Judiciário
A Lei 10.214/2001 e as contrapartes centrais
Norma trouxe segurança jurídica sobre a efetividade do regime de salvaguardas
Na Exposição de Motivos que justificou a edição da Medida Provisória no 2.008, de 14 de dezembro de 1999 (que, após sucessivas reedições, converteu-se na Lei no 10.214/2001), o então Ministro da Fazenda Pedro Sampaio Malan destacou a importância do desenho adequado de um Sistema de Pagamentos para a higidez de qualquer sistema financeiro[1].
Relata a Exposição de Motivos que o tema “sistema de pagamentos” vinha recebendo especial atenção dos organismos financeiros internacionais desde o final da década iniciada em 1980, e que a preocupação central era o gerenciamento do risco potencialmente gerador de crise sistêmica nos sistemas financeiros.
A Medida Provisória foi proposta, nesse contexto, com o objetivo declarado de suprir vulnerabilidade identificada no Sistema de Pagamentos Brasileiro em comparação aos princípios, práticas e recomendações adotados nos principais centros financeiros internacionais, especialmente em relação à adoção de mecanismos adequados para as transferências financeiras e liquidações de operações nos mercados financeiros e de capitais, a fim de evitar que o Banco Central e, por consequência, a sociedade assumissem riscos de origem privada.
Nessa medida, o texto proposto buscou dispor sobre o papel das câmaras de compensação e liquidação[2] e trazer segurança jurídica sobre a efetividade do regime de salvaguardas e garantias aplicável a esses sistemas, mesmo no caso de inadimplência de seus participantes.
Como afirma a Exposição de Motivos, a respeito das câmaras de compensação e liquidação, “pretende-se que, mais do que pólos de tramitação de operações financeiras, sejam pólos de contenção de riscos potencialmente sistêmicos, tudo com o escopo principal de possibilitar redução drástica da álea hoje suportada pelo Banco Central do Brasil. Ou seja, quer-se que os riscos sejam devolvidos ao próprio mercado, que, em contrapartida, passa a beneficiar-se de regras que garantem a finalização das operações contratadas nos mercados financeiro e de capitais, mesmo nas hipóteses de insolvência civil, concordata, intervenção, falência e liquidação extrajudicial de um participante” (item 14).
A Exposição de Motivos deixa ainda evidente que, nos casos em que o volume e a natureza dos negócios oferecerem mais risco ao bom funcionamento do Sistema Financeiro Nacional, o Banco Central exigiria que as câmaras de compensação e liquidação assumissem o papel de contraparte central nas operações realizadas por seu intermédio, devendo contar com mecanismos operacionais e garantias suficientes para viabilizar a liquidação dos saldos em quaisquer circunstâncias[3].
Nesse sentido, o art. 4o da Lei no 10.214/2001, em redação substancialmente mantida desde a edição da Medida Provisória no 2.008/1999, prevê que as câmaras de compensação e de liquidação assumirão, sem prejuízo de obrigações decorrentes de lei, regulamento ou contrato, em relação a cada participante, a posição de parte contratante, para fins de liquidação das obrigações, nos subsistemas em que o volume e a natureza dos negócios, a critério do Banco Central, forem capazes de oferecer risco à solidez e ao normal funcionamento do sistema financeiro. Tais subsistemas deverão contar com mecanismos e salvaguardas que permitam às câmaras de compensação e de liquidação assegurar a certeza da liquidação das operações neles compensadas e liquidadas.
Na 14a reedição da Medida Provisória[4], o texto passou a contar com dispositivo que determina que as câmaras de compensação e de liquidação responsáveis por um ou mais ambientes sistemicamente importantes devem, além dos mecanismos e salvaguardas já previstos, separar patrimônio especial destinado a garantir exclusivamente o cumprimento das obrigações existentes em cada um desses sistemas, na forma da regulamentação editada pelo Banco Central.
A Lei no 10.214/2001 foi regulamentada pela Resolução CMN no 2.882 e pela Circular BCB no 3.057, de 30 e 31 de agosto de 2001, respectivamente.
A Circular BCB no 3.057/2001 define os sistemas sistemicamente importantes (art. 8o). Além disso, estabelece que a câmara ou o prestador de serviços de compensação e de liquidação de transações com ativos financeiros, títulos, valores mobiliários, derivativos financeiros e moedas estrangeiras que opere sistema de liquidação de operações negociadas em mercado de bolsa deve (i) assumir a posição de parte contratante para fins de liquidação das obrigações, realizada por seu intermédio, ressalvado o risco de emissor; e (ii) assegurar a liquidação das obrigações relativas às operações aceitas, constituindo patrimônio especial e adotando mecanismos de salvaguardas adequados (art. 11.-A, I).
