Internacional
Histórias dos seis meses de guerra na Ucrânia
Em 24 de fevereiro, a Rússia deu início à invasão na Ucrânia. Um combatente, uma voluntária de Kiev e uma refugiada de Mariupol relatam à DW como suas vidas mudaram desde então
Faz seis meses que a Rússia iniciou a invasão da Ucrânia. Muitos ucranianos pegaram em armas para se defender dos agressores. Milhões, na grande maioria mulheres e crianças, foram obrigados a fugir do país. Aqueles que ficaram e que não foram para o campo de batalha tiveram que se acostumar com a vida em tempos de guerra: constantes ameaças de bombardeios e o som de sirenes de alerta de ataques aéreos.
Um integrante da Guarda Nacional da Ucrânia, uma artista de Kiev e uma refugiada de Mariupol contaram à DW como suas vidas mudaram nestes seis meses de guerra.
“Não quero voltar para aquele inferno”
Budista – de Kiev, membro da Guarda Nacional da Ucrânia que está lutando na região leste de Donbass
“Antes da guerra, eu trabalhava como tradutor numa empresa de TI de sucesso. Já tinha a patente de subtenente, pois na faculdade me especializei em tradução militar. Como muitos residentes de Kiev, nos últimos oito anos, a guerra em Donbass [conflito entre separatistas pró-Rússia e forças ucranianas em Donetsk e Lugansk que teve início em 2013] parecia distante. Não me preocupava demais com que estava acontecendo naquela região.
E então, na manhã de 24 de fevereiro, ouvi as sirenes e o estrondo de bombas russas explodindo…Nas redes sociais, li sobre a ameaça das forças russas invadirem minha cidade e sobre a formação de unidades de resistência improvisadas. Foi quando sai às ruas e me juntei aos caras que estavam escavando trincheiras e construindo postos de controle. As forças de defesa territoriais nos deram armas enquanto estávamos de serviço e deveríamos ir para casa para dormir nas pausas.
Depois descobri que os russos arrasaram a cidade da minha avó no sul da região de Zaporíjia e que a cidade natal do meu pai, Nikopol, estava sendo bombardeada. Eu entendi que precisava ir e lutar. Mas não recebi nenhuma convocação de mobilização, e no fim de março, eu e outros caras começamos a ‘sitiar’ um centro de recrutamento militar. Por fim, eles nos deixaram a integrar a Guarda Nacional.
Fizemos um treino de uma semana num centro de treinamento militar e recebemos em seguida a ordem de deslocamento para o leste. Não sabíamos exatamente o local, apenas nos disseram que seria na segunda linha de defesa. Mas uma vez lá, fomos ordenados para avançar para o ground zero – perto do vilarejo Voronove, não muito longe de Sievierodonestk [na região de Lugansk].
Havia uma floresta ali, e nós quase não víamos o inimigo, mas tivemos que cavar trincheiras e reforçá-las sob fogo constante. Apenas quando os canhões e morteiros silenciavam e os ataques aéreos paravam, a infantaria inimiga atacava. E então começava tudo novamente. Eu esqueci a última vez que dormi direito, embora eu tivesse alcançado o ponto de cair e apagar por poucas horas. E depois acordar novamente com as ondas de explosão, detonações ensurdecedoras e voltar para o dever. Fomos deixados lá, sem pausa, por um mês e meio.
Quando chegaram ordens de retirada de Sievierodonetsk, também começaram a nos afastar da linha de frente. As nossas ordens chegaram de manhã, tivemos que nos deslocar na luz do dia, com um calor escaldante e sob fogo incessante de lançadores de foguetes e artilharia. Eles nos deram a oportunidade de tirar uma licença para recuperação e até nos deixaram ir passar três dias em Kiev. Depois voltamos para Donbass, para Zaitseve, nos arredores de Horlivka [uma cidade em Donetsk], e tudo começou de novo – bombardeios intermináveis, mudando de posições somente de noite porque havia drones inimigos pairando sobre nós constantemente para guiar os ataques. Parava por algumas horas enquanto os tanques e infantaria se movimentavam para o ataque. Repelíamos esses ataques e esperávamos por mais bombardeios e ataques. Foi assim por cinco semanas até sermos dispensados por combatentes de uma das brigadas militares ucranianas.
