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Internacional

Rússia, potência em desinformação, vive fracasso na tentativa de manipular narrativa da guerra

Durante anos, a Rússia conseguiu manipular a opinião pública em diferentes partes do mundo por meio de operações de influência

A máquina de desinformação russa é uma das baixas da guerra na Ucrânia -ao menos até o momento.

Considerada imbatível, a propaganda da Rússia não vem resistindo ao ativismo digital dos ucranianos e seu midiático presidente, Volodimir Zelenski, e à operação de desmascaramento preventivo empreendida por EUA, União Europeia e voluntários da comunidade de inteligência de dados abertos, que analisam imagens de satélite e informações públicas para detectar mentiras de Moscou.

Durante anos, a Rússia conseguiu manipular a opinião pública em diferentes partes do mundo por meio de operações de influência. O país de Vladimir Putin deu um baile no Ocidente na anexação da Crimeia, em 2014, nas eleições dos EUA em 2016, no referendo do brexit e nos pleitos de França e Alemanha em 2017.

A doutrina russa maskirovka, que há anos usa camuflagem, dissimulação e mentiras para confundir e enganar o inimigo, encontrou na internet o ambiente ideal para a estratégia. Segundo Keir Giles, especialista em Rússia do centro de estudos britânico Chatham House, o objetivo é alterar as percepções que os adversários têm do mundo, induzindo-os a tomar decisões que beneficiem os russos.

Para tal, fazendas de trolls -com humanos contratados- e robôs, além de sites pseudo-noticiosos e da mídia estatal, como RT (Russia Today), Sputnik e Tass, unem-se para fabricar consensos, corroer a legitimidade doméstica do adversário, espalhar o caos e deixar as pessoas sem saberem o que é verdade.

Durante a anexação da Crimeia, a máquina de desinformação russa estava em seu apogeu. Ali, os famosos “homenzinhos verdes” -soldados russos com uniformes sem identificação- permitiram ao Kremlin negar envolvimento no conflito militar por semanas e culpar os ucranianos pela agressão.

A Rússia também recorreu à tática na tentativa de apagar suas digitais na queda do avião da Malaysia Airlines, episódio que deixou quase 300 mortos em julho de 2014. Foi só graças à investigação do coletivo Bellingcat que foi possível saber que a aeronave havia sido derrubada por um míssil antiaéreo russo.

Na invasão em curso, o Kremlin voltou a lançar mão da estratégia, ainda que agora o protagonismo seja da mídia estatal, não tanto de fazendas de trolls em redes sociais. Os russos tentaram plantar três ações de “bandeiras falsas”, em que incidentes para culpar o inimigo e justificar uma invasão são fabricados.

Para tal, usaram canais anônimos no Telegram para espalhar rumores depois amplificados na mídia estatal. Nas mensagens, a Ucrânia estaria preparando um ataque à região do Donbass com armas químicas, e países ocidentais, uma tramoia para atacar usinas nucleares ucranianas e culpar os russos.

Trata-se da tradicional tática da “mangueira das falsidades”: a narrativa a ser emplacada é disseminada em vários canais, como TVs, sites estatais, redes sociais e mensagens por aplicativos.

Ao inundar a internet, ofuscam a verdade. Em todos os canais, repetem que o Exército russo está libertando o povo ucraniano do jugo de neonazistas e que os ucranianos cometeriam um genocídio.

Em reação, Facebook e Twitter removeram contas ligadas aos russos, como um site que atacava o governo ucraniano por meio de colunistas falsos, usando fotos de pessoas geradas por computador.

E, desta vez, o Ocidente se antecipou e fez um “desmascaramento preventivo”. O presidente dos EUA, Joe Biden, passou a divulgar informações dos serviços de inteligência, revelando que os russos estavam prestes a invadir e que espalhariam um vídeo com imagens adulteradas como uma “bandeira falsa”.

Os russos, por sua vez, diziam que os americanos espalhavam fake news e que não haveria invasão. Chineses faziam troça do governo Biden, chamando os americanos de histéricos. Aproveitavam-se da desconfiança em relação às falsas descobertas do serviço de inteligência dos EUA, que, em 2003, “achou” no Iraque armas de destruição em massa que nunca existiram.

Mortes e eventuais trapalhadas estratégicas no front, no entanto, são mais difíceis de serem desmascaradas. “O Kremlin tentou repetir o que havia feito em 2014, dizendo que havia agressão ucraniana, mas agora há uma quantidade enorme de dados verificáveis disponíveis”, disse à Folha Tom Southern, diretor do Centro de Resiliência de Informações, que criou um mapa que mostra, em tempo real, movimentos militares russos e ucranianos, mortes, bombardeios, tiroteios e danos a infraestruturas.

