Saúde
Quais as sequelas dos recuperados da covid? Das falhas de memória à fadiga incapacitante
Aproximadamente 70% dos pacientes continuam com queixas mesmo após “cura” da doença, de acordo com pesquisa da Unicamp. Alterações neurológicas e sensoriais ocorrem não só em pessoas que foram internadas, mas também em casos leves.
Após cerca de 7 meses desde a primeira infecção pelo novo coronavírus e com mais de 17 milhões de casos no mundo, as consequências a médio prazo do vírus no corpo variam de fadiga, perda do olfato e do paladar até falhas na memória, ansiedade, depressão e alteração no sono. A reabilitação tem resolvido boa parte de problemas ligados à recuperação de movimentos, de acordo com profissionais do setor. Por outro lado, as dúvidas sobre efeitos no sistema nervoso têm gerado inquietação em pacientes e em pesquisadores.
“É dramático, eu comprei um chip [de celular] para isso e as pessoas ficam mandando mensagem, ligam desesperadas porque estão cheias de problemas. Elas querem um tratamento, uma resposta, e ninguém tem. O País vai ter de se preparar para fazer reabilitação das pessoas”, afirma a neurologista Clarissa Lin Yasuda, do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas).
A médica coordena uma pesquisa com 504 pacientes diagnosticados com covid-19. De acordo com dados de questionários online, as queixas de pessoas que tiveram a doença são frequentes e incluem dor de cabeça, fadiga, alteração do olfato e do paladar, da memória e sonolência diurna. “Os relatos dos voluntários que nos procuraram assustam porque aproximadamente 70% persistem com queixas mesmo após terem se ‘curado’ da infecção por covid. Os pacientes não conseguem voltar a fazer o que faziam previamente”, revela Yasuda.
Um dado que chama atenção da pesquisadora é que 90% dos pacientes com sequelas não chegaram a ser internados. “Esses sintomas persistentes não eram esperados para os quadros leves”, alerta.
Eles querem um tratamento, uma resposta, e ninguém tem. O País vai ter de se preparar para fazer reabilitação das pessoas.Clarissa Lin Yasuda, neurologista da Unicamp
Em outros países, pesquisadores têm investigado a relação entre o SARS-CoV-2 e sintomas neurológicos, mas ainda é cedo para determinar se as sequelas neuropsiquiátricas são permanentes ou temporárias.
Um relatório com 217 pacientes hospitalizados em Wuhan, na China, origem da pandemia, encontrou manifestações neurológicas em quase metade dos pacientes com infecção grave (40 de 88), incluindo complicações cerebrovasculares, como AVCs (acidente vascular cerebral), encefalopatias e lesões musculares. O estudo foi publicado em abril no JAMA (Journal of the American Medical Association).
Fenômeno semelhante foi observado na Espanha, um dos países europeus mais atingidos pela covid-19. De 841 pacientes internados em 2 hospitais na cidade de Albacete, 57,4% desenvolveram um ou vários sintomas neurológicos, de acordo com pesquisa publicada na revista especializada Neurology.
Também há indicativos de que pacientes que passaram pela fase mais grave da doença — que inclui a tempestade de citocinas, uma resposta imunológica aguda — podem ter um declínio cognitivo, especialmente aqueles com condições prévias, como Alzheimer e doença de Parkinson.
“As evidências sugerem fortemente que os pacientes que sobrevivem à covid-19 correm alto risco de desenvolvimento subsequente de doença neurológica e, em particular, da doença de Alzheimer. Neurologistas, psiquiatras e cuidadores devem ser alertados para um possível aumento nesses casos em sobreviventes da covid-19”, alerta estudo publicado em junho por pesquisadores da Universidade de Bonn, na Alemanha, em conjunto com cientistas da University of Massachusetts Medical School e de da Michigan State University, ambas nos Estados Unidos.
No Brasil, Clarissa Lin Yasuda pretende acompanhar os 504 pacientes por 3 anos para monitorar os impactos do SARS-CoV-2. A primeira etapa da pesquisa no hospital envolve uma avaliação neurocognitiva, em que é testada principalmente a memória e a coordenação motora fina do paciente. Também será feita ressonância magnética e coleta de amostra do sangue para estudos imunológicos. A possível relação entre a resposta imunológica e as sequelas no sistema nervoso é um dos principais aspectos estudados em diversos países.
“A ressonância poderá evidenciar alterações no bulbo olfatório que podem estar associadas às alterações de olfato; poderemos identificar áreas isquêmicas e outros tipos de alterações mais sutis”, explica a pesquisadora. De acordo com neurologista, a equipe também irá analisar imagens de alta resolução para estudar em detalhes a substância branca e substância cinzenta do cérebro (através de imagens estruturais), bem como a conectividade cerebral (através de imagens funcionais)”.
