Educação & Cultura
Aprender brincando: conheça estratégias para utilizar jogos na alfabetização
Atividades, que precisam ser planejadas com intencionalidade pedagógica, motivam os alunos, despertam reflexões e promovem habilidades importantes para o desenvolvimento da leitura e da escrita
Unir brincadeira e aprendizado é sempre uma boa ideia para professores de crianças, sobretudo porque elas se sentem mais motivadas. Na etapa da alfabetização, há diversos jogos que podem ser usados pelos docentes como estratégias para atingir os mais diversos objetivos pedagógicos.
Os jogos tornam a experiência do aprendizado mais significativa, já que eles têm também uma função social, fazendo com que as crianças interajam entre si e trabalhem em equipe. Se a estratégia for bem planejada, os professores podem proporcionar diversas aprendizagens para os alunos enquanto eles brincam.
“Reflexões sobre a dimensão sonora da língua e sua notação são aspectos que, entre outros, podem ser acionados por jogos. Eles são particularmente produtivos porque essas reflexões são demandadas pelos seus próprios objetivos: para jogar, para ganhar, para cumprir essas metas, é preciso mobilizar conhecimentos no contexto do próprio jogo”, afirma Liane de Castro Araujo, docente e pesquisadora da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde também coordena o Laboratório de Acervos e Práticas.
Os jogos na perspectiva da recomposição das aprendizagens
Sobretudo neste momento em que as escolas e os estudantes ainda estão se adaptando ao retorno presencial, os jogos podem ser usados na recomposição das aprendizagens. Sheila Cristina da Silva Barros, professora do 1º ano do Ensino Fundamental na Escola Municipal Ubaldino Figueiroa, em Jaboatão dos Guararapes (PE), percebe, no cotidiano, a falta que a Educação Infantil presencial fez na vida escolar de seus alunos.
“Normalmente, quando entra no primeiro ano, a maioria das crianças já sabe escrever o seu nome. Elas conhecem as letras que compõem o nome e conseguem contar sílabas com facilidade. Agora, tudo isso está fazendo falta no processo de alfabetização”, conta a professora. Ela costuma trazer jogos para a sala de aula ao menos duas vezes por semana e diz que as crianças costumam se empenhar mais nessas brincadeiras do que em outros tipos de atividades.
Para Maria José Nóbrega, assessora pedagógica na área de linguagens, este é um momento bastante propício para o uso de jogos na alfabetização. “Quando a criança precisa desenvolver habilidades que ela já deveria ter desenvolvido em anos anteriores, o jogo cria um uma situação interessante. Como ele tem um lado que é motivador e prazeroso, ele acaba sendo mais light do que qualquer outra atividade”, analisa. “Ele ativa também conteúdos emocionais, permite a interação com os colegas e tem objetivos para serem atingidos. Tudo isso tira um pouco daquele peso de inadequação que, às vezes, as crianças sentem quando não estão dando conta daquilo que se esperava que elas dominassem.”
Elementos lúdicos e intencionalidade pedagógica
Mas, apesar de muito importantes para a alfabetização, os jogos não servem para toda e qualquer situação. “Eles não dão conta, sozinhos, do processo de alfabetização”, alerta Liane. Ela aconselha que as estratégias mais formais também continuem sendo utilizadas pelos professores.
Para que os jogos tenham a função de ajudar na alfabetização, eles devem ser muito bem planejados de acordo com a turma. Nesse sentido, os elementos lúdicos precisam se unir à intencionalidade pedagógica do professor para que a atividade faça sentido.
“Se forem apenas brincadeiras, não cumprem a função didática, e se forem apenas recursos didáticos, perdem sua natureza de jogo”, destaca Liane. “É a ação docente que, efetivamente, faz com que artefatos como jogos se constituam como recursos didáticos. O jogo por si só não promove, necessariamente, as aprendizagens pretendidas.”
