Judiciário
Além da Economia Digital
A tributação da economia digital – ou dos negócios cada dia mais digitalizados – é tema que desperta a preocupação e o interesse de diversos governos ao redor do mundo, tendo sido um dos principais temas de discussão do Centro para Política e Administração Fiscal da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
O Brasil participa ativamente das discussões que buscam soluções para a tributação da economia digital, que têm ocorrido no âmbito do BEPS[1] Inclusive Framework (IF), grupo que reúne mais de 100 países, integrando o Brasil o grupo de estratégia (IF Steering Group).
Boa parte dessas discussões se referem a como tributar a renda gerada pela economia digital, ou seja, como tributar os lucros gerados pelas empresas da economia digital, especialmente os serviços e intangíveis da economia digital. Essas discussões têm se dividido, essencialmente, em dois Pilares: (a) o Pilar 1 busca identificar novos critérios de nexos econômicos para a repartição dos lucros entre os países onde há atividades econômicas e geração de valor para essas empresas; e (b) o Pilar 2 traz alternativas para a garantia de que o lucro dessas empresas se sujeite a uma tributação mínima em nível global (GloBE).
O intuito deste artigo é comparar, brevemente, as medidas discutidas sob o Pilar 2 e a as medidas que já estão em vigor na legislação brasileira para a tributação de lucros de empresas estrangeiras. Além disso, essas medidas sob o Pilar 2 são muito mais abrangentes que a tributação da economia digital, podendo atingir atividades que não necessariamente sejam digitalizadas.
Tributação da Economia Digital – Pilar 2
O Pilar 2 dos estudos da tributação da economia digital do IF/OCDE apresenta a sugestão das seguintes medidas para assegurar a tributação mínima global[2]:
- Income Inclusion Rule (IIR): Esta regra permitiria aos países de residência dos investidores imporem imposto de renda sobre lucros auferidos pelas empresas da economia digital nas quais eles invistam, de tal maneira que esses lucros, se não houverem sido suficientemente tributados nos países de residência das empresas investidas, seriam tributados nos países de residência dos investidores. A OCDE assim explica a regra (p. 114):
- The IIR effectively operates by requiring a parent entity (in most cases, the Ultimate Parent Entity) to bring into account its share of the income of each Constituent Entity located in a low-tax jurisdiction and taxes that income up to the minimum rate (after crediting any covered taxes on that income). The IIR imposes a top-up tax only on that portion of the low tax income of a foreign Constituent Entity which is beneficially owned (directly or indirectly) by the member of the group that applies the IIR (the Parent). 411. The IIR operates in a way that is similar to a CFC rule in that it subjects a domestic taxpayer to tax on its share of the foreign income of any controlled subsidiary.
- Undertaxed Payment Rule (UTPR): De acordo com esta regra, para evitar a erosão da base de cálculo, quando a empresa de um país A negocia com uma empresa da economia digital que tem seu lucro suficientemente tributado no país B, o país A pode vedar a dedutibilidade da despesa incorrida pela primeira com a segunda empresa. Se, na situação específica, a regra IIR já estiver sendo utilizada e for suficiente para se atingir a tributação mínima global, não seria necessário aplicar o UTPR:
- Subject to tax rule: Outra possibilidade apresentada sob o Pilar 2 seria a regra de tributação na fonte dos rendimentos auferidos por empresa da economia digital não-residente, quando o país de sua residência não tributar o suficiente.
- Switch-over rule: Esta regra estabelece que, sob os tratados para evitar a dupla tributação, quando o país que deveria tributar a renda não o fizer, o outro país ganha o direito de tributar, de tal maneira que a renda seja efetivamente tributada por esse outro país. Muito embora o principal foco dos estudos da OCDE nesta regra sejam as situações de matriz e estabelecimento permanente, a ideia é não permitir que os tratados sejam utilizados para se evitar a tributação (p. 124):
- The aim of the switch-over rule would allow the state of the parent’s residence to apply an income inclusion rule to tax the income of the PE in those cases where the income inclusion rule would apply as a matter of domestic law. The switch-over rule would permit the residence state to tax the low-tax profits of a PE up to the agreed minimum rate, using the same ETR test as the income inclusion rule. The rule would, by virtue of its domestic law trigger, only apply when and to the extent that the head office was required to apply the income inclusion rule to the PE.
Assim, as normas propostas pelo Pilar 2, em se verificando situações em que a renda auferida pelas empresas da economia digital não sejam devidamente tributadas em seus países de residência, outros países tomariam iniciativas para assegurar a “tributação mínima global”.
Pois bem. O Brasil, como já comentado, vem participando ativamente do IF e das discussões da tributação da economia digital, e já se comprometeu a adotar os padrões mínimos (minimum standards) do BEPS. Nesse contexto, apesar de o Pilar 2 ainda não ter sido aprovado pelo IF e, assim, ainda não pode ser considerado padrão mínimo, vale analisar o que já existe na legislação brasileira em relação às soluções propostas sob o Pilar 2.
Income Inclusion Rule e tributação brasileira
A tributação de investimentos de empresas brasileiras no exterior, regulada principalmente pela Lei nº 12.973/2014, se pauta pelo regime de inclusão automática dos lucros auferidos no exterior, independentemente de sua efetiva distribuição como dividendos.
