ECONOMIA
Isenção camarada de Lula
Enquanto tentava monitorar o Pix, governo Lula perdoou 284 milhões de reais em dívidas de quatro empresas com Receita Federal e Previdência

Os brasileiro médio, o trabalhador informal que precisa ganhar a vida dia a dia, temeu nas últimas semanas ver suas contas devassadas pela Receita Federal, por conta da já cancelada Instrução Normativa que autorizava o patrulhamento do Pix para valores acima de 5 mil reais por mês.
Ao mesmo tempo, em que os auditores conseguiam uma brecha para ficar de olho nas transações de alguns milhares de reais, quatro empresas receberam um perdão de milhões de reais do governo Lula. Aliás, de centenas de milhões de reais. Detalhe: duas delas, em um passado não muito distante, foram ligadas ao ex-ministro de Minas e Energia Edison Lobão.
Em 2 dezembro de 2024, o complexo formado por Maity Energia, Maity Agrícola, Aimar Agroindustrial e a Coopergraças – Cooperativa Nossa Senhora das Graças – fechou um acordo com o governo federal para encerrar pouco mais de 700 ações judiciais e administrativas impetradas pela União pelo não pagamento de dívidas com a Receita Federal e com a Previdência e conseguiu um desconto de 284 milhões de reais nesse passivo com o governo federal.
75% de desconto total
Até novembro do ano passado, o complexo devia à União 375 milhões de reais. Agora, com o acordo, o débito caiu para 91 milhões de reais. Um desconto de 75% (incluindo-se aqui o uso de créditos remanescentes das empresas com a União), conforme processo obtido com exclusividade por Crusoé.

Se isso não fosse o suficiente, as empresas deram como garantia de pagamento do acordo bens e imóveis que, somados, foram avaliados em 83 milhões de reais. O valor é inferior à nova dívida com a União. Um supernegócio. A bolada deve ser quitada até março ou o acordo cai por terra.
Essa mágica anistia remete a outro caso escabroso revelado por Crusoé em junho do ano passado: o acordo multimilionário, de 600 milhões de reais, firmado exatamente por duas destas empresas – a Coopergraças e a Aimar Agroindustrial – com o Banco do Brasil. No país das coincidências, esse outro acordo teve como objetivo encerrar algumas querelas judiciais que tramitavam há décadas.
Quitou e pagou
Conforme documentos obtidos pela reportagem, o acordo em si foi registrado junto ao Poder Judiciário. Mas o valor, não. Segundo o que apurou Crusoé, os tais 600 milhões de reais não entraram no relatório contábil das empresas ao longo de 2024. Contudo, em resposta encaminhada à Câmara dos Deputados, o Banco do Brasil indica que quitou o acordo com o conglomerado. Quitou e pagou.

Na época, a reportagem já alertava que o acordo feito pelo Banco do Brasil por debaixo dos panos abria margens para possível burla a credores, entre eles a União. Pelo acerto judicial firmado com o BB, obtido por Crusoé com exclusividade, arquitetou-se que os 600 milhões de reais iriam parar nas contas da Coopergraças, justamente para evitar que parte desse dinheiro não fosse dragado pelos cofres públicos.
Na época do acordo, a própria consultoria jurídica do Banco do Brasil tinha conhecimento das dívidas da Aimar, estimadas em até 450 milhões de reais. Já a Coopergraças estava saneada e não corria o risco de que o dinheiro escoasse para credores, como ocorreria no caso de a Aimar receber o pagamento.

