Nacional
O Congresso
Atribui-se ao Doutor Ulysses Guimarães uma resposta que se incorporou ao folclore político de Brasília. Perguntado sobre a baixa qualidade da composição do Congresso, teria respondido. Você acha ruim? Pois aguarde a próxima legislatura.
Como vaticinou o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, a maior parte das pessoas acredita que a cada legislatura a qualidade do nosso Parlamento piora. O descrédito só faz aumentar.
O primeiro artigo da Constituição Federal do Brasil estabelece que o Estado Democrático de Direito é a forma pela qual o Brasil se constitui. Nosso Estado deve garantir a proteção aos direitos de propriedade (origem da formação do Estado) e, no mesmo nível de importância, assegurar um vasto conjunto de garantias fundamentais e respeito à dignidade humana. O resumo feito pelo professor de Direito Constitucional Edgard Leite é preciso: “No Estado Democrático de Direito, as leis são criadas pelo povo e para o povo, respeitando-se a dignidade da pessoa humana”.
A mais importante característica dessa forma de regime é a soberania popular. Para que esta alçada não seja diminuída por uma hipertrofia, os Poderes do Estado são separados e instados a trabalhar em harmonia. A sociedade elege um Legislativo para aprovar as normas legais, que limitarão a ação de um Executivo, também escolhido por voto popular, e determinarão ao Judiciário – escolhido por regras previstas em lei – as normas que servirão para o julgamento de reclamações.
É instigante observar como os interesses de uma sociedade, com mais 200 milhões de pessoas, se organizam dentro de uma assembleia de 594 senadores e deputados. Imaginem como são organizadas a agenda e considerados os detalhes de interesses tão distintos como os das 27 unidades federativas, das corporações de diversos tipos de servidores, dos movimentos sociais, dos industriais, dos comerciantes, dos prestadores de serviços, do setor financeiro, do mundo rural, das periferias urbanas e de tantos interesses difusos, como direitos associados às crianças, ao meio ambiente, aos direitos humanos e por aí vai, em uma lista sem fim.
Pois esse é o trabalho diário dos políticos que representam a população nas várias assembleias parlamentares, dos municípios, estados e no Congresso Nacional. Quem não conhece o funcionamento do Congresso pode até acreditar que cada um de seus membros está ali para representar o todo, o conjunto de uma sociedade populosa e que ocupa um continente territorial, como o Brasil. Mas não é assim. Cada representante tem o seu poder outorgado por uma parte, por um segmento da sociedade, cuja legitimidade é igual a qualquer outra. O Brasil está representado pelo conjunto e qualquer limitação à expressão de uma parte, por minoritária que seja, descaracteriza a dimensão e a grandeza da Nação.
Lembro do domingo 17 de abril de 2016, quando a Câmara dos Deputados decidiu pela autorização do processo de impedimento da Presidente Dilma Rousseff. Cada parlamentar chamado a votar fez uma declaração e se expôs de modo que o Brasil pudesse ver a sua cara; não me refiro ao rosto do parlamentar, mas a cara do Brasil. Muitos ficaram assustados com o que viram.
Assisti recentemente a Borgen, uma série televisiva dinamarquesa de ficção política, criada e transmitida originalmente entre 2010 e 2013. A história mostra as negociações entre os interesses que existem na política daquele país. A personagem principal é uma líder partidária que se converte na primeira mulher a alcançar o cargo de primeiro-ministro da Dinamarca. O termo Borgen é a forma coloquial utilizada para se referir ao Palácio de Christiansborg, onde estão sediados os Três Poderes do governo parlamentarista dinamarquês, o Legislativo, o gabinete do primeiro-ministro, chefe do Poder Executivo e o Supremo Tribunal, organismo maior do Poder Judiciário.
A série mostra com didatismo os dilemas da vida pública, onde nunca é possível ganhar tudo e vencer sempre. As negociações terminam com cada parte abrindo mão de algo em troca do que lhe é essencial. As questões de princípios são apresentadas como limites institucionais para cada grupo partidário e ideológico. A vida particular dos representantes da população se entrelaça com as questões de Estado, criando um drama interessante e que prende o espectador.
O mérito da série é apresentar a defesa de interesses com respeito e legitimidade. Os verdes, os liberais, os sociais democratas, a direita, o centro e a esquerda todos são considerados peças relevantes do jogo de poder, no democrático regime do país nórdico. Como os interesses defendidos são explícitos, fica fácil entender como as coisas funcionam.
Aqui, e atualmente, não temos a mesma compreensão e nem o mesmo respeito pelo jogo congressual da democracia. Parte se explica pela pouca idade de nossa cultura democrática, mas outra parte é mesmo sinal dos tempos. Muitos não creem mais no regime das liberdades democráticas e acreditam que só um regime de força, autoritário, seria capaz de dar conta dos desafios e das incertezas do momento.
Em seu brilhante livro “O tempo dos governantes incidentais”, o cientista político Sérgio Abranches lembra que “o desafio democrático faz tempo deixou de ser uma questão apenas política. Não há como revigorar a crença na democracia sem desenhar novas políticas de redistribuição e proteção social, compatíveis com as demandas e limitações da transição.”
De que transição fala Abranches? Da passagem de uma sociedade industrial de base analógica para uma outra, chamada por hora de sociedade do conhecimento, baseada em tecnologia digital. Estamos em meio a uma revolução que muda completamente a forma de produção e distribuição de bens e serviços. Os câmbios são profundos e se alastram por todas as áreas. Estamos naquele momento em que “tudo o que é solido se desmancha no ar” e no qual parcelas importantes da população não se sentem acolhidas, protegidas e sequer representadas.
São nesses períodos de transição, quando a sociedade vive grande desassossego que as posições políticas costumam ficar polarizadas e aflorar ideias reacionárias, buscadas em um passado que nunca existiu e trazidas como solução para problemas que ainda não são completamente conhecidos.
O descrédito do regime democrático é passageiro e, acredito, será superado por novas formas de exercer a soberania popular na defesa dos princípios da dignidade humana. É importante lembrar que não se vive fora de seu tempo e prestar atenção no que disse Ulysses Guimarães: “O tempo não perdoa quem não sabe trabalhar com ele”.
MILTON SELIGMAN – Professor do Insper, Global Fellow do Woodrow Wilson Center’s Brazil Institute e ex-ministro da Justiça
Jota