Jogos para todas as etapas da alfabetização
Há uma grande diversidade de jogos, que podem ser usados para diferentes objetivos
Os jogos podem ajudar nos processos bem iniciais, ainda na Educação Infantil, contribuindo para a fonetização da escrita, para chamar a atenção das crianças para a dimensão sonora da escrita, para aprender as letras e para a reflexão fonológica sobre unidades mais holísticas, como rimas, sílabas e aliterações”, explica Liane. “Há jogos envolvendo diferentes unidades fonológicas, diferentes operações cognitivas, seja de consciência fonológica sem presença da escrita, com o apoio de imagens, ou com a presença da escrita, que amplia as possibilidades de análise fonológica”, completa.
Mais adiante, há também jogos que vão contribuir para a consciência grafofonêmica e a apropriação do princípio alfabético, para a consolidação das correspondências fonográficas e para desenvolver a ortografia e a fluência de leitura. “Assim, os jogos podem auxiliar durante todo o processo de alfabetização”, reforça a pesquisadora.
CONFIRA AQUI ALGUNS JOGOS PARA A ALFABETIZAÇÃO:
Desafios para todos, considerando o nível de conhecimento de cada um
Janaína Vieira Siqueira, diretora da Escola Municipal Alberto Santos Dumont, em Lagoa Santa (MG), onde era professora do Infantil II até o ano passado, conta que gosta de produzir os próprios games, sempre levando em consideração as necessidades da turma. “Para atingir a intencionalidade pedagógica, antes é preciso conhecer a turma e as peculiaridades de cada criança. Eu tenho que ter bem definido o que que eu quero trabalhar naquele momento”, afirma. No município, uma das cidades brasileiras referência em alfabetização, o processo começa de forma intencional ainda na Educação Infantil.
A educadora acredita que os jogos são de grande ajuda no cotidiano pedagógico, sobretudo quando as turmas são diversas. Neste momento de retorno presencial, as diferenças de aprendizagem ficaram ainda mais evidentes nas salas de aula, e os jogos podem ajudar porque permitem que alunos sejam organizados em pequenos grupos ou que atividades específicas sejam direcionadas a cada estudante.
Um exemplo prático aconteceu na execução do jogo “Tapete de sílabas”, que a própria Janaína desenvolveu, cujo objetivo é que os alunos formem palavras a partir de sílabas (o jogo está disponível no documento abaixo). Neste game, que acontece com a turma dividida em grupos, Janaína colocava os alunos com mais dificuldades entre estudantes que já estavam mais avançados no conhecimento, de forma que uns pudessem aprender com os outros. Em outra atividade, ela realizou uma competição de “torta na cara” e direcionou perguntas a cada estudante de acordo com o nível de alfabetização em que ele estava.
Segundo Liane, o uso de jogos na sala de aula pode ser organizado de modo a desafiar todas as crianças, levando em conta os diferentes níveis de domínio da leitura e escrita que elas tiverem. “Por vezes, um mesmo jogo, com diferentes adaptações, pode ser jogado por todos os alunos, respeitando seu nível de conhecimento da língua oral e escrita. Em outras situações, a organização de grupos com diferentes jogos e mediações é mais interessante. Considerando que é preciso desafiar a todos, os jogos são bastante amigáveis nesse sentido.”
Adaptações para avançar nos objetivos pedagógicos
Além de criar os próprios jogos, como Janaína, os educadores também podem utilizar atividades já existentes e adaptá-las ao contexto de sua turma. É o que tem feito Gabriela Domingos da Rocha, professora na EMEF Claudio Manoel da Costa, em São Paulo (SP). Ela atua no contraturno escolar no Projeto de Apoio Pedagógico (PAP) com alunos de 3°, 4°, 5° e 6° anos que ainda não completaram a alfabetização. Com turmas pequenas e diversas, ela afirma que os jogos permitem que seu planejamento seja quase individualizado para cada criança.
Gabriela também ressalta a necessidade de praticar o mesmo jogo diversas vezes. “É preciso ter uma frequência. Jogar mais de uma vez faz com que a criança se aproprie das regras e das reflexões propostas pelo jogo, conseguindo avançar”. A professora Sheila diz que tem usado a mesma estratégia. Ela percebe que os alunos conseguem fixar melhor o conhecimento e levar as reflexões realizadas de um jogo para outro que tenha maior dificuldade ou objetivo diferente.
