Judiciário
Branca de Neve, a bruxa e o Direito
O mundo nada encantado do feminino em uma perspectiva decolonial
O artigo que aqui apresentamos é resultado de um evento virtual realizado no ano de 2020, cujo objetivo foi o de fomentar reflexões críticas sobre os impactos dos contos infantis na construção da subjetividade feminina e no Direito. A obra “A Branca de neve e os sete anões”, datada de 1812 e escrita pelos Irmãos Grimm, foi o ponto de partida das discussões que realizamos naquela ocasião.
O famoso conto infantil narra a estória de uma jovem que fica órfã ao perder a sua mãe, passando a conviver com o seu pai e sua madrasta, uma mulher bonita e que de tão vaidosa a todo momento questiona a seu espelho se existe alguém mais bela do que ela.
Ao ser avisada pelo seu fiel escudeiro que havia perdido o seu lugar no pódio da beleza para a enteada Branca de Neve, a madrasta determina que o caçador dê fim à existência da menina. Ele, com pena da jovem, a liberta na floresta sem lhe retirar a vida.
Depois de muito vagar, Branca de Neve encontra a casa dos sete anões que, de pronto, a acolhem. Ocorre que o espelho não titubeia em informar à madrasta sobre o paradeiro da enteada.
Indignada, ela persiste no intuito de acabar com a vida daquela moça, a qual, após três tentativas, é envenenada por uma maçã que lhe coloca em sono profundo, interrompido apenas pelo beijo do príncipe que lhe proporciona “felicidade eterna”.
O que essa estória pueril tem a ver com a construção social do gênero? E mais, em que medida a construção social do gênero afeta temas e institutos jurídicos tradicionais?
Para que possamos responder essas perguntas, faz-se necessário que distingamos sexo biológico de gênero. Enquanto o primeiro consiste em uma classificação dada pelas ciências biomédicas que separam os indivíduos em macho e fêmea conforme, especialmente, a sua fisiologia, o segundo se relaciona à identidade do ser humano de modo a permitir que alguém seja considerado pertencente ao gênero feminino ou masculino.
Diante da variedade de critérios capazes de classificarem um sujeito como macho ou fêmea, observa-se que a escolha de um dos elementos definidores do sexo também revela uma esforço interpretativo, o que nos leva a concordar com Judith Butler quando expõe que o sexo é tão cultural quanto o gênero, isto é, ambos são construídos socialmente, ou seja, não são inatos, como querem nos convencer muitas vezes.
Importante se faz ressaltar que essas construções sociais ganham contornos específicos que fomentam a exploração e a desigualdade de gênero na medida em que se capilarizam, se produzem e reproduzem dentro de uma sociedade sexista, cujo padrão hegemônico de dominação é ditado por homens e com o objetivo de mantê-los em seu lugar histórico de poder e privilégio, em detrimento das mulheres que se veem inferiorizadas, objetificadas, muitas vezes como incapazes de realizarem determinadas atividades e dependentes do apoio masculino para concretizarem certos objetivos, os quais não devem se afastar do seu suposto instinto materno e da sua aparente maior habilidade para o cuidado.
Entendemos que a subjetividade feminina é forjada nessa conjuntura e que se faz notar em atos triviais desde o nascimento dos bebês como, por exemplo, na escolha das cores das roupas que vestirão. Essa subjetividade, inclusive, muitas vezes se apresenta antes mesmo disso, ainda nos “chás de revelação” que também separam meninos e meninas por cores.
Os brinquedos que são dados às meninas, os esportes que lhes são apresentados, os ensinamentos sobre seus corpos e cabelos e os conselhos que lhe são ofertados sobre o seu comportamento ideal (preferencialmente dócil, subserviente e servil) igualmente carregam traços que constroem o que designamos aqui por subjetividade feminina.
As narrativas que são contadas para as meninas, ficcionais ou não, alimentam o seu repertório e subjetividade e lhes informam que a sua vida será melhor ou pior conforme se aproxime ou se afaste dos modelos femininos ideais apresentados, tal como as princesas dos contos.
