ENTRETENIMENTO
United States v. Billie Holiday: o filme, a canção e o processo
Cinebiografia ajuda a compreender riscos de seletividade da Justiça criminal
Está finalmente disponível na Amazon a cinebiografia de Billie Holiday, que estreou ano passado nos EUA. O diretor Lee Daniels optou por retratar os últimos vinte anos da vida da grande cantora americana, um período difícil em que ela foi investigada pelo FBI por posse de narcóticos, chegando a cumprir um ano de prisão em um presídio federal.
Interpretada nesta película magistralmente pela atriz Andra Day (que disputou o Oscar por essa performance), Billie teve uma vida bastante tormentosa. Abusada sexualmente na infância, foi explorada em esquemas de cafetinagem e viciou-se em álcool e drogas. A música salvou sua vida, mas não a livrou das marcas do passado.
Ainda adolescente, começou a cantar em clubes do Harlem, onde foi descoberta pelo cultuado produtor de música negra John Hammond II, que estranhamente não é retratado no filme. Sua carreira no mundo do jazz progrediu meteoricamente devido a sua voz incomum e delicada, bem como à sua extraordinária capacidade de improvisar e de cadenciar os músicos que a acompanhavam.
Quase que do dia para a noite Billie Holiday saiu da pobreza e da marginalidade para se tornar uma estrela de primeira grandeza da música americana, fazendo muito dinheiro. Mas ela não esqueceu suas origens e a situação de exclusão social, discriminação e racismo dos americanos afrodescendentes. Holiday usou seu talento e sua posição para entoar uma canção de protesto contra o terrorismo que os negros sofriam no sul dos EUA e essa ousadia lhe renderia sérias dificuldades.
“Strange fruit”, a canção que traria a Billie muitos aborrecimentos, tem uma história curiosa, pois foi escrita por um filho de judeus russos emigrados. No dia sete de agosto de 1930 uma multidão ensandecida invadiu a cadeia pública da delegacia do condado de Marion, Indiana, e arrebatou três homens negros suspeitos de cometer um crime violento. Thomas Shipp, Abram Smith e James Cameron, detidos no dia anterior, eram acusados de haver assassinado o operário branco Claude Deeter e estuprado a sua namorada Mary Ball.
Cameron, o único dos três que era menor de idade (então com 17 anos), acabou escapando à tirania da turba graças ao depoimento de uma mulher branca que lhe forneceu um álibi. Os demais não tiveram melhor sorte: foram linchados e enforcados em uma frondosa árvore da cidade. O espetáculo aterrador de vendetta bárbara e cruel atraiu cerca de cinco mil pessoas, incluindo crianças.
Lawrence Beitler, um obscuro fotógrafo local especializado em fotos de estúdio “três por quatro”, também estava ali e registrou os fatos com sua câmera. A fotografia captava os dois homens negros enforcados e a “plateia” de brancos que assistia, com entusiasmo e aplauso, ao justiçamento primitivo. Há, dentre esses, um personagem no centro da foto, que aponta para os enforcados e com sua expressão desafiadora parecia dizer: “olha o que acontece em nossa cidade com os negros que não se comportam”.
A foto era tão impressionante que fez a fortuna do fotógrafo Beitler. Ele ganhou muito dinheiro vendendo cópias do instantâneo, tanto para os apologistas dos linchamentos de negros, como para os que denunciavam a barbárie desta conduta, comum no auge da segregação racial. Sete anos depois, em 1937, a foto perturbadora caiu por acaso às mãos de Abel Meeropol, que nunca a havia visto antes. Meeropol era um professor de inglês de escola pública em Nova Iorque, americano de origem judaica e comunista militante. A imagem do linchamento em Indiana o tocou profundamente e permaneceu vívida em sua memória por vários dias, inspirando-o a escrever um poema. “Bitter Fruit” (fruto amargo) foi publicado sob pseudônimo, em uma revista obscura, e não chamou atenção.
