Judiciário
Habeas Data – O remédio constitucional brasileiro para a proteção de dados
A doutrina e a jurisprudência têm nomeado como “remédio constitucional” a espécie de garantia fundamental que assegura aos indivíduos a possibilidade de provocar o poder público para a salvaguarda de seus direitos fundamentais.
Dentre os previstos, há o habea data, expressão latina que em tradução livre pode ser lida como “tenha as informações”.
Regulamentada pela Lei nº 9.507/97, a ação mencionada objetiva assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, bem como proceder à retificação ou anotação dos informes, quando não se prefira a realização por processo sigiloso.
Sobre ele, a doutrina assim dispõe:
“(…) O habeas data é considerado como um writ, uma garantia, um remédio constitucional à disposição dos cidadãos para que eles possam implementar direitos subjetivos que estão sendo obstaculados, assegurando o liame entre a normatividade e a normalidade. Como uma das espécies de remédios constitucional, ocupa um papel de relevo na teorética constitucional porque auspicia a garantia de direitos constitucionais, possibilitando sua concretização normativa. Sua inspiração adveio da Constituição portuguesa de 1976 e da Constituição espanhola de 1978, que previram instituto semelhante para resguardar o direito à informação e à transmissão de dados (…)[1].”
E de modo específico, a matriz constitucional é verificada no art. 5º, LXXII e LXXVII, litteris:
Art. 5º. […]LXXII – conceder-se-á habeas data:
a) para assegurar o conhecimento de informações relativas à pessoa do impetrante, constantes de registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público;
b) para a retificação de dados, quando não se prefira fazê-lo por processo sigiloso, judicial ou administrativo;[…]
LXXVII – são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data, e, na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania.
O art. 7º, da Lei nº 9.507/97 determina também que o habeas data será concedido para fins de anotação nos assentamentos do interessado, de contestação ou explicação sobre dado verdadeiro, mas justificável e que esteja sob pendência judicial ou amigável. O instituto do habeas data, tal como atrelado ao título do presente escrito, é novidade trazida pelo direito constitucional brasileiro.
Relativamente à essência deste remédio processual, parece bastante evidente que o instituto no Brasil surgiu como forma de mecanismo de acesso a dados de governos anteriores à CF/88, especialmente aqueles ditatoriais.
O fato é que, hoje não há dúvidas de que vivemos numa sociedade digital decorrente do uso maciço de tecnologias, desmaterialização de muitos trabalhos físicos e virtualização das relações humanas, o que nos deixa, no entanto, mais vulneráveis no tocante aos nossos dados pessoais.
E o tratamento ininterrupto e exponencial desse gigantesco fluxo de dados, que são processados e armazenados via big data[2] jamais, em tempo algum da história foi tão impactante e disruptivo frente aos paradigmas da economia[3].
Diante desta nova realidade percebeu-se a urgente necessidade de proteger as informações de cunho pessoal no sentido de resguardar a privacidade individual.
Para tanto, passamos a refletir sobre a ressignificação do habeas-data como remédio constitucional para acessar os dados muito além do aspecto público ou sigilo, mas como meio de se garantir a autodeterminação afirmativa.
Em particular, o Tribunal Constitucional alemão criou o direito à autodeterminação da informação através da interpretação dos direitos existentes de dignidade e personalidade humana[4].
É um direito de saber que tipo de dados é armazenado em bancos de dados manuais e automáticos sobre um indivíduo e implica que deve haver transparência na coleta e processamento desses dados.
O direito de controlar as informações sobre si mesmo estava sendo amplamente discutido em bastante literatura jurídica especializada, onde a necessidade dos cidadãos de controlar as informações armazenadas sobre eles não era apenas um ato de auto defesa contra abusos de terceiros, mas tornou-se um direito ativo contra o manuseio tecnológico de dados pessoais, o que criou um novo tipo de problema para o indivíduo[5].
No Brasil, pelas decisões insertas no RE n. 673707[6] (com repercussão geral) e Adin n. 6387, oriundas do Supremo Tribunal Federal, a “vitalização” da ação de habeas data fica clara, inclusive textualmente erigida pela Ministro Gilmar Mendes, por evidenciar sê-la a via de acesso a meios informáticos, ou não, alimentados por dados, para fazer valer o acesso, retificação, exclusão a dados. De outro lado, registre-se que incabível o Habeas Corpus, já que estamos a falar do ir e vir dos dados e não do físico[7].