Se pararmos para analisar a estória infantil sobre a qual aqui nos debruçamos, de forma crítica e numa perspectiva de gênero, podemos tirar algumas conclusões:
i) o livro Branca de Neve, ignorando a diversidade feminina, reforça a construção do padrão “ideal” da mulher branca, magra, dócil e que encontra a sua felicidade no casamento;
ii) A madrasta é mulher refém da sua beleza física e que precisa do espelho (objeto masculino) para legitimar os seus dotes plásticos, o qual não só a escraviza, como também é responsável por plantar a semente da intriga entre ela e sua enteada. A vilã da estória se utiliza de três itens bastante simbólicos para envenenar a sua inimiga: o corpete que, literalmente, aprisiona a mulher em troca de um corpo esquálido; o pente, que se presta a domar os cabelos femininos; e, a maçã, que é, desde Adão e Eva, a corporificação do pecado e da sexualidade feminina;
iii) O príncipe, homem heterossexual, cisgênero, branco e abastado, embora sem qualquer protagonismo na estória, aparece no final do texto para salvar a princesa com um beijo que sequer foi consentido, diga-se de passagem; e
iv) Os sete anões parecem bonzinhos porém, na verdade, trocaram a acolhida da Branca de Neve por seus serviços domésticos não remunerados.
E é então que nos perguntamos: a arte imita a vida ou a vida imita a arte? Temos ou não, a partir desse texto, um cenário que acaba por conduzir as meninas a sonhar com um futuro similar a esse e a rotulá-lo como supostamente perfeito? Esse modelo de vida, concretamente, pode colocar mulheres em um lugar de subserviência? Você que nos lê aqui conhece alguma mulher que foi salva por um príncipe nessa vida real cotidiana? Beijos não consentidos salvam ou violentam corpos?
Ao que parece, a tentativa de incutir no imaginário coletivo a noção de que a mulher pode ser princesa (bela, recatada e do lar) ou bruxa (quando tentasse ser livre), desde que se comporte de acordo com características previamente fixadas pelos detentores de poder (leia-se o clero e a nobreza a partir do século XVI em diante) foi estratégia fundamental para a dominação das mulheres.
A relação entre a Branca de Neve e a madrasta/bruxa nos remete à análise feita por Silvia Federici em “Calibã e a Bruxa” e em “Mulheres e Caça às Bruxas”. Em tais obras, a autora aponta a origem da rivalidade entre as mulheres, instigada pelos homens, quando apresenta como a palavra “gossip” era interpretada no passado, como a sua deturpação foi incentivada ao longo do tempo pela sociedade sexista em que vivemos, e a forma de associação da figura das mulheres livres e subversivas com as bruxas, o que gerava e ainda gera incontáveis preconceitos.
Todas essas questões produzem o que Butler chama de problema de gênero, à medida que nos estereotipa e nos faz ignorar a nossa multiplicidade, a ponto de a autora afirmar que a construção social da identidade de gênero, a partir desses supostos padrões femininos, nos aprisiona, tal qual a classificação sexual.
Por essa razão é que ela propõe que nos questionemos sobre a nossa real e única identidade e subvertamos os papéis que nos foram impostos em busca dos nossos desejos mais genuínos. E o Direito em meio a isso tudo?
As produções vindas da arte, sejam contos infantis ou outras, como os filmes, a literatura adulta e a música, ao reproduzirem elementos do patriarcado se imbricam com o Direito em temas como a violência doméstica, cultura do estupro, exploração do trabalho doméstico remunerado e não remunerado, sexualização infantil, feminicídio e aborto. Um outro ponto de correlação com o Direito envolve a ideia da tributação dos produtos femininos, a chamada “Pink Tax”.
A beleza feminina apresentada, por exemplo, em algumas obras de audiovisual, os padrões estéticos naturalmente inatingíveis ali retratados, a magreza dos corpos, a pele perfeita e usualmente muito clara e os cabelos alinhados acabam impondo às mulheres um padrão cruel, artificial e buscado às custas de muitos tratamentos, procedimentos e produtos de beleza.
O que se construiu a partir de uma ótica patriarcal acerca da identidade do que é ser uma “mulher bonita” possui um preço e o preço dessa “beleza” é muito alto, tanto no que se refere ao custo financeiro propriamente, como também no tange às pressões psicológicas.
Não à toa, Silvia Federici expõe que olhar para o “corpo feminino é a chave para compreender as raízes do domínio masculino e da construção da identidade social feminina” (FEDERICI, 2017.p.31) e Naomi Wolf argumenta que “à medida que as mulheres se liberaram da mística feminina da domesticidade, o mito da beleza invadiu esse terreno perdido, expandindo-se enquanto a mística definhava, para assumir sua tarefa de controle social” (WOLF, 2020. p. 27).