Nesse sentido, é essencial que os docentes observem se os jogos estão tendo o efeito esperado em relação à alfabetização. Se não estiverem, é necessário adaptá-los, tornando-os mais desafiadores. “É preciso estar atento porque não adianta ficar em um jogo cujo objetivo é que a criança compreenda o funcionamento do sistema de escrita se ela já sacou que as letras representam o som da fala”, orienta Maria José. “É preciso avançar e colocar mais desafios. O jogo com função pedagógica tem que estar associado à habilidade que se quer desenvolver.”
Janaína comenta que muitos professores não gostam de trabalhar com jogos porque consideram que a turma faz muita bagunça nesses momentos. Para ela, se isso está acontecendo é justamente porque falta intencionalidade pedagógica. “Eu vou dar um jogo para a criança montar palavras, por exemplo. Se ela já venceu aquilo, não tem sentido e, então, ela vai acabar se dispersando.”
Observar muito, intervir pouco, evoluir sempre
Além de muito planejamento, as intervenções e as observações no decorrer dos jogos e após atividades são muito importantes para os professores replanejarem o trabalho, averiguando se as habilidades pretendidas foram atingidas e o que é necessário modificar para avançar.
“É no pós-jogo que o professor vai observar se de fato aquela estratégia cumpriu sua função, que é garantir a aprendizagem daquele determinado conteúdo”, ressalta Maria José. “Normalmente, o jogo tem a função de sistematizar algum tipo de reflexão que o professor já promoveu antes.”
Janaína, Gabriela e Sheila comentam que costumam fazer anotações enquanto as crianças jogam. Nesse momento, é importante notar se o jogo precisa de alguma modificação, seja por falta de entendimento das regras ou para aumentar ou diminuir a dificuldade, e se os alunos estão se ajudando ou se seria necessária alguma mudança entre grupos e posições. Também vale observar se as crianças estão conseguindo jogar sozinhas ou se estão constantemente pedindo a ajuda do professor e se os estudantes estão evoluindo em relação ao primeiro contato que tiveram com aquele jogo específico.
Além de observar e anotar, os educadores também podem fazer pequenas intervenções. Elas podem ser realizadas diretamente pelo docente ou por meio do incentivo para que as crianças colaborem entre si. Janaína costuma colocar algumas regras nos jogos que facilitam esse compartilhamento de conhecimento, como a obrigatoriedade de todos do grupo interagirem antes de uma decisão ser tomada na atividade.
Antes, durante e depois do jogo, o que faz com que a atividade tenha a função alfabetizadora é justamente a mediação e a observação do professor. Mas Liane dá uma dica: não intervir demais. “A função docente é essencial. Mas é essencial também para assegurar a natureza do jogo, não parando o fluxo do jogo, por exemplo, para dar explicações no quadro, enquanto as crianças estão animadas para seguir jogando. Esse equilíbrio faz parte das artes do fazer docente.”
Jogando para alfabetizar
Confira algumas dicas para usar jogos na sala de aula no processo de alfabetização
- Conheça sua turma: diagnostique quais são as habilidades que precisam ser trabalhadas e escolha o jogo ideal para isso. Divida a turma a fim de conseguir atingir todas as crianças de forma direcionada, considerando as diferenças entre elas.
- Adapte os jogos: seja criando games novos ou modificando outros já existentes, pense sempre que o contexto deve ser levado em consideração.
- Converse antes, durante e depois: os jogos são uma ótima estratégia de sistematização de conhecimentos, que devem ter sido apresentados previamente para as crianças, assim como precisam ser reforçados depois.
- Explique bem as regras: para que o jogo flua da forma esperada, é essencial que as crianças tenham compreendido corretamente suas regras e objetivos.
- Proponha o mesmo jogo mais de uma vez: isso ajuda a fixar as reflexões propostas nas atividades.
- Não subestime os jogos: deixar os games para o fim da aula, como se tivessem menor importância, não é considerada uma boa estratégia. Os jogos devem ser bem planejados de acordo com a intencionalidade pedagógica, ganhando destaque no processo de ensino e aprendizagem.
- Sempre desafie os alunos: fique de olho para notar quando um jogo está ficando muito fácil. Pode ser hora de adaptá-lo ou de trocá-lo por outro.