Não sobrou muito do nosso batalhão. Pena dos jovens que morreram com 20 ou 25 anos. Mas precisamos manter nossa posição ali, porque recuar seria desistir do nosso país. Na linha de frente, entendi o estado real da guerra, e agora não me interessa notícias ou opiniões de especialistas militares. O que restou do nosso batalhão está agora sendo movido do front para a reforma. Me ofereci para ir para a linha de frente, mas não quero voltar para aquele inferno. Mas é impossível não ir! Acho que com alguma terapia consigo endireitar um pouco minha cabeça, me recuperar de uma contusão leve e voltar a lutar novamente”.
“Me sinto exausta, com burnout emocional”
Svetlana Bogachenko, artista e voluntária em Kiev
“Muitas pessoas que eu conhecia deixaram Kiev em 24 de fevereiro, mas eu não podia deixar para trás civis que tinham se juntado as forças de defesa territoriais sem coletes, capacetes, roupa térmica e outros suprimentos. O Estado não podia fornecer suprimentos para todos, porque muitos se propuseram a defender a Ucrânia. A única esperança eram os voluntários. Era quase impossível comprar o que eles precisavam na Ucrânia, muitas lojas estavam fechadas. Era preciso buscar ucranianos em outros países europeus, no Canadá e nos Estados Unidos para organizarem as compras e a cadeia de abastecimento para transportar suprimentos militares e medicamentos através das múltiplas fronteiras. O pensamento de escapar para partes seguras da Ucrânia ou para outro país nunca passou pela minha cabeça – simplesmente não havia tempo para isso. Eu nem sequer tinha energia para dormir direito ou fazer comida.
Acho que minha experiência como voluntária na Primavera Ucraniana em Kiev entre 2013 e 2014, e nos primeiros anos do conflito em Donbass ajudou muito. Naquela época, eu pedi para ajudar nas redes sociais e entrei em contato com os compradores dos meus quadros, que eram vendidos em média por mil euros. Os compradores eram muito ricos. E eles fizeram doações generosas para ajudar os combatentes. Isso durou até 2016, quando o Estado pode fornecer aos nossos combatentes tudo que eles precisavam. Depois disso, eu mandava apenas presentes para nossos meninos para as férias. E durante todos esses anos, eu continuei pintando.
Nas primeiras semanas após 24 de fevereiro, eu estava empenhada em encontrar suprimentos para os combatentes da defesa territorial, militares e os voluntários que lutavam em Irpin, Bucha e Hostomel [nos arredores de Kiev], e também em organizar comida para solteiros e idosos em Kiev. Nas noites, eu levava café, chá e doces para os meninos nos pontos de controle. Às vezes, era assustador quando havia tiroteios nas ruas entre grupos inimigos. Na casa do meu filho, perto da área onde havia prédios oficiais, era possível ouvir explosões. E eu nem sequer reagia as sirenes de alerta – pois não havia tempo de correr para os abrigos antiaéreos.
Em meados de março, durante a defesa de Mariupol, um homem do qual eu era muito próxima morreu. Ele era o instrutor do batalhão de Azov Bahva Chikobava… Depois disso, quase uma vez por semana, recebia notícias da morte de soldados que eu tinha ajudado, que se tornaram a minha família, meus amigos próximos. Era muito desconcertante.
Mas agora, se eu conseguir encontrar um caminhão carregado de diesel para nossos garotos, enviar algumas poucas centenas de torniquetes, curativos estéreis, anticoagulantes, medicamentos para queimaduras para as tropas nos tanques, meu espírito se eleva imensamente. Eu me alegro porque antes não tinha a menor ideia de como encontrar tudo isso e enviar para a linha de frente, e agora tudo está fluindo. E na manhã seguinte há novos telefonemas, novas listas de necessidades.
Neste momento, estou exausta, com burnout emocional. Só consegui voltar a pintar há poucas semanas, não tenho para quem vender os quadros agora na Ucrânia, alguns ricos deixaram o país, e outros estão ajudando no combate, assim não há mais dinheiro para ganhar. Dependendo inteiramente da ajuda do meu filho e dos meus amigos. Tudo que eu junto é destinado a comprar itens necessários para o exército. Está salvando muitas vidas lá.”
