ECONOMIA
A Lei 10.214 e o Sistema de Pagamentos Brasileiro
Desenho do sistema é crucial na promoção da estabilidade econômica, especialmente nas situações de disrupção
A reforma do Sistema de Pagamentos Brasileiro (SPB) em maio de 2002 aprimorou a gestão do risco sistêmico no Brasil e a Lei 10.214, de 27 de março de 2001, é um dos seus pilares.
Sistema de pagamentos é o conjunto de infraestrutura, de regras e de instituições que viabiliza a transferência de fundos na economia. Por sua natureza de rede, o sistema de pagamentos tem o potencial de propagar problemas na cadeia de pagamentos e recebimentos. Por isso, seu desenho é crucial na promoção da estabilidade econômica, especialmente nas situações de disrupção.
Para compreender a importância do marco legal que a Lei 10.214 representa é necessário entender os problemas que existiam e foram tratados com a restruturação do SPB em 2002. Eram os seguintes:
- Os sistemas de compensação e de liquidação de ativos e de transferência de fundos não possuíam mecanismos efetivos de gestão de riscos. Os sistemas de transferência de fundos consideravam como principal mecanismo de gestão de riscos o desfazimento do resultado multilateral da compensação, para retirar o inadimplente e refazer a compensação, que poderia resultar em valores de obrigações maiores em relação aos valores produzidos pela primeira compensação, causando incerteza na liquidação ou na capacidade de arcar com os novos valores. Os sistemas de liquidação de ativos não dispunham de exequibilidade das garantias e antecipavam a entrega do ativo sem a certeza do pagamento.
- Os regimes de insolvência civil, concordata, intervenção, falência ou liquidação extrajudicial tinham prioridade no acesso às garantias oferecidas para cobrir obrigações assumidas nos sistemas de compensação e de liquidação, inclusive aqueles oferecidos pelo Banco Central. Assim, havia incerteza da liquidação e da exequibilidade dos ativos constituídos como garantias, mesmo após o lançamento dos pagamentos e liquidações em reservas bancárias no Banco Central.
- Havia falta de reconhecimento legal e regulamentar da compensação multilateral como forma de reduzir o tamanho das obrigações no sistema de pagamentos, que criava incerteza sobre a finalização da liquidação e sobre o tamanho da obrigação após desfazer e refazer a compensação, para a retirada dos direitos e obrigações do inadimplente.
- Não havia regulação dos sistemas de compensação e de liquidação no sentido de tornar a gestão de riscos desses sistemas efetiva e completa e, com isso, tornar tais sistemas como contentores das inadimplências e evitar o contágio na cadeia de pagamentos da economia.
- Nesse cenário de insuficiência de regulação, de inefetividade da gestão de riscos dos sistemas de compensação e de liquidação e inexequibilidade de garantias, o Banco Central ficava refém dos lançamentos dos pagamentos interbancários feitos nas reservas bancárias (moeda de liquidação dos pagamentos entre bancos), pois, no caso de insuficiência de fundos em uma ou mais dessas contas, havia o receio de que a não aceitação dos lançamentos pudesse desencadear no risco sistêmico pelo contágio da inadimplência de um sobre os demais. Assim, o Banco Central mantinha a integridade do sistema por meio da aceitação de lançamentos a descoberto. Em outras palavras, o risco sistêmico era gerenciado via aceitação de saques a descoberto nas reservas bancárias, ou seja, com recursos públicos, sem que houvesse destinação para tal finalidade. Mesmo que voltada a não causar instabilidade ao Sistema Financeiro e à sociedade, tal situação gerava incentivos negativos para todo sistema (moral hazard).
Esse era o quadro de problemas que a Lei 10.214 resolveu.
A Lei 10.214 regulou a atuação das câmaras e dos prestadores de serviços de compensação e de liquidação no SPB, para torná-las parte da estratégia de contenção do risco sistêmico em caso de inadimplência ou em caso de o Banco Central não aceitar pagamentos sem a suficiência de recursos em reservas bancárias.
O artigo 2º da Lei define o SPB e delimita as entidades que o compõe, para deixar claro a quem se destinam os comandos da Lei.
O artigo 3º da Lei admite a compensação multilateral no âmbito de um mesmo sistemas de liquidação e compensação. Com isso e considerando a regulamentação complementar, após o momento da compensação multilateral, as obrigações dos participantes nesses sistemas estão dadas e não há incerteza quanto ao tamanho dos direitos e obrigações em tais sistemas. Além disso, a compensação multilateral reduz o risco de contágio, pois reduz o tamanho das obrigações e, consequentemente, torna a gestão de risco mais eficiente quanto às garantias requeridas para cobrir inadimplências.
O artigo 4º da Lei obriga que os sistemas de liquidação e de compensação assumam a função de parte contratante das transações cursadas por seu intermédio para fins de liquidação. Quem é parte na obrigação tem mais incentivos para a gestão mais efetiva dos riscos em caso de inadimplência. Esse é o objetivo do caput do artigo.
A assunção de obrigações de pagamento decorrente da função de parte contratante precisa estar acompanhada do comando para a gestão de risco, para que a contenção efetiva do risco ocorra. Por essa razão, o parágrafo 2º do artigo 4º da Lei obriga os sistemas de liquidação e de compensação a terem mecanismos de gestão de risco para garantir a certeza da liquidação, mesmo em caso de inadimplência.
Para que a rede de contenção dos riscos dos sistemas de compensação e de liquidação funcionem, é preciso que as garantias sejam legalmente exequíveis quanto ao propósito da sua destinação.
Nesse sentido, o artigo 7º da Lei possibilita a exequibilidade das garantias depositadas nos sistemas de liquidação, na forma dos seus regulamentos aprovados pelos reguladores.
Na maioria das vezes, a inadimplência de pagamentos está correlacionada à insolvência civil, intervenção, falência ou liquidação extrajudicial. Nesses casos, antes da Lei 10.214, havia prioridade desses regimes no acesso aos ativos constituídos como garantias em sistemas de liquidação, tornando frágil a certeza da liquidação e consequências sobre a fluidez da cadeia de pagamentos.
Por fim, o artigo 8º da Lei define o momento da certeza da liquidação, isto é, a partir dele a liquidação se torna irrevogável e irretratável. Desse modo, a partir do momento em que houver a tradição dos ativos e a transferência dos recursos nos sistemas de liquidação, não haverá mais a possibilidade de reversões dos pagamentos, mesmo nos casos em que foram ultimados mediante a utilização das garantias aportadas nos sistemas de gestão de riscos dos sistemas de liquidação.
Desse modo, criou-se a proteção jurídica para reforço da rede de contenção dos efeitos da inadimplência no SPB e, por isso, a Lei 10.214 é marco importante na regulação brasileira sobre gestão do risco sistêmico.