Internacional
Polônia usa guerra na Ucrânia para obter vantagem com a União Europeia
Na guerra, o discurso polonês se alinhou ao da Europa Ocidental, com o governo local se posicionando como um dos mais agressivos porta-vozes contrários à ação de Vladimir Putin
Oito dias antes de a Rússia iniciar a guerra na Ucrânia, a mais alta corte da União Europeia decidiu em julgamento que “é legal suspender o acesso a financiamento de países-membros que descumprem princípios básicos do Estado de Direito”. A resolução, na prática, era uma mensagem aos governos de Polônia e Hungria, que há anos avançam contra a democracia e contrariam o direito europeu.
Hoje, Varsóvia tem 36 bilhões de euros (R$ 196 bilhões) bloqueados pela UE, que tenta pressionar o governo local a reverter decisões consideradas inconstitucionais pelo bloco –o valor corresponde a 7% do PIB do país; Budapeste tem 7 bilhões de euros (R$ 38 bi) congelados, 5% do PIB.
Na guerra, porém, o discurso polonês se alinhou ao da Europa Ocidental, com o governo local se posicionando como um dos mais agressivos porta-vozes contrários à ação de Vladimir Putin. Varsóvia já acolheu mais de 2 milhões de refugiados (dos 3,5 milhões ao todo) e chegou a insistir no envio de caças MiG-29 a Kiev, numa operação que envolveria os EUA e a Otan –Washington a rechaçou, sob o temor de levar a guerra a outro patamar.
Na semana passada, o primeiro-ministro Mateusz Morawiecki participou de um dos mais fortes gestos diplomáticos de apoio à Ucrânia e, acompanhado dos premiês tcheco e esloveno, foi de trem a Kiev em meio ao cerco russo. Para o encontro com o presidente Volodimir Zelenski o político ainda levou Jaroslaw Kaczynski, líder do Lei e Justiça (PiS), partido que tem maioria no Parlamento polonês.
O simbolismo dos movimentos, para analistas, visa a mudar a visão sobre o país para ajudar a convencer a Comissão Europeia (o Executivo da UE) a desbloquear o fundo destinado à recuperação econômica pós-pandemia.
O vice-ministro das Relações Exteriores Pawel Jablonski, falando à Bloomberg, pediu no dia 14 que a UE libere a verba, citando que “milhões de euros” serão necessários para integrar os refugiados. “Esse é um desafio que a Europa não enfrenta há décadas. Precisamos deixar de lado coisas menores”, disse.
Para Jakub Jaraczewski, coordenador do think tank Democracy Reporting International, o bloco agora precisa pesar até que ponto vale pressionar Varsóvia quando há um inimigo comum –a saber, Moscou. “A Comissão Europeia sabe que parar de ajudar financeiramente a Polônia significa não apoiar um país que precisa de auxílio, mas está ciente que não pode abdicar do Estado de Direito por completo.”
O principal ponto de conflito com a Polônia gira em torno de uma reforma do Judiciário implementada no início de 2020. O projeto criou, entre outras coisas, uma câmara disciplinar com poderes para reduzir salários e revogar a imunidade de juízes –uma forma de interferência direta do Executivo.
Outra camada de disputa se deu quando o Tribunal Constitucional, alinhado ao governo, decidiu em outubro que trechos de tratados da UE afetam a soberania do país por serem incompatíveis com a lei local. Na prática, a resolução significaria que a Constituição polonesa está acima das leis europeias.
Antes da guerra, Varsóvia chegou a fazer acenos a Bruxelas, com indícios de que estaria disposta a negociar. No início de fevereiro, o presidente Andrzej Duda enviou ao Parlamento um projeto que extingue a câmara disciplinar, argumentando ser necessário apaziguar relações com a Comissão Europeia.
Pelo sistema político do país, porém, Duda tem pouco ou nenhum poder para esse tipo de decisão –ainda que se alinhe ao PiS. Aqui entram o posicionamento diante da guerra e o movimento polonês para tentar convencer o bloco de que o momento é crítico a ponto de Bruxelas relevar certas políticas internas.
Autoridades da UE ouvidas pelo jornal britânico The Guardian indicam que Varsóvia tem chances de sucesso, ainda que não completo. Segundo essa versão, um eventual acordo estaria atrelado ao fechamento da câmara disciplinar, sem que os juízes que já foram punidos contem com anistia.
Para Monika Sus, professora associada da Academia Polonesa de Ciências, porém, não há saída sem que o partido governista tome uma decisão alinhada a Bruxelas. “Não consigo imaginar um acordo com a Comissão Europeia sem o governo restaure a independência do Judiciário”, diz.
Ela destaca que o cenário pode ser outro caso a guerra na Ucrânia se estenda por muito mais tempo. “Então teremos uma crise humanitária na Polônia, e pode ser que a Comissão Europeia fale: ‘Ok, deixa isso [reforma da Justiça] para lá, temos que focar os refugiados’.”
A postura polonesa, de toda forma, não se baseia só em cálculo político. O sentimento anti-Rússia no país –que teve seu território dividido entre nazistas e soviéticos na Segunda Guerra e depois sofreu com a repressão comunista– é grande.
“Uma das poucas áreas em que o governo polonês e a oposição concordam é sobre história e identidade. Os poloneses sentem que, se não pararem Putin na Ucrânia, poderão ser os próximos”, analisa Milan Nic, do Conselho Alemão de Relações Exteriores.
Jaraczewski define como “suicídio político” o cenário em que uma autoridade polonesa eventualmente apoiasse abertamente a Rússia.
O cenário é um pouco distinto na Hungria, igualmente parte da Otan e da UE e governado por um nacionalista conservador.
Viktor Orbán também pediu à UE o desbloqueio de fundos, mas tem evitado declarações firmes contra o Kremlin. A justificativa, nesse caso, pode estar ligada às eleições parlamentares do início de abril –nas quais, pela primeira vez desde que assumiu o poder, em 2010, o premiê vai encarar uma oposição unida, ainda que com chance remota de vitória.
Para analistas, Orbán tenta vender à população a ideia de que está ajudando o país ao se manter longe da guerra. Nos últimos anos, o político conservador abandonou o viés antissoviético de Budapeste e se aproximou de Putin, ainda que agora tenha apoiado sanções europeias contra os russos.
A postura dúbia em relação ao conflito, porém, pouco deve valer nas negociações com a Comissão Europeia. Isso porque, segundo Nic, violações recentes do Estado de Direito na Hungria são mais sistemáticas e não podem ser resolvidas só com o desmantelamento de um órgão ou o veto a uma lei.
Pesa também o fato de o país ter 10 milhões de habitantes –a Polônia conta 40 milhões.