“Nós amávamos muito nossa cidade”
Alina Kovailova, refugida de Mariupol que vive desde abril em Hamburgo, na Alemanha
“Nos último seis anos, eu trabalhava no departamento de marketing de um grande centro de medicina em Mariupol, que foi destruído durante os combates. Meu marido era operador de grua na siderúrgica de Azovstal, e nos últimos anos entrou no ramo de comércio de artigos domésticos. Nós vivíamos bem. Tínhamos quase acabado a reforma na nossa casa, compramos móveis novos. Construímos uma cabana no jardim. Meu marido fez, ele próprio, uma churrasqueira de pedras, uma mesa grande de madeira. Precisávamos apenas terminar de decorar. Já tínhamos convidado amigos para nos visitar assim que ficasse mais quente.
Em Mariupol, nosso filho de 9 anos, Alexander, frequentava a quarta série. Nós estávamos preparando uma grande festa para a conclusão deste período escolar. Eu era a chefe do comitê de pais. Estávamos esperando a primavera para fazer as fotos da turma. Hoje, quase todas as crianças da nossa turma estão no exterior. Graças a Deus eles estão vivos! Das 31 crianças da turma do Alexander, apenas quatro ou cinco ficaram em Mariupol.
Nós amávamos muito nossa cidade. Nunca pensamos em ir para outro lugar. A guerra mudou tudo. É uma catástrofe para a nossa cidade, que tinha ficado muito bonita nos últimos cinco anos. Havia muitos parques. Não muito longe de nós, havia um parque chamado Arco-íris com milhares de flores e árvores. Na primavera, quando tudo flori, é incrivelmente lindo. Construíram algumas fontes bonitas. É maravilhoso porque no verão faz mais de 40°C em Mariupol. Todos os bairros tinham um parque como aquele. As pessoas levam seus filhos lá. Construíram uma pista de patinação no gelo na cidade. Reformaram a Filarmônica e muitos prédios históricos. Agora tudo isso se foi.
Estamos na Alemanha desde 29 de abril. Viemos de carro, oito dias de viagem pela Crimeia ocupada, Geórgia, Turquia, Bulgária e metade da Europa. O principal é que estamos salvos aqui e que nosso filho não vê mais o inferno da guerra. Há dois meses, nosso filho dorme normalmente. Pelo menos, quando vai para a cama, ele não diz mais que tem medo de morrer. Acontecia toda noite quando eu lhe dava boa noite. Agora os desenhos que ele faz voltaram a ser normais, não bombas como antes. Agora são dinossauros, robôs e natureza-morta.
É difícil construir uma vida na Alemanha, tudo demora muito tempo. Ainda vivemos num hotel, não conseguimos encontrar um apartamento, apesar de enviar dezenas de candidaturas todos os dias. É difícil encontrar um lugar sem ter trabalho. Mas não podemos trabalhar, porque ainda não temos permissão de residência e permissão de trabalho. Assim que conseguimos isso, continuará sendo difícil encontrar um emprego porque não sabemos a língua. Mas não podemos fazer um curso de integração e de língua sem a permissão de residência. Nos encontramos um círculo vicioso. Eles nem sequer nos colocam em listas de espera. Frequentamos alguns cursos de alemão algumas vezes por semana, mas os cursos são dados por voluntários. Ainda assim, somos muito gratos por a Alemanha ter nos aceitado.
Ainda sonhamos em voltar para Mariupol algum dia – mas apenas quando a cidade voltar a ser ucraniana. Meu marido disse que ficaria aqui com nosso filho no início, enquanto ainda estiver perigoso, e ele voltará para reconstruir Mariupol. Nunca voltaremos para a ocupação russa. O pior é que os agressores tiraram a liberdade do povo. Não importa se eles dizem que o fornecimento de água foi restaurado, que as luzes voltaram. Há ainda pessoas que acreditam que tudo voltou ao normal. Mas como viver num local no qual você tem que ter cuidado com cada palavra? Eu estava acostumada a falar sempre que não gostava de algo – seja sobre prefeito ou presidente. Nós erámos livres na Ucrânia.”