Ou seja, o corpo feminino se tornou uma enorme fronteira de exploração das bases patriarcais submetendo as mulheres à busca constante de um ideário de beleza que é simplesmente inalcançável! Além da tormenta psicológica sobre o corpo, nós mulheres ainda somos mais impactadas economicamente em razão da precificação dos produtos femininos.
Alguns itens femininos possuem a mesma especificação e finalidade dos masculinos e o que os diferencia é apenas a cor, normalmente aqueles na rosa são voltados para as mulheres e são mais caros. Notem, os bens são a mesma coisa, possuem idêntica função, se diferem apenas pela cor e isso resulta em valor mais alto para o produto na “cor feminina”.
É a partir daí que nasce o debate da “Pink Tax” ou taxa rosa em português. A “Pink Tax” não é um novo tributo e sim uma discussão focada no viés econômico que ressalta como as mulheres pagam mais caro pelos produtos femininos em razão apenas da cor!
No Brasil, podemos também analisar a “Pink Tax” pelas lentes da tributação do consumo, já que a base de cálculo da tributação do consumo é o preço das mercadorias e como os produtos femininos são mais caros isso faz com que as mulheres sejam mais afetadas pela carga dos tributos indiretos do que os homens.
O debate é tão necessário e importante que a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) fez uma pesquisa sobre o tema em 2018 e constatou que os produtos e serviços destinados às mulheres são 12,3% mais caros que os masculinos, o que se intensifica em desdobramentos de desigualdade ainda mais cruéis quando consideramos que as mulheres ganham 20,5% menos que os homens no mercado de trabalho.
Ou seja, o mito da beleza que permeia a estória da Branca de Neve e da Bruxa e que até hoje faz com que nós mulheres, muitas vezes, nos vejamos como antagonistas umas das outras apenas reforça e torna cada vez mais viva a exploração patriarcal sobre a tutela dos nossos corpos.
Essa vigilância e dominação constante se fazem notar nas bases do patriarcado permeando o discurso religioso, a sua reprodução no ambiente escolar determinando brincadeiras, comportamentos e esportes de meninos e meninas, no seio da família e tem o direito como um braço que sustenta esta conjuntura a partir da lei.
Para mudar, é preciso decolonizar! Descontruir padrões históricos requer atitudes decoloniais. O processo de colonização de determinados grupos não envolveu apenas uma perspectiva econômica ligada à extração voraz de recursos naturais.
Houve, também, a colonialidade do saber, do poder e do ser. A ocultação da diversidade e da beleza local. Com a colonialidade, se apaga ou minimiza a existência do povo colonizado, a sua importância, seus conhecimentos e valores positivos.
Decolonizar é também desprincesar! Decolonizar é educar para a equidade e diversidade! Decolonizar implica em entender que a ideia de sujeito de direito construída historicamente e até hoje replicada está muito aquém da pluralidade das existências.
Se o feminismo decolonial não é teoria fechada, pronta e acabada, mas sim pensamento em construção, que cresce e se modifica a partir das experiências que lhes são acrescidas, fica aqui o nosso convite à reflexão. Como o Direito pode revisitar em suas estruturas, a partir de uma ótica decolonial e com repeito à diversidade de gênero, o modo como trata mulheres e minorias?
Referências
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
___________. Mulheres e Caça às Bruxas: da idade média aos dias atuais. Tradução Heci Regina Candiani. 1ªed. São Paulo: Boitempo, 2019.
HOLANDA, Heloísa Buarque de (org). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2020.
GRIMM. Jacob e Wilhelm. Branca de Neve. Tradução Maria Luiza X. de. A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.
WOLF. Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Tradução Wldéa Barcellos. 11ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2020.
ANNA PRISCYLLA LIMA PRADO – Doutoranda e mestra em Direito pela UFPE. Coordenadora da Tributec. Professora de Direito Constitucional e Tributário.
KAROLINE MARINHO – Professora de Direito da UFRN. Doutora em Direito Tributário – UFPE. Coordenadora do Direito EnCena e do CPF – UFRN.
MARIANA DE SIQUEIRA – Professora de Direito da UFRN. Doutora em Direito pela UFPE. Coordenadora do Defem e do Gedi da UFRN. Presidente da CDH da OAB/RN.
TATIANA AGUIAR – Doutora PUC/SP. Professora da USJT, IDP, FGV/SP e IBET, sócia de Curasapiens – Consultoria em diversidade e inovação.