Em abril de 2012, o Comitê de Sistemas de Liquidação e Pagamentos do Banco de Compensações Internacionais (Committee on Payments and Market Infrastructures – CPMI/BIS) e a International Organization of Securities Commissions (IOSCO) divulgaram os Princípios para Infraestruturas do Mercado Financeiro (Principles for Financial Market Infrastuctures – PFMI)[5], consistentes em um conjunto de princípios a serem seguidos na organização e operação das infraestruturas de mercado[6], com o objetivo de aprimorar sua segurança e eficiência e, de forma mais ampla, limitar o risco sistêmico e incentivar a transparência e a estabilidade financeira. Os países membros do CPMI/BIS e da IOSCO, incluindo o Brasil, se comprometeram a implementar os PFMI em suas jurisdições.
Com o objetivo de implementar a utilização dos PFMI no Brasil, o Banco Central divulgou o Comunicado no 25.097, de 10 de janeiro de 2014, por meio do qual informou ao mercado que tais princípios passariam a ser utilizados no monitoramento e na avaliação da segurança, eficiência, integridade e confiabilidade dos sistemas de compensação e liquidação integrantes do Sistema de Pagamentos Brasileiro. Posteriormente, por meio do Comunicado no 30.516, de 14 de março de 2017, o Banco Central divulgou os sistemas em funcionamento e quais os princípios que seriam aplicados no monitoramento e avaliação de cada um deles[7].
Nos termos do documento que divulga os PFMI, uma contraparte central se interpõe entre as partes de contratos negociados em um ou mais mercados, tornando-se o comprador de todos os vendedores e o vendedor de todos os compradores e, dessa forma, garantindo o cumprimento de todos os contratos em aberto (item 1.13).
No regime jurídico brasileiro, a contraparte central se torna parte de todas as relações contratuais por meio de novação subjetiva, na medida em que um novo vínculo obrigacional surge entre a contraparte central com cada uma das partes da relação jurídica originária, que é, em consequência, substituída[8].
Ao assumir o papel de parte das relações jurídicas, e considerando a compensação multilateral[9] das obrigações, a imposição de controles de riscos efetivos e os mecanismos e salvaguardas, a contraparte central reduz de forma significativa os riscos dos participantes e, consequentemente, o risco sistêmico dos mercados em que atua.
O primeiro princípio dos PFMI diz que uma infraestrutura do mercado financeiro deve ter base legal bem fundada, clara, transparente e eficaz para cada aspecto material de suas atividades. Nesse contexto, a Lei no 10.214/2001 ganha especial relevância, na medida em que fornece a base legal para as atividades realizadas pelas câmaras de compensação e de liquidação, inclusive para sua atuação como contrapartes centrais e toda a estrutura de garantias, mecanismos e salvaguardas que asseguram o adequado gerenciamento de riscos inerente às suas atividades.
Em novembro de 2020, o CPMI/BIS e a IOSCO divulgaram relatório sobre a implementação dos PFMI no Brasil[10], tendo como data-base maio de 2018. Em linhas gerais, o relatório conclui que o Brasil adotou medidas aplicáveis às infraestruturas do mercado financeiro que são completas e consistentes com os Princípios, inclusive em relação às câmaras de compensação e liquidação e às contrapartes centrais. Um dos apontamentos do relatório, entretanto, foi que coexistem no ordenamento jurídico brasileiro dois regimes, um anterior à divulgação do PFMI e outro posterior, sem que haja clara hierarquia entre eles.
Os objetivos que justificaram a edição da Medida Provisória que posteriormente foi convertida na Lei no 10.214/2001 e a divulgação dos PFMI são convergentes. Em ambos os casos, pretendeu-se a adoção de melhores práticas nas atividades das infraestruturas do mercado financeiro (entre elas, as câmaras de compensação e liquidação e as contrapartes centrais), de forma a minimizar riscos que potencialmente tenham efeitos sistêmicos.
Embora tenha sido editada antes da divulgação dos PFMI, como apontado pelo relatório do CPMI/BIS e da IOSCO de 2020, a Lei no 10.214/2001 tem cumprido esses objetivos, o que é evidenciado pela ausência de questionamentos sobre a validade ou eficácia dos seus comandos e pela solidez do nosso mercado em relação à atuação das câmaras de compensação e de liquidação, inclusive quando assumem o papel de contrapartes centrais.