Essa tributação automática dos lucros auferidos no exterior por IRPJ e CSLL faz com que lucros oriundos de empresas investidas que estejam em países de baixa ou nenhuma tributação sejam tributados no Brasil à alíquota combinada de 34% ou 45%, dependendo do ramo de atividade da empresa brasileira. Se a empresa no exterior estiver em país de alta tributação, o imposto de renda corporativo pago no exterior pode ser compensado até o limite de IRPJ e CSLL incidentes sobre o mesmo lucro.
Ou seja, a legislação brasileira já contempla o income inclusion rule – regra de inclusão de lucros – para investimentos feitos no exterior por empresas brasileiras, independentemente do país de residência da empresa investida, fazendo com que lucros que já foram altamente tributados possam dispor da compensação de imposto de renda corporativo do outro país, e os lucros que não tenham sido tributados, ou cuja tributação tenha sido baixa, estejam sujeitos à tributação corporativa brasileira.
Portanto, no tocante ao income inclusion rule, o Brasil dispõe de regras mais amplas para tributar os lucros de investimentos de pessoas jurídicas brasileiras em empresas estrangeiras, sejam elas da economia digital ou não.
Undertax payment rule (UTPR) e normas brasileiras
Como visto, a recomendação da OCDE é que, havendo a possibilidade de um determinado pagamento feito a uma empresa de outro país não ser devidamente tributado por imposto de renda, e não sendo possível utilizar o income inclusion rule, sejam estabelecidas regras que limitem ou proíbam a dedução de despesas em transações com essa empresa de outro país.
No caso brasileiro, a lei que introduziu as normas de subcapitalização – Lei nº 12.249/2010 – trouxe também normas que restringem a dedutibilidade de despesas para fins de IRPJ e CSLL quando o beneficiário estiver em paraíso fiscal ou for beneficiário de regime fiscal privilegiado, sendo ou não do mesmo grupo econômico.
De acordo com o artigo 26 dessa lei, as despesas com beneficiários nessas condições são indedutíveis, a menos que a empresa brasileira demonstre: I – a identificação do efetivo beneficiário da entidade no exterior, destinatário dessas importâncias; II – a comprovação da capacidade operacional da pessoa física ou entidade no exterior de realizar a operação; e III – a comprovação documental do pagamento do preço respectivo e do recebimento dos bens e direitos ou da utilização de serviço.
Assim, a preocupação de se assegurar uma tributação mínima no Brasil pela indedutibilidade das despesas correspondentes estaria atendida para as empresas em paraísos fiscais ou sujeitas a regimes fiscais privilegiados, do mesmo grupo econômico ou não.
Subject to tax rule e tributação brasileira
No tocante à regra subject to tax, o Brasil já impõe imposto de renda na fonte (“IRFonte”) de 15% sobre os pagamentos de serviços, royalties e outros intangíveis (tais como direitos autorais, direitos de transmissão etc.) para beneficiários no exterior, conforme artigos 744, 764 a 767 do Decreto nº 9.580/2018 (Regulamento do Imposto de Renda).
Os serviços e intangíveis abrangidos pelo IRFonte são tanto aqueles da chamada “economia tradicional”, quanto aqueles da economia digital, de tal maneira que, os negócios digitais, em geral, podem ser tributados por IRFonte no momento de sua disponibilização ao beneficiário residente no exterior.
Vale notar que, outros países, para assegurar tributação na fonte sobre a economia digital, vêm implementando normas tanto de imposto de renda na fonte, quanto criando tributo específico – imposto sobre serviços digitais (digital services tax).
Assim, o Brasil já dispõe de normas de imposto de renda tipo subject to tax rule, tanto para serviços e intangíveis “tradicionais”, quanto para serviços e intangíveis digitais.
Switch-over rule e tratados brasileiros
As normas da Convenção Multilateral para Implementação de Medidas relativas a Tratados Tributários para Prevenir a Erosão da Base de Cálculo e a Transferência de Lucros (MLI), assinada por mais de 80 países, contempla regras no sentido de atender a preocupação do switch-over rule do Pilar 2. No entanto, o Brasil por não aderir ao MLI.
A maior parte dos acordos para evitar a dupla tributação que o Brasil tem em vigor não contemplam cláusula de switch-over rule. Porém, nas renegociações desses acordos que as autoridades brasileiras vêm realizando, há a preocupação de inclusão de normas que impeçam a utilização dos acordos para se evitar ou reduzir demasiadamente a tributação (normas de limitação de benefícios), e assegurem, em não havendo tributação no país que deveria tributar, que o outro país possa tributar.
Assim, switch-over rule vem sendo, aos poucos, adotados nas renegociações dos acordos para evitar a dupla tributação que o Brasil tem em vigor, bem como nos novos acordos que ainda não entraram em vigor.
Conforme o aqui exposto, é interessante verificar que, mesmo não tendo implementado normas de imposto de renda específicas para a economia digital, uma boa parte das propostas do Pilar 2 já é atendida pelas normas atualmente em vigor no Brasil, muito embora as normas brasileiras não tomem em conta os critérios da tributação mínima global
Portanto, a despeito das discussões internacionais sobre a tributação da economia digital, o Brasil dispõe de instrumentos para tributar a renda oriunda dos serviços digitais prestados e intangíveis digitais comercializados por empresas localizadas em outros países.
[1] Base Erosion and Profit Shifting – Projeto da OCDE/G20 para combate do planejamento tributário agressivo e abusivo
[2] OECD (2020), Tax Challenges Arising from Digitalisation – Report on Pillar Two Blueprint: Inclusive Framework on BEPS, OECD/G20 Base Erosion and Profit Shifting Project, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/abb4c3d1-en.
Fonte: Jota