Judiciário
O direito de criticar o presidente
Liberdade de imprensa e proteção constitucional às críticas dirigidas às pessoas públicas
Liberdade de imprensa e proteção constitucional às críticas dirigidas às pessoas públicas
Além de hábeis e irreprocháveis, Ricardo Noblat, Marcelo Feller, Hélio Schwartsman, Ruy Castro e Renato Aroeira têm em comum o infeliz fato de figurarem ilegalmente como investigados por suposto crime contra a segurança nacional[2], por “requisição”[3] do Ministro da Justiça e Segurança Pública, ao exercerem, cada qual à sua maneira, o direito de crítica em relação à postura do Presidente da República no cumprimento de suas atribuições e responsabilidades. Confundindo crítica, penalmente irrelevante e constitucionalmente permitida, com ofensa pessoal, o Ministro da Justiça se divorcia da Constituição e de um de seus mais formidáveis defensores: Celso de Mello.
Na tarde do dia 22 de março de 2011, o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, presentou a todos com um de seus mais célebres votos em defesa da liberdade de imprensa e de manifestação do pensamento. À época, o jornalista Cláudio Humberto, editor-chefe do Diário do Poder, endereçou duras críticas jornalísticas ao ex-desembargador do Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina, Francisco José Rodrigues de Oliveira Filho, que, por sua vez, reputou-as ofensivas à sua honra e, portanto, ilícitas. Condenado em segunda instância ao pagamento de indenização por danos morais, Cláudio Humberto bateu às portas da Suprema Corte, coberto de razão, alegando que a decisão infringiu a Constituição da República.
Relator do processo, o Min. Celso de Mello pontuou em seu voto que “a liberdade de imprensa, enquanto projeção das liberdades de comunicação e de manifestação do pensamento, reveste-se de conteúdo abrangente, por compreender, entre outras prerrogativas relevantes que lhe são inerentes, o direito de informar, o direito de buscar a informação, o direito de opinar e o direito de criticar”[4]. Inerente à liberdade de imprensa, a crítica que os meios de comunicação dirigem às pessoas públicas, “por mais dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos de personalidade”, se revestindo, portanto, de proteção constitucional.
De tal sorte, o direito de crítica é “plenamente oponível aos que exercem qualquer atividade de interesse da coletividade em geral, pois o interesse social, que legitima o direito de criticar, sobrepõe-se a eventuais suscetibilidades que possam revelar as pessoas públicas ou as figuras notórias, exercentes ou não de cargos oficiais”. Em nada importa se a manifestação formulada é amarga, irônica ou, ainda, se é grosseira, dura ou impiedosa, especialmente quando a pessoa a quem tais expressões forem dirigidas ostentar o status de Presidente da República, pois, nesta circunstância, “a liberdade de crítica qualifica-se como verdadeira excludente anímica, apta a afastar o intuito doloso de ofender”.
Logo, a crítica não é sinônimo de ofensa pessoal penalmente relevante. Além do mais, não há ginástica hermenêutica capaz de fazer uma encaixar na outra.
Nada obstante, se o interesse público é ínsito ao pleno exercício do Poder Executivo pelo Presidente da República e pelos Ministros de Estado, impensável uma democracia séria que imponha restrições à liberdade de imprensa e de manifestação. Ainda mais temerário quando esse suposto Estado Democrático se vale do próprio aparato para transformar autoridade em autoritarismo, cerceando o pluralismo ideológico, que legitima a divergência de opiniões e perseguindo quem pensa diferente. Portanto, arbitrária a postura do Ministro da Justiça em relação à crítica jornalística e inconciliável com a proteção constitucional da informação, pois o Estado, inclusive seu Presidente da República e Ministros de Estado, “não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as ideias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais da imprensa.” Felizmente, ecoando o voto do Min. Celso, as decisões dos tribunais têm controlado os sintomas autoritários e salvaguardado a Constituição.
O episódio 48 do podcast Sem Precedentes faz uma análise sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal (STF) em 2020 e mostra o que esperar em 2021. Ouça:
[2] Artigo 26, da Lei de Segurança Nacional: “Art. 26 – Caluniar ou difamar o Presidente da República, o do Senado Federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação. Pena: reclusão, de 1 a 4 anos. Parágrafo único – Na mesma pena incorre quem, conhecendo o caráter ilícito da imputação, a propala ou divulga.”
[3] Artigo 145, parágrafo único, do Código Penal; e artigo 31, IV, da Lei de Segurança Nacional.
[4] STF, 2ª T., AI 705.630 AgR, rel. min. Celso de Mello, j. 22.03.2011, DJE 06.04.2011.
FELIPE CHIAVONE BUENO – Advogado criminalista. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); pós-graduado em Direito Processual Penal pelo Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Universidade de Coimbra, em parceria com o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim); mestrando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Membro do IBCCrim, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) e da Comissão Especial de Direito Penal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP).
Fonte: Jota