Parte desse acordo entre Banco do Brasil e as ex-empresas de Lobão foi homologado pelo ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Luis Felipe Salomão na noite de um domingo, 17 de setembro de 2023. E, na homologação, não há nenhumas menções a valores da transação.
“Em tese, a responsabilidade civil do Banco [do Brasil] demandaria prova em uma ação própria ou nas próprias ações movidas pelos credores da Aimar, parecendo-nos insuficiente, para justificar eventual alegação de simulação, a mera realização de pagamento em favor da Coopergraças”, afirmou a consultoria jurídica do Banco do Brasil em parecer obtido pela reportagem sobre o acordo de 600 milhões de reais.
Willer Tomaz
O perdão da dívida das quatro empresas foi assinado pelos representantes legais do grupo e teve como mediador o advogado Willer Tomaz, conhecido em Brasília pelo seu bom relacionamento com autoridades públicas. Willer é amigo de Flávio Bolsonaro. Segundo a coluna de Lauro Jardim, ele passou um final de semana jogando no Hard Rock Hotel & Casino com o filho senador do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Nos termos do perdão da dívida, não há menção ao acordo de 600 milhões de reais feito anteriormente com o Banco do Brasil. Um detalhe: em outro processo, em primeira instância, o conglomerado de empresas chegou a mencionar os créditos obtidos pelo acordo para quitar essa dívida com a Receita. Isso no valor cheio. Como o dinheiro não estava na conta, a Fazenda Nacional rechaçou essa garantia.
Entre as cláusulas para o perdão, contudo, há uma que aponta nulidade da transação caso ocorra dolo, fraude, simulação ou erro essencial quanto à pessoa, ou quanto ao objeto do conflito.
Em resposta à Câmara dos Deputados sobre o acordo, o Banco do Brasil admite que recomendou o pagamento do acordo na conta de apenas uma – e não das duas empresas – como forma de se resolver o impasse jurídico diante de uma “maior probabilidade de êxito” da operação.
“Tendo em vista as premissas e parâmetros acima apontados, a decisão pelo crédito do valor para apenas uma das empresas resultou da análise técnica do contexto jurídico-processual das ações, que revelava menor probabilidade de êxito justamente nos processos do Banco com a empresa do Grupo Caiman [Coopergraças mais Aimar] para a qual fora creditado o valor, mas que ─ importante destacar ─ condicionava à resolução de todos os processos entre as partes, inclusive aqueles em curso com a outra empresa do Grupo”, disse o Banco do Brasil em resposta assinada pelo diretor-geral Jose Eduardo Pereira de Lima.
“Não significa burlar os credores da outra”
“No mais, pagar a uma não significa burlar os credores da outra. O Banco não possui meios para aferir, nem tem conhecimento de eventual desvio de finalidade ou abuso da personalidade jurídica que comprometa a idoneidade das composições firmadas, o que por certo competiria a eventuais terceiros interessados”, acrescentou o Banco do Brasil no esclarecimento encaminhado aos deputados e também obtido com exclusividade por Crusoé.
“Por dever de ofício e considerando o cenário fático-processual, o Banco entabulou a melhor solução e realizou o menor desembolso possível para satisfazer obrigação decorrente de condenação judicial transitada em julgado que lhe atribuía condição de devedor ao tempo da formalização da transação, sem que isso possa caracterizar, por si só, intenção de lesar terceiros”, pontuou ainda o Banco do Brasil.

Apesar dos esclarecimentos, o Banco não apresentou detalhes, como documentos ou pareceres jurídicos que embasaram a decisão de se firmar o acordo multimilionário. A justificativa para negar o acesso dos deputados aos documentos foi evasiva:
“As informações relacionadas ao mencionado ajuste são classificadas como confidenciais e são amparadas pelos sigilos empresarial e comercial, por terem o potencial de influenciar o Banco ou sua atuação enquanto empresa, no ambiente no qual está inserido.”
De fato, diante de tantos detalhes obscuros, faz algum sentido manter esse tipo de acordo sob as sombras. Em resumo, esse caso mostra que, no Brasil, a fiscalização se faz apenas para aqueles que não têm poder ou influência em Brasília. Para aqueles com alguma ligação com os poderosos, é tudo muito, muito mais fácil.
Fonte: Crusoé