Nacional
Novo Marco do Saneamento: o regime de transição como oportunidade
Superação das indefinições ainda existentes é crucial
O Novo Marco do Saneamento (Lei nº 14.026/2020) estabeleceu uma série de dispositivos com o objetivo de edificar o procedimento de transição dos operadores e dos contratos às novas regras, não só fixando metas de universalização e normatizando como será a participação da União no setor, como também oportunizando a migração dos contratos de programa para o novo modelo de prestação (concessão).
Nesse contexto, não obstante as incertezas que tangenciam o período de transição, vislumbra-se, concomitantemente, uma combinação de condições favoráveis. Com efeito, no setor como um todo, o momento é propício para aproveitar a necessidade de aderência às novas regras para modernizar os contratos, lançando mão de cláusulas que assegurem maior segurança jurídica.
Nessa linha, observa-se que as normas trazidas pela Lei nº 14.026/2020 produzem efeito também sobre os negócios jurídicos celebrados antes de sua vigência e, ainda que não sejam endereçadas formalmente como “normas transitórias”, possuem o condão de um regime jurídico transitório, uma vez que incluem as situações jurídicas constituídas antes de julho de 2020. Assim, o Novo Marco determina expressamente que os aditamentos contratuais realizados para ajustar os instrumentos vigentes deverão contemplar a inclusão das metas de universalização e demais obrigações que garantam o avizinhamento destes contratos aos novos contratos de concessão, desde que também sejam revistas suas equações econômico-financeiras.
Uma importante disposição transitória estabelecida pelo Novo Marco foi a estipulação do prazo de 31 de março de 2022 para que todos os contratos estejam adaptados à nova legislação – com a inclusão de metas e universalização de 99% para o atendimento de água e 90% para coleta e tratamento de esgotos até 31 de dezembro de 2033. Em suma, o regime de transição estabelece que (i) os contratos que não possuem metas de abastecimento de água potável e de esgotamento sanitário deverão incluí-las no prazo estabelecido; e (ii) os contratos celebrados por meio de procedimento licitatório que possuam metas diversas das descritas acima permanecerão inalterados, podendo ser aditados para o alcance das metas, desde que observado o equilíbrio econômico-financeiro e/ou o titular do serviço deverá buscar alternativas para garantir o atingimento das metas (i.e. prestação direta da parcela remanescente e licitação complementar). Ainda que passíveis de aditamento, dada a realidade díspar do país, a implementação fática deste regime de transição demandará um esforço coletivo da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), das agências subnacionais e dos entes titulares para viabilizar o atingimento das metas e a parametrização durante o regime de transição.
Com vistas a viabilizar a universalização dos serviços até 31 de dezembro de 2033, a redação do novo artigo 10-B da Lei nº 11.445/2007 dispõe sobre a obrigatoriedade de comprovação da capacidade econômico-financeira tanto para os contratos de concessão em vigor quanto para os contratos de programa celebrados pelas estatais, também conhecidas como CESBs (Companhias Estaduais de Saneamento Básico). Isto é, a metodologia que determinará a manutenção das companhias estaduais será aferida com novos índices de capacidade econômico-financeira, por recursos próprios ou por contratação de dívida, o que pode levá-las a perder os contratos caso não consigam comprovar que possuem meios para fazer os investimentos necessários à universalização.
O requisito supracitado é de extrema importância pois, em regra, nos contratos de programa – celebrados sem licitação – não há a oportunidade de verificar a capacidade financeira das companhias e garantir a sustentabilidade dos investimentos no longo prazo. De acordo com a Lei nº 14.026/2020, as normas seriam regulamentadas por meio de decreto em até 90 dias após a sanção (outubro de 2020) – cenário que segue sem definição – prejudicando a transição saudável do setor, uma vez que não se sabe qual será a sistemática utilizada para medir a capacidade econômico-financeira dos operadores.
O risco é de que o atraso na publicação da regulamentação encurte o período de transição das empresas ao novo modelo.
No caso das CESBs[i], em especial quando existir o risco de perda das concessões, é natural que seja avaliada a eventual privatização, pois tal saída permite a conversão do contrato de programa em concessão e, portanto, representa a chance de substituir um contrato defasado por um instrumento mais moderno, agregando valor e previsibilidade ao ativo e atraindo mais interessados na privatização.
Tendo em vista a precariedade de grande parte dos contratos do setor, o momento é extremamente propício para antecipar tendências já entabuladas em setores mais maduros que não irão, necessariamente, afetar o equilíbrio contratual, mas que representarão maior segurança jurídica. Nesse sentido, a conjuntura favorece a modernização e o “retrofit” dos instrumentos jurídicos utilizados, com espaço para inclusão e/ou aperfeiçoamento de disposições relativas, por exemplo, à matriz de risco (risk sharing) e sua correspondente alocação, revisão contratual periódica, receitas acessórias e adoção de meios privados de solução de conflitos, como a arbitragem.
É indubitável que o regime de transição previsto no Novo Marco configura uma oportunidade para o aprimoramento dos contratos vigentes e futuros. Para tanto, espera-se que sejam feitos avanços céleres em prol da superação das indefinições que ainda persistem para que haja bases minimamente sólidas para a tomada de decisões. Afinal, é tempo de aproveitar a tempestade perfeita.