Voltando a questão de fundo, podemos imaginar o uso do habeas data muito além, a exemplo de acesso a códigos fontes de algoritmos para averiguar se há ofensa a proteção de dados (art. 20, § 2º – LGPD) decorrente de enviesamento por questões raciais, econômicas, geolocalização, em serviços[9] com tomada de decisão automatizada, etc.
De outro lado, e com destaque novamente a LGPD, o habeas data, a depender da situação após exaurimento administrativo, pode viabilizar caso o impetrante deseje, acessar ou alterar seus dados (arts. 17, 18 e 19), principalmente para remover ou cancelar dados sensíveis, que podem prejudicar o direito à privacidade do indivíduo, como religião, ideologia política, orientação sexual ou qualquer outra informação potencialmente discriminatória. Há, pois, alinhamento instrumental e substantivo legal para que se implemente tal exegese.
Sem contar que tal instrumento, por estar contido na constituição federal, viabiliza por uma questão de dignidade da pessoa humana pleito de revisão de decisão automatizada, visando seja implementada por pessoa natural, suplantando qualquer limitação de norma processual inferior.
A importância, pois, desta ação é garantir um controle real sobre dados pessoais sensíveis, interrompendo o abuso de tais informações, o que será prejudicial para o indivíduo. A Lei Argentina n. 25.326/2000 , no seu art. 16, item 3, prevê, por exemplo, o habeas data como instrumento apto a proteção de dados.
É imperativo sobretudo em tempos de mídias sociais nas quais a vida privada se torna domínio público por meio da internet e nos faz questionar se o registro da nossa própria existência nos pertence e se, de fato, é possível pela via judicial requerer uma amnésia coletiva sobre nossas biografias já que somos seres co-construídos socialmente.
Assim, de maneira embrionária, não há dúvidas de que o habeas data em suas melhores expressões pode ser uma ferramenta muito importante para garantir a autodeterminação das informações do indivíduo, já que os dados são tido (clichê) como o novo petróleo na era digital, principalmente por fornecer o mais alto nível de proteção constitucional ao cidadão comum.
[1] José Joaquim Gomes Canotilho, Gilmar Ferreira Mendes, Ingo Wolfgang Sarlet e Lenio Luiz Streck, Comentários àConstituiçãoo. Editora Saraiva, 1ª Edição, 2013, p.487);
[2] Portal Cetax. Big data, o que é definição. Disponível em: https://www.cetax.com.br/blog/big-data/ – Acesso em 12/05/2021;
[3] “A proteção de dados tem que ser levada a sério, a fim de que isso traga a confiança, necessária a todos os atores de mercado, tanto da esfera pública quanto privada, facilitando a troca de dados, ao mesmo tempo que propicie que negócios se desenvolvam, diante da economia digital. Portanto, a criação de uma Lei Geral pode se servir para consolidar determinada nação como “porto seguro” de investimento, na medida em que se conseguirá ter clara dimensão sobre os limites do que é permitido, proibido, quais são as responsabilidades e os riscos, além das sanções a que estarão sujeitos, no caso de descumprimento da legislação. Com isso, mais investimentos acontecerão, não apenas internos, mas também externos, diante da segurança jurídica que será alcançada” (Comentários ao GDPR: Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia/Viviane Nóbrega Maldonado, Renato Opice Blum, coordenadores. – São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, pág. 25);
[4] https://www.nexos.co.cr/archivo/perspectivas/tecnologias-informacion-proceso-penal.htm – Acesso em 12/05/2021;
[5] Chirino, Alfredo (1997), Autodeterminacion Informativa y Estado de Derecho en la Sociedad Tecnologica (1997), San Jose, Costa Rica, Edit CONAMAJ. P.14.
[6] https://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/863981580/recurso-extraordinario-re-673707-mg-minas-gerais/inteiro-teor-863981591 (Acessado em: 12/05/2021);
[7] https://www.conjur.com.br/2005-abr-19/habeas_corpus_nao_protege_liberdade_locomocao_virtual (Acessado em: 12/05/2021);
[8] https://www.conjur.com.br/2020-jun-23/tribuna-defensoria-acesso-justiça-impactado-vulnerabilidade-di… em: 12/05/2021);
[9] https://agoraeuropa.com/espanha/spanha-garante-direitos-trabalhistas-aos-entregadores-por-aplicativo/ (Acessado em: 12/05/2021);
AUTOR:
Professor Roger Feichas – Defensor Público no Estado de Minas Gerais. Mestrando em Desenvolvimento, Tecnologia e Sociedade – UNIFEI. Pós Graduado em Direito Público e Direito Digital e Compliance – IBMEC. Autor de obras jurídicas em co-autoria, artigos jurídicos e um livro infantil.