Educação & Cultura
“É preciso derrubar o muro que separa os alunos da rede pública do ensino superior”
Muitos jovens da periferia têm interesse em fazer faculdade, mas não fazem ideia de como ingressar na universidade. Fundador conta como uma iniciativa voluntária começou a mudar essa realidade
O que motivou uma pessoa como eu, morador do bairro com mais favelas da minha cidade, a ingressar no curso de Economia de uma das universidades mais elitistas do país? Bom, certamente não foi a proximidade que tive, ao longo de minha vida, do ensino superior, pois, na verdade, não tive proximidade alguma. Pensando agora, o incentivo inicial não foi ingressar em uma universidade, mas tentar um caminho diferente de todos ao meu redor, na esperança de resultados diferentes e uma vida de mais possibilidades.
Terminei o ensino médio em 2012 e durante os dois anos seguintes estudei para vestibulares. Nesse tempo, tive o privilégio de ter acesso a informações que, infelizmente, minhas irmãs, pais e vizinhos não tiveram. Por outro lado, também sofri por trilhar um caminho desconhecido por todos ao meu redor. Lembro-me de inúmeras vezes em que fui chamado de vagabundo e questionado sobre a razão de não estar trabalhando, apenas estudando. Lembro-me também de outras vezes que ouvi que a universidade era apenas para ricos e eu era arrogante e metido apenas por estar tentando entrar em uma. Hoje, entendo que as pessoas que me diziam aquilo, em algum nível, diziam por medo. Medo de um caminho que nunca tiveram a oportunidade de começar. Medo do desconhecido, pois, para elas, a representação da segurança era o holerite no final do mês, garantindo que teriam comida na mesa. E isso eu não tinha.
Ingressei na USP, campus de Ribeirão Preto, em 2015 e fiquei impressionado com a incrível estrutura e com a clara diferença financeira entre mim e a grande maioria dos meus colegas de turma. Muitos já haviam conhecido outros países, enquanto eu, só para ir ao cinema e comer um lanche, precisava me planejar, e muito. Quando estava no meu bairro, via pobreza e desigualdade. Chegava à universidade e parecia uma cidade dentro da minha cidade. O choque entre esses dois mundos me incomodou muito: estava em um ambiente de estrutura incrível e não era necessário pagar mensalidade para estudar lá. Assim, eu me questionava: por que minhas irmãs e vizinhos não estão aqui também?
Uma pesquisa para abrir os olhos
Para responder a essa pergunta eu fiz duas pesquisas com alunos do último ano do ensino médio da rede pública: uma regional, em 2016, e outra nacional, em 2017. Os dados me mostraram que há, sim, interesse em estudar em uma universidade, mas as pessoas não fazem ideia de como ingressar. A informação tornou-se um privilégio, e a falta dela constrói o muro que afasta os alunos da rede pública de universidades públicas.
Na tentativa de desconstruir esse muro com informação, nasceu em 2017 o Salvaguarda, um programa social sem vínculo governamental e constituído inteiramente por trabalho voluntário. Desde então, trabalho todos os dias e vivo uma incrível e desafiadora jornada de construir e manter uma grande e articulada organização social e voluntária dentro de uma sociedade capitalista.
Para isso, tenho e tive o apoio de pessoas incríveis, especialmente a Hariff, que conheci um dia por acaso na universidade, antes mesmo do Salvaguarda existir, e tive uma grande intuição de que ela era incrível. Convidei-a para a primeira visita em uma escola e fiquei impressionado com sua habilidade de fazer experiências pessoais virarem discurso. Os alunos a amaram, pois se identificaram com ela. Era de outro bairro periférico da cidade e fazia psicologia na USP. Assim, nascia uma incrível relação entre nós, que se mantém até hoje, e ela continua sendo uma agente importante na construção do Salvaguarda.
Auxílio a 25 mil jovens em todo o país
Os voluntários do programa, assim como eu, acreditam que seja possível mudar o país através da educação. Graças a eles, hoje, aquela iniciativa que começou auxiliando 1.375 alunos da região e tinha uma rede de cerca de 100 voluntários se tornou nacional e o maior programa de auxílio para alunos da rede pública no país. Neste ano, temos voluntários em todas as universidades públicas do país e capacidade para auxiliar mais de 25 mil estudantes de todas as regiões.
Na coluna Vozes da Educação vamos contar como construímos o nosso sonho, que é alcançar todos os alunos da rede pública do país. Este é o texto de estreia da coluna quinzenal. Ela intercalará textos meus e de estudantes do ensino médio, um de cada estado. Eles têm muito o que dizer, e este espaço é uma oportunidade de ampliar suas vozes e aproximar os leitores da realidade desses jovens. Afinal, quem melhor para falar sobre eles do que os próprios?