A fadiga pós-covid
Uma queixa recorrente entre pacientes que passam pela fase mais grave da doença é uma fadiga que, em alguns casos, impede a pessoa de realizar as tarefas que antes eram parte da rotina. “Existem alguns estudos laboratoriais de alterações de anticorpos e de ressonância, mas, na prática, não tem nenhum marcador laboratorial para esses sintomas. O que a gente vê em alguns pacientes é uma angústia muito grande porque não consegue comprovar o que estão sentido. É algo que, do ponto de vista legal trabalhista, vai ter suas implicações”, alerta o neurologista Gabriel de Freitas, pesquisador do Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (IDOR) e da Universidade Federal Fluminense (UFF).
O médico é parte de um grupo de pesquisa liderado pelo IDOR para investigar sequelas neurológicas da covid-19 em pacientes com quadro graves. Ao menos 70 pacientes devem ser acompanhados por um ano. De acordo com Freitas, deve ser feita uma avaliação um mês após o início dos sintomas e outra 3 meses depois, para monitorar esse quadro semelhante ao da chamada síndrome da fadiga crônica.
De acordo com o neurologista, ainda não se sabe o percentual de pessoas com esse fadiga incapacitante nem fatores que tornam alguém mais ou menos suscetível a desenvolvê-la. Até o momento não parece haver uma correlação com a gravidade da doença ou com a idade, segundo o médico.
Se a falta de respostas sobre sequelas da doença preocupa, por outro lado Freitas afirma que geralmente pacientes com fadiga que têm acompanhamento multidisciplinar de reabilitação mostram boa evolução e não ficam com danos definitivos a longo prazo.
Epidemias e doenças neurológicas
Após as epidemias de síndrome respiratória aguda grave (SARS, na sigla em inglês), em 2003, e da síndrome respiratória do Oriente Médio (Mers), em 2012, foram relatadas várias sequelas neuropsiquiátricas, incluindo narcolepsia, convulsões, encefalite, encefalopatia e síndrome de Guillain-Barré, por exemplo. Essa última consiste em um distúrbio autoimune após uma infecção e ocorreu com mais intensidade no Brasil após os surto de zika, iniciado em 2015.
Tanto a SARS quanto a Mers são causadas pelo SARS-CoV-1, o primeiro coronavírus. Por ser um patógeno parecido com o SARS-CoV-2, são esperadas consequências semelhantes à pandemia atual. “A gente é um pouco míope. Um pouco depois do SARS-CoV-1 tem isso documentado na literatura. Foi um pouco de ingenuidade nossa não ver o que os outros vírus geraram e começar a investigar isso. Talvez tenha sido um pouco de ingenuidade, um pouco de correria de pessoas que estavam correndo tanto para salvar vidas, mas é provável que [isso] seja um problema nos próximos meses”, afirma Freitas.
A gente é um pouco míope. Um pouco depois do SARS-CoV-1 tem isso documentado na literatura. Foi um pouco de ingenuidade nossa não ver o que os outros vírus geraram e começar a investigar [essas sequelas].Gabriel de Freitas, neurologista do IDOR
Ainda não está claro por que algumas pessoas diagnosticada com covid-19 têm manifestações neurológicas e outras não. Pode ser que dependa do próprio organismo – como respostas imunes diferentes – ou que tenham sido infectadas por diferentes tipos do SARS-CoV-2.
Também não está comprovada a relação da fadiga com danos neurológicos. “Somente com a avaliação de um grande número de participantes poderemos analisar as ressonâncias em busca de algum biomarcador específico associado à fadiga. Neste momento, ainda não temos respostas. Pode ser que a fadiga tenha a ver com a fraqueza respiratória. O quanto ela é emocional, respiratória ou muscular, a gente não sabe”, acrescenta a neurologista Clarissa Lin Yasuda, da Unicamp.
Confusão mental e perda de olfato
De acordo com a fisiatra Linamara Battistella, presidente do Conselho Diretor do Instituto de Medicina Física e Reabilitação Lucy Montoro, a fraqueza muscular após a internação por covid-19 muitas vezes está relacionadas a “alterações afetivas e emocionais, em que a pessoa passa a ter distúrbios de sono, de ansiedade”. “Elas têm tanta importância quanto as questões que aparecem como a neuropatia periférica, que aparece com muita dor”, afirma.
A professora da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) também chama atenção para um quadro de perda da autonomia. “A pessoa tem distúrbios de consciência, amnésias passageiras. Eu assumo um compromisso com você e no final do dia eu tenho dúvidas se assumi esse compromisso”, afirma. De acordo com ela, esse tipo de distúrbios tem sido transitório entre os pacientes infectados por coronavírus e acompanhados na reabilitação.
