CIDADE
Santa Rita: Comunidade tradicional é salva por ação urgente da Justiça

Roberto Tomé
Por trás das cercas, o grito calado de um povo que só quer continuar vivendo onde sempre viveu. Em Santa Rita, Região Metropolitana de João Pessoa, um conflito antigo ganhou um novo e decisivo capítulo. A Justiça Federal da Paraíba concedeu uma liminar garantindo a proteção da comunidade tradicional Canaã, após denúncias de pressões e ameaças por parte do novo dono da Fazenda Reunidos Cumbe, que hoje abriga um empreendimento de criação de camarões.
A medida atende a um pedido do Ministério Público Federal (MPF), protocolado em setembro de 2024, que acusa o atual proprietário de tentar forçar a saída dos moradores com contratos abusivos, destruição de benfeitorias e até limitação do acesso a espaços públicos.
A decisão judicial não é apenas uma vitória jurídica. É um respiro de dignidade para dezenas de famílias que vivem no local desde os tempos da extinta Usina Santa Rita, desativada nos anos 1990.
Medidas urgentes para garantir dignidade e permanência
Com a liminar em mãos, a comunidade volta a ter o direito de circular livremente pela vila, acessar a praça e utilizar as margens do Rio Paraíba — áreas que, até então, estavam cercadas e bloqueadas. O empresário responsável pela fazenda está proibido de impor contratos de aluguel ou qualquer tipo de coação que vise remover os moradores do local. E mais: o descumprimento dessas ordens pode gerar multa de R$ 2 mil por cada infração ou por dia de desobediência.
A decisão judicial vai além. Servidores públicos, técnicos da Energisa, da Cagepa e de outros órgãos que prestam serviços essenciais também garantem o direito de entrar na comunidade sem impedimentos.
Regularização fundiária: um dever que não pode mais esperar
A Prefeitura de Santa Rita, por sua vez, recebeu ordem direta da Justiça para retomar, sem mais delongas, o processo de regularização fundiária das moradias da comunidade Canaã. O município deverá apresentar relatórios mensais detalhando o andamento das ações. Caso não cumpra essa determinação, será multado em R$ 500 por dia a partir do 31º dia sem atualização.
Raízes profundas e conflitos duradouros
A origem dessa comunidade remonta aos tempos em que ali funcionava a Usina Santa Rita, responsável por empregar muitos dos que ainda hoje vivem no local. Após a falência da usina, em 1991, os trabalhadores ficaram à própria sorte, sem receber verbas rescisórias e sem garantias formais de moradia. Mesmo assim, permaneceram, firmando laços comunitários, preservando tradições e sustentando suas famílias com esforço e fé.
O que antes era uma vila operária virou um símbolo de resistência. Mas, a cada novo dono da terra, os moradores enfrentam novamente a ameaça de despejo. Com a chegada do atual proprietário em 2022, a pressão aumentou consideravelmente. Houve denúncias de demolições forçadas, tentativas de assinatura de contratos de aluguel com valores simbólicos e construção de viveiros de camarão próximos a estruturas históricas, como a antiga igreja e a caixa d’água da vila.
Impactos que vão além da cerca: o meio ambiente também sofre
Além dos conflitos sociais, a atividade de carcinicultura (criação de camarões em cativeiro) instalada na região levanta sérias preocupações ambientais. Há relatos de despejo de efluentes diretamente no Rio Paraíba, prejudicando a qualidade da água e ameaçando a biodiversidade local. Essa contaminação impacta diretamente a agricultura familiar praticada pela comunidade, que depende da terra e da água para sobreviver.
Justiça reconhece a vulnerabilidade e garante apoio institucional
A Justiça Federal acolheu o pedido do MPF e autorizou a atuação da Defensoria Pública da União no processo, reforçando a necessidade de garantir suporte jurídico às famílias, que vivem em situação de vulnerabilidade social e econômica. A decisão se ampara na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, do Supremo Tribunal Federal, que assegura proteção especial a comunidades tradicionais e populações em situação de risco.
O processo judicial reconhece que as famílias da comunidade Canaã correm risco real de perder suas moradias, seus vínculos históricos com o território e seus meios de sustento. E mais: reconhece também que essas pessoas, por estarem em situação informal, têm dificuldades para acessar os mecanismos formais de justiça — o que torna ainda mais importante o papel das instituições públicas em sua defesa.
Processo: 0806908-62.2024.4.05.8200
Reflexão final: até quando o progresso vai passar por cima das raízes do povo?
A história da comunidade Canaã é uma entre tantas no Brasil profundo, onde gente simples, que sempre viveu do trabalho e da terra, precisa recorrer à Justiça para continuar existindo. Não se trata apenas de um conflito de posse. Trata-se de memória, de pertencimento, de respeito a quem construiu aquela terra com o suor da vida inteira.
Que a decisão judicial não seja somente uma liminar no papel, mas o começo de uma reparação histórica para um povo que nunca pediu demais — só quer continuar onde sempre esteve com dignidade e paz.