Internacional
Crises contínuas marcam 100 dias do governo Scholz
Pandemia, clima e guerra: nunca antes um novo governo alemão foi forçado a lidar com tantos desafios em tão pouco tempo. Harmonia inicial da coalizão começa a mostrar rachaduras com impactos da invasão da Ucrânia
Pouco antes de completar a marca de 100 dias, uma rachadura apareceu entre os parceiros da coalizão de governo da Alemanha. O ministro das Finanças, Christian Lindner, do Partido Liberal Democrático (FDP, na sigla em alemão) – o de menor representação – veio com uma ideia: compensar os motoristas pelo aumento do preço da gasolina e do diesel.
Na mesma noite, durante uma entrevista no horário nobre, o vice-chanceler e ministro da Economia, Robert Habeck, do Partido Verde, deixou claro que não gostou da ideia. Ele disse que há vários tipos de sugestões e ressaltou que seria sensato sentar juntos para apresentar as propostas certas.
Essa questão é bastante controversa na Alemanha. Lindner é fã de carros esportivos, assim como muitos eleitores abastados de seu partido, e já acusou os verdes de travarem uma guerra cultural contra os automóveis. A legenda de Habeck, no entanto, é favor de um limite de velocidades nas autobahns e quer aumentar o acesso ao transporte público – medidas voltadas para reduzir as emissões que causam o aquecimento global.
Até agora, a coalizão liderada pelo Partido Social Democrata (SPD) evitou discutir temas polêmicos em público. Ficar em silêncio e apresentar apenas soluções ao público, e não cada passo dado até lá, tem sido a receita de sucesso da aliança entre as três legendas.
O menor partido é o mais confiante
Mas depois de 100 dias de governo, a coalizão parece ter voltado à terra em relação às realidades político-partidárias, que são, naturalmente, caracterizadas por rivalidades. O FPD e os verdes estão nos polos opostos do governo. Com uma diferença fundamental: o Partido Verde queria desde o início formar uma coalizão com o SPD, já os liberais precisaram primeiro ser convencidos.
Isso resultou num desequilíbrio persistente. Assim, os liberais atuam com a autoconfiança de serem indispensáveis. Para o chanceler federal social-democrata, isso significa manter o FDP e Lindner na linha.
Desde o início, Scholz e o ministro das Finanças se deram bem. Ambos têm uma conexão: Scholz foi o antecessor de Lindner no ministério. E essa ligação, aos olhos dos verdes, pode ser até demais. Em entrevistas, Lindner já deixou claro que tem um canal direito com o chanceler.
Quando Scholz anunciou o investimento de 100 bilhões de euros nas Forças Armadas durante um discurso à nação no Parlamento alemão, em 27 de fevereiro, surgiram rumores de que ele havia consultado o ministro das Finanças para tomar a decisão, deixando de fora políticos experientes do SPD e o do Partido Verde – que pareceu ter sido pego e surpresa.
Desavenças sobre a pandemia
A coalizão tem também desavenças sobre a pandemia de covid-19. Como a maioria dos liberais, Lindner é contra a obrigatoriedade da vacinação e, por isso, o ministro da Saúde, Karl Lauterbach, do SPD, não conseguiu apresentar um projeto de lei correspondente. A situação causou embaraço para os social-democratas e verdes.
O FDP também é a favor de acabar com quase todas as medidas restritivas de combate à pandemia a partir de 20 de março. Lauterbach aponta para os números elevados de casos e mortes, mas tem que aceitar indefeso que a legislação de proteção a infecções só preveja, no futuro, medidas rudimentares e determine inclusive o fim da obrigatoriedade do uso de máscara em supermercados e lojas.
Quem é Scholz?
Logo no início de seu mandato, Scholz experimentou a rapidez com que um político pode cair em desgraça com o eleitorado. O chanceler gosta de agir nos bastidores, comunicando apenas resultados. Num discurso feito em 15 de dezembro, ele prometeu “novos começos e progresso” e anunciou a intenção de tocar rapidamente projetos nas áreas de proteção climática, digitalização e transformação econômica.
Em seguida, ele praticamente desapareceu. Ficou tão invisível que a hashtag onde está o Scholz ficou entre as mais comentadas do Twitter. Quanto mais a crise com a Rússia se intensificava e aumentavam os apelos ucranianos por armas e sanções, mais parecia que o chanceler se esquivava. Consequentemente, sua popularidade despencou em janeiro.
Energias renováveis livres em vez de gás russo
Mas de repente Scholz entrou em ação: voou para Washigton, Kiev, Moscou e surpreendeu com a decisão de suspender o processo de licenciamento para o gasoduto Nord Stream 2 – fazendo uma concessão política aos verdes, que eram a favor de parar esse projeto. Entretanto, não apenas por razões geopolíticas, mas com a intenção de reduzir o uso de combustíveis fósseis e impulsionar a expansão de energia renováveis.
O aumento do preço da energia e o risco da Rússia interromper o fornecimento de gás deram aos verdes ventos favoráveis. Até o FDP mudou de posição, com Lindner chamando as energias solar e eólica de “energias livres”. Os liberais, porém, pressionam agora para manter as usinas nucleares em funcionamento por mais tempo.
Cofres vazios causam problemas
A guerra, a crise energética, as mudanças climáticas e a pandemia: cada uma destas crises tem potencial de manter um governo sob tensão. A atual coalizão precisa lidar com todas elas ao mesmo tempo. Isso se torna mais difícil a medida em que há menos dinheiro disponível. E aqui o FDP também tem um papel fundamental. O ministro das Finanças terá que contrair mais um empréstimo bilionário neste ano. Em 2023, ele pretende, porém, frear as dívidas.
Orçamentos preliminares de 2023 indicam economias substanciais, o que significa que projetos acordados pela coalizão não terão mais financiamento. A questão é se o SPD e o Partido Verde vão permitir isso.
Já há rumores dentro do SPD. A ala mais à esquerda do partido exige a suspensão do freio das dívidas e a criação de um imposto sobre grandes fortunas. Os verdes falam em mudança e deixar de lado velhas certezas. Tudo indica que a harmonia com qual a coalizão governou durante os primeiros 100 dias não está assegurada.