Essa alterações cognitivas têm sido chamadas de brain fog em alguns estudos sobre a covid-19 em outros países — o equivalente a uma “confusão mental”.
Ainda não há conclusões científicas sobre as consequências da pandemia ligadas a transtornos mentais. Estudos apontam para possível ocorrência de transtorno do estresse pós-traumático em pessoas contaminadas, assim como agravamento de quadros psiquiátricos de pacientes com condições prévias.
Pesquisadores também entendem que podem surgir danos à saúde mental em quem não foi infectado, associados ao isolamento social e aos impactos econômicos provocados pela crise mundial.
Outras sequelas da covid-19 ainda em estudo são agravamento de quadros de dor crônica e impactos a longo prazo de sintomas da fase aguda, como perda de olfato e disfunções renais.
Sequelas da covid ou da internação?
Há uma relação entre a fadiga e as sequelas no corpo causadas pela própria hospitalização, em casos graves. “Nos pacientes com internação prolongada pelo quadro grave, há uma perda de massa muscular muito intensa. Tem pacientes que pesavam 60 quilos e perderam 15, 20 quilos de massa muscular na internação. Eles não têm como se sustentar em pé, como fazer atividades pela perda brutal de massa muscular”, afirma o fisiatra Eduardo de Melo Carvalho Rocha, vice-presidente da Associação Brasileira de Medicina Física e Reabilitação (ABMFR).
Tem pacientes que pesavam 60 quilos e perderam 15, 20 quilos de massa muscular na internação. Eles não têm como se sustentar em pé, como fazer atividades pela perda brutal de massa muscular.Eduardo de Melo Carvalho Rocha, da ABMFR
De acordo com o pneumologista Gustavo Prado, do Hospital Alemão Oswaldo Cruz, em São Paulo, a miocardite, uma alteração no músculo do coração, também pode contribuir para essa fraqueza. “Saiu um estudo recentemente mostrando que, mesmo em casos leves, metade dos pacientes apresenta alteração na ressonância magnética do coração depois de um tempo após a alta”, conta. “É uma doença que acomete provavelmente todos os sistemas orgânicos, seja pela ação direta do vírus, seja por essa resposta inflamatória muito exagerada do organismo. A tradução disso tardiamente é a manifestação de vários sintomas: fraqueza muscular, mudança de humor, falta de ar, tudo isso por um período às vezes bastante longo”.
Há danos provocados no corpo pelo SARS-CoV-2, mas também os causados pela internação nos casos graves, o que os médicos chamam de “síndrome-pós UTI (unidade de tratamento intensivo)”. As queixas incluem dificuldade para engolir, feridas causadas pela posição em que o paciente fica no leito e danos motores devido à perda de massa muscular e à compressão dos nervos.
“As internações têm sido muito prolongadas e pacientes com internações prolongadas, especialmente em UTI, permanecem um período longo em ventilação mecânica. Portanto, [ficam] com sedação, que muitas vezes pode ser profunda, às vezes com drogas que bloqueiam a condução muscular e o uso prolongado dessa estratégia e a imobilidade aumentam os riscos de desenvolvimento de neuropatias – alterações das funções dos nervos, principalmente os nervos motores, responsáveis pela condução dos impulsos que origina movimentos – mas também disfunções dos músculos, as miopatias”, afirma Gustavo Prado.
Um dano permanente do pós-covid pode ocorrer nos pulmões: a fibrose, um tipo de cicatriz após uma lesão que pode ser provocada tanto pela doença quanto pela própria ventilação mecânica. “Quando o paciente desenvolve fibrose pulmonar, na imensa maioria das vezes, ela não só não é reversível, como pode ser progressiva, independe de cessado o estímulo original, que foi o gatilho dela”, afirma o pneumologista.
O que acontece nesses casos é que esse novo tecido nos pulmões deixa o órgão mais endurecido, “muito difícil de ser expandido, pouco funcional e interfere na troca de gases, que é o papel principal do pulmão”, aponta Prado. Com isso, a pessoa passa ter menos fôlego e pode se cansar facilmente para tarefas como subir uma escada ou carregar peso. Outro sintoma é uma tosse seca difícil de controlar, de acordo com o pneumologista.
Em casos extremos, pacientes em cuidado intensivo também sofreram amputações devido à trombose, que reduz o fluxo sanguíneo para partes do corpo, ainda que sejam usados anticoagulantes para evitar chegar a esse ponto.“Nós não estávamos acostumados. A gente não tem um [quadro] similar com outras doenças prévias. Muitas dessas alterações estamos descobrindo nesse momento”, aponta Eduardo Rocha, da ABMFR.
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