“Eles não acompanharam a evolução tecnológica. Há tantos dados abertos que mentiras podem ser desmentidas imediatamente, e até atores que ajudariam em operações de influência se distanciaram.”

Para Christopher Paul, cientista social na RAND Corporation, que estuda a guerra de desinformação russa, os atuais esforços de Moscou parecem muito menos eficazes. “Em 2014, os ‘homenzinhos verdes’ e as incertezas sobre os objetivos russos criaram confusão que impediu uma resposta coerente do Ocidente.”

Além disso, os gigantes de tecnologia se mexeram, após anos de denúncias por ativistas ucranianos de contas falsas que espalhavam ódio e desinformação. O Twitter passou a colocar marcações de que determinado perfil pertence a uma mídia estatal russa, e Google, YouTube e Facebook, que bloqueou o acesso de RT e Sputnik na União Europeia, proibiram esses veículos de comprarem anúncios.

Os russos, obviamente, não detêm o monopólio da desinformação online. O heroísmo do #ghostofkyiv, ou “fantasma de Kiev”, um exímio piloto ucraniano que teria abatido sozinho dez caças russos, ajudou a aumentar o moral dos ucranianos. As supostas proezas foram compartilhadas na conta oficial do governo da Ucrânia no Twitter, e vídeos com a hashtag no TikTok ultrapassaram 200 milhões de visualizações. Só que alguns dos vídeos compartilhados eram simulações por computador, e as fotos, de 2019.

A propaganda da Ucrânia, porém, concentra-se mais na viralização de atos heroicos da população, como vovós fabricando coquetéis molotov, e em vídeos de cidadãos tentando bloquear a passagem de tanques, ainda que o governo ucraniano tenha divulgado fotos e vídeos de militares russos feridos, mortos, carbonizados e estripados, o que muitos especialistas dizem ser uma violação da lei humanitária.

Há, ainda, vídeos e comentários marcantes do presidente -como quando respondeu à oferta de ajuda de líderes do Ocidente para ser retirado do país. “Não preciso de carona, preciso de munição.” O TikTok é a principal plataforma da batalha informacional da guerra da Ucrânia e é dominado pelos ucranianos.

Para P.W. Singer, estrategista do centro de pesquisas New America, essa propaganda está sendo muito eficiente, em parte porque a sociedade ucraniana não entrou em colapso logo após a invasão russa. Porém, a guerra de narrativas está longe de terminar, e os russos ainda podem virar o jogo nesse front.

Um ponto crucial é o público doméstico. Por isso, o Kremlin tratou de sufocar o que havia sobrado de imprensa independente na Rússia, com a aprovação, na sexta (4), de uma lei que prevê até 15 anos de prisão a quem espalhar “informação falsa” sobre as Forças Armadas, o que inclui chamar de “guerra” a guerra que Putin batizou de “operação militar especial”, instar outros países a impor sanções ou criticar a invasão. Devido à legislação, veículos estrangeiros como CNN e ABC suspenderam as operações no país.

O governo também bloqueou o funcionamento de Deutsche Welle, Radio Free Europe e Voice of America -aparentemente em retaliação às punições a RT e Sputnik. Por fim, Putin bloqueou o Facebook no país e restringiu o acesso ao Twitter, além de prender milhares de manifestantes que participaram de protestos.

Enquanto isso, continua a lançar mentiras -programas de TV dizem que são falsas as imagens de baixas russas e de mísseis contra cidades ucranianas. Parte da população, porém, acessa veículos banidos por meio do Telegram ou da ferramenta VPN, que burla as restrições. Assim, vídeos de soldados russos capturados estão chegando até famílias que nem sequer sabiam que parentes estavam no front.

“A comunicação doméstica não tem sido convincente, tanto que as autoridades recorreram rapidamente à censura; o governo insiste em dizer que as ações são limitadas, mas muitos tiveram familiares convocados e sabem que não é verdade. Por outro lado, manifestantes têm sido detidos, e os russos se desengajaram da política há anos”, disse à Folha Emerson Brooking, pesquisador do Atlantic Council.

Se de fato fracassar na “censura pelo barulho” da desinformação, Putin deve tentar recriar na Rússia a muralha que a China construiu para censurar a internet e a mídia no país. É, entretanto, cada vez maior o volume de vídeos e fotos de soldados mortos, e a população encara a falta de comida nos supermercados e o crescimento de filas nos bancos, resultado das sanções aplicadas pelos países ocidentais.
É difícil emplacar uma narrativa que ofusque essa realidade.

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