras não cumpririam. Quais são e por que não colocar tudo em cima da mesa?
Não chegou a hora de desarmar os espíritos, olhar para as evidências e debater racionalmente a respeito dos diagnósticos e das propostas para arrumar esse tema?