As ordens são tão perversas que parecem saídas de um filme de guerra nazista, desses bem vagabundos.
Infelizmente não são diálogos canhestros de cinema, mas ordens de 2014 das autoridades chinesas contra os uyghurs, minoria étnica muçulmana que vive nas fronteiras da China com o Afeganistão, Cazaquistão e o Quirguistão. São 12 milhões, segundo dados chineses, dos quais 2 milhões estão presos, de acordo com pesquisadores e ONGs. Pela primeira vez uma comissão independente, formada por 33 especialistas entre pesquisadores e diplomatas, concluiu que a China comete o crime de genocídio, a mais grave acusação contra uma nação, de acordo com o conceito criado pelas Nações Unidas em 1948. Acusações similares já haviam sido feitas pelos Estados Unidos, tanto por presidentes democratas como por republicanos, mas um relato independente tira o possível viés político da imputação.
O termo genocídio foi criado em 1944 pelo jurista polonês Raphael Lemkim, um dos mais influentes na criação da legislação que nasceu após a Segunda Guerra para dar conta do extermínio de 6 milhões de judeus pelos nazistas. Segundo a ONU, genocídio são os crimes “cometidos com a intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso” por meio de assassinatos, esterilização, transferência forçada ou “sujeição intencional do grupo a condições de vida pensadas para provocar sua destruição física total ou parcial”.
A China preenche todos esses quesitos no caso dos uyghurs, segundo um relatório da Newlines Institute for Strategy and Police lançado na última segunda nos Estados Unidos. O Newlines é um think tank criado em Washington D.C. por um empresário muçulmano, Ahmed Alwani.
O documento é devastador para a diplomacia chinesa. Tudo que a China sempre negou, dizendo ser propaganda americana ou anticomunista, está no relatório: trabalho forçado, esterilização das mulheres, vigilância com reconhecimento facial em mais de mil mesquitas. Dezenas de igrejas foram destruídas ou reformadas para perderem as inscrições e grafismos muçulmanos e ficarem com ares chineses. A China justifica essa política agressiva com o pretexto de que são terroristas.
Em 2017 as autoridades dessa região escreveram um documento pedindo a aceleração da construção e reforma dos “campos educativos e de treinamento” para aumentar o número de uyghurs detidos. “Campos educativos e de treinamento” é um eufemismo para campos de concentração, de acordo com pesquisadores e jornalistas que estiveram por lá.
As prisões aumentaram porque os chineses não querem mais ver traços muçulmanos no país. A tolerância a barba comprida, véu, peregrinações religiosas e línguas minoritárias é cada vez menor. O país tem adeptos do islã desde por volta do ano 600, durante a dinastia Tang. Os uyghurs, falantes de uma língua próxima ao turco, ocupam essa região desde o século 18. Os chineses só conquistaram a região em 1759. Depois disso, houve várias rebeliões, a última delas entre 1944 e 1949, quando a etnia declarou independência em relação à China. A revolução comunista anexou a área novamente, tratada até hoje como uma região autônoma dos uyghurs, uma falácia, é claro. O Partido Comunista também deslocou milhões de habitantes da etnia han (o grupo dominante na China) para diminuir a influência muçulmana, o que deixou a região ainda mais em polvorosa.
A China não está nem aí para as pressões internacionais. As ordens de extermínio são de 2014; o documento pedindo mais rapidez na construção dos campos têm quatro anos. Um dos poucos países que têm editado medidas para enfrentar a política chinesa para os uighurs são os Estados Unidos. Há uma proibição americana para a importação de algodão produzido com trabalho forçado dessa etnia e veto de entrada nos EUA de quadros chineses que estão envolvidos nessa barbárie. No meio da guerra comercial contra a China, o ex-presidente Donald Trump aprovou no meio do ano passado uma política sobre direitos humanos para os uyghurs. Há também sanções norte-americanas contra um grupo terrorista islâmicos que têm bases na região. O presidente Joe Biden já criticou a política chinesa contra os uyghurs, mas deve adotar um tom mais ameno do que Trump costumava.
E a Alemanha? E o Japão? E a Comunidade Europeia? Impera o silêncio porque ninguém quer perder negócios com os chineses. Por mais pressão que haja dos eleitores alemães contra as violações dos direitos humanos na China, impera o pragmatismo das grandes corporações alemãs, cativas no mercado chinês antes de os americanos reatarem relações diplomáticas, em 1972.
Há uma estimativa de que a China vai ultrapassar a economia americana em 2030 ou, no mínimo, se igualar a ela. A pandemia da covid-19 levou a China a descobrir as maravilhas do “soft power”. O cerco aos uyghurs mostra que os chineses já ponderaram o preço que as violações custam à sua imagem e descobriram que é baixo, muito baixo. Tornar esse preço alto é um dos enigmas da diplomacia internacional.