No ano seguinte, Meeropol, que era também um músico amador, transformou o poema em uma canção, com o nome de “Strange fruit”. Embora a barbárie retratada por Beitler tenha ocorrido em Indiana, no meio-oeste dos EUA, o compositor descreveu com impressionante força imagética os lichamentos no sul do país, onde eles eram muito mais frequentes e terminavam quase sempre com a vítima pendurada em uma árvore. O escritor contrastou as belezas da paisagem do Deep South e os modos supostamente cavalheirescos de seus habitantes com a carnificina brutal dos justiçamentos contra negros:
Árvores do sul carregam um estranho fruto/sangue nas folhas e sangue nas raízes/corpos negros balançando na brisa sulista/ fruto estranho balançando nos álamos;
Cenas pastorais do garboso Sul/olhos esbugalhados, a boca retorcida/o olor das magnólias frescas e doces/e o repentino cheiro de carne queimando;
Aqui está um fruto para multidões arrancarem/para a chuva empapar/para o vento cortar/para o sol apodrecer/para a árvore despejar/aqui está uma colheita amarga e estranha.
Meeropol interpretou ele próprio a canção em alguns comícios, sem maior repercussão, até que Billie Holiday a conheceu e decidiu interpretá-la, a partir de 1939, no clube noturno em que cantava em Nova Iorque, o “Café Society”, o primeiro estabelecimento desse tipo dessegregado da cidade. Não se sabe exatamente como “Strange Fruit” foi parar no repertório de Billie, que chegou mesmo a alegar na sua autobiografia (“Lady Sings the Blues”) ser coautora da obra, do que não há indícios. É provável que ela lhe tenha sido apresentada pelo proprietário do “Café Society”. De toda forma, pode-se até dizer que ela a reinventou, pois foi sua interpretação emotiva e triste que fixou a canção no imaginário coletivo, transformando-a em uma música de aberto protesto político.
A delicadeza e força de sua performance chamaram a atenção sobre a figura frágil e ao mesmo tempo desafiadora de Billie Holiday; suas apresentações começaram a provocar desconforto em políticos que queriam varrer para debaixo do tapete o terrorismo vergonhoso contra os negros no sul do país, especialmente em momento no qual discursos patrióticos começavam a dominar o panorama americano, com o advento da Guerra.
Agentes do FBI receberam solicitações de parlamentares do sul dos EUA para que investigassem a cantora e sua entourage. Os investigadores federais infiltraram agentes no grupo da cantora e ela foi presa por posse e consumo de entorpecentes. O processo ficou conhecido pelo nome das partes, como ocorre na Justiça americana: “United States v. Billie Holiday”. A artista comentou que ao ouvir o seu caso apregoado, sentiu que os Estados Unidos estavam contra ela. Pessimamente defendida em juízo (seu advogado faltou ao julgamento), acabou fazendo um acordo com a promotoria federal para cumprir um ano de prisão em um presídio feminino federal em West Virginia.
O pior para Billie foi que, como resultado do processo, ela perdeu sua credencial para apresentações em público na cidade de Nova Iorque, que então a prefeitura exigia para evitar que “viciados” se apresentassem em estabelecimentos que vendiam bebidas alcoólicas.
Apesar de conseguir manter-se em abstinência por um período, as dificuldades para retomar sua carreira depois da prisão levaram Billie a retomar o consumo de tóxicos e álcool, que foram determinantes para abreviar sua vida. A cantora morreu precocemente aos 44 anos, de cirrose hepática, em 1959.
Apesar dos progressos do processe penal que ocorreram nos EUA durante a Corte Warren nos anos 1960 (e que teriam evitado, por exemplo, que Holiday fosse julgada sem advogado), a história do processo envolvendo a célebre cantora deixa lições para o tempo presente, ao mostrar os perigos da seletividade e do uso político da justiça criminal, problema que é especialmente agravado em sociedades racialmente estratificadas.