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Educação & Cultura

Contos africanos e indígenas permitem trabalhar o gênero literário e as relações étnico-raciais

Além de possibilitar a leitura, a interpretação textual e a escrita, essas narrativas mostram a importância e o valor da contribuição dos diferentes povos para a cultura brasileira

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) propõe que, nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, os estudantes sejam capazes de expressar ideias, desejos e sentimentos em situações de interação e de argumentar e relatar fatos oralmente, organizando e adequando a sua fala ao contexto em que é produzida. Assim, os alunos devem saber ouvir, compreender, contar, recontar e criar narrativas. Eles precisam ser incentivados a atuar em situações de leitura, fruição e produção de textos, que sejam representativos da diversidade cultural e linguística da sociedade.

É nessa perspectiva que as narrativas africanas e indígenas surgem como uma ferramenta potente para trabalhar o gênero literário conto e para a prática de uma educação inclusiva e de respeito à diversidade. Essa abordagem é apoiada, entre outras legislações, pela Lei 10.639, de 2003, que incluiu no currículo oficial das escolas a obrigatoriedade da temática história e cultura afro-brasileira, e pela Lei 11.645, de 2008, que acrescentou história e cultura indígena. E, ainda, pelo documento Orientações e ações para a educação das relações étnico-racias, publicado em 2006 pelo Ministério da Educação (MEC).

A professora e pesquisadora Larissa Reis, que estudou o uso de contos africanos em sala de aula em seu mestrado e doutorado, diz que eles permitem explorar a escrita, a alfabetização, o letramento, a aprendizagem significativa e ir além. “Com eles, é possível, por exemplo, conhecer a literatura africana, identificar os sons da natureza, estimular os sentidos da audição e do tato e experienciar a contação de uma história conhecida e/ou vivenciada. [E ainda] dialogar sobre ensinamentos e valores trazidos pelas narrativas, reconhecendo a importância da cultura afro-brasileira.”

Para Sony Ferseck, docente da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e coordenadora de um programa de capacitação de professores da rede pública para trabalhar com literatura indígena, é preciso, em primeiro lugar, sensibilizar alunos e professores para a presença desses povos e culturas naquilo que podemos chamar de cultura brasileira, nos seus aspectos históricos, linguísticos, geográficos e sociais. “Uma maneira de fazer essa sensibilização é mostrar a presença e a ausência desses povos ao redor [do estudante], na escola, na cidade em que vivem. E ressaltar que há todo um processo histórico de apagamento e, mais recentemente, de resistência, que vem fazendo com que os indígenas possam ocupar cada vez mais espaços na sociedade, na política, e notando que um dos maiores nomes da literatura brasileira, Machado de Assis, era negro.”

De acordo com ela, ainda que hoje já se possa falar de literaturas afro-brasileiras e indígenas no plural, é importante reforçar que nessas literaturas há uma imensa diversidade. “É necessário perceber as formas diferenciadas com que esses povos e culturas percebem o mundo e a própria literatura.” Ela também destaca que as produções indígenas e afro-brasileiras mobilizam os sentidos além do visual, como a sonoridade e a musicalidade. “Isso provoca um envolvimento de quem participa e dinamiza bastante o que se pode aprender a partir dessas literaturas.”

Construção de acervo e exploração

A professora Jeane Almeida da Silva, da etnia Makuxi, é uma das docentes que recebe treinamento da UFRR para o uso da literatura indígena em sala de aula. Ela leciona para o 2o ano do Ensino Fundamental na Escola Estadual Indígena Índio Marajó, na Comunidade Indígena Guariba, na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, em Normandia (RR). Considerando a baixa representatividade dos povos indígenas e africanos no material didático tradicional, ela utiliza um acervo de livros de histórias locais construído com doação e, às vezes, com investimento próprio. “Na minha prática cotidiana, o trabalho se inicia com a escolha da obra e a apresentação e a localização do autor. Depois, faço a leitura do texto com os alunos e os estimulo a registrarem as suas próprias percepções, como o que mais gostaram, além de palavras e expressões novas. A partir daí, proponho a escrita de novas histórias: ‘se você fosse o autor, mudaria algo no texto? O quê?’”, detalha.

A construção de um acervo próprio também fez parte do projeto de Larissa. Durante seu mestrado na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), entre 2015 e 2017, ela desenvolveu uma série de atividades com duas turmas de 4º ano da EM Maria da Conceição Santiago Imbassahy, em Salvador (BA). Ela iniciou o processo de criação de um acervo virtual de contos africanos. Posteriormente, esse conjunto de narrativas deu origem ao Museu Virtual de Contos Africanos e Itan (Mucai). Itans são relatos míticos da cultura iorubá, um dos maiores grupos étnico-linguísticos da África Ocidental.

Larissa teve como parceira de trabalho a professora Gracileide dos Santos Lobo. “Sempre gostei de atuar com alunos do 1ª ao 5ª ano, porque nesse processo de alfabetização trago o conhecimento da África e dos povos originários. Eles se identificam e, nessa idade, estão desprovidos de preconceito. Toda vez que vou ler um conto, situo no mapa, já mostro onde aquela comunidade vivia, seus descendentes, as questões sociais. Tudo por meio de uma linguagem apropriada para aquela faixa etária”, explica.

Gracileide propõe desenvolver jogos e brincadeiras da cultura afro-brasileira, até em parceria com o professor de Educação Física, situando a que povos pertencem e como as crianças brincavam. “Também é possível trabalhar o reconto, a releitura e a reescrita individual ou coletiva. Você pode propor ilustrações do conto usando cores e tintas. E fazer brinquedos da cultura indígena e da africana a partir de artefatos reciclados.”

A leitura como aventura e identificação

Em Normandia (RR), Jeane conta que uma das histórias que mais faz sucesso entre seus alunos é sobre os “rabudos”, personagens míticos e entidades maléficas da região, também conhecidos como Canaimé. Segundo a lenda, eles podem se transformar em morcegos, tamanduás, macacos, mucuras, raposas, porcos e cachorros, entre outros animais com rabo. “Consegui alguns cordéis que falam justamente dessa origem. Eles gostaram muito porque já tinham ouvido essas histórias e não sabiam que elas estavam escritas. Isso dá muita autoestima para o aluno porque ele vê histórias parecidas com as que os familiares contam. Ele se enxerga no aprendizado”, argumenta.

Conforme as educadoras entrevistadas, é possível explorar melhor o potencial desses contos quanto mais a história se aproxima do contexto das crianças. Falando da realidade da Bahia, Larissa acredita que o conto africano traz essa força ao abordar o cotidiano a partir de um lugar de proximidade com aqueles alunos que, na rede pública, são predominantemente afrodescendentes.

Jeane afirma que ao entrar em contato com uma literatura com a qual os estudantes se identificam, as reflexões são muito ricas. “Foi muito interessante quando lemos o livro Meu vô Apolinário: um mergulho no rio da (minha) memória, de Daniel Munduruku. Quando ele fala que não gosta de ser chamado de índio, os alunos vêem a crítica e concordam. Uma pequena fala de um autor gera discussão, e eles percebem que existe alguém escrevendo sobre o que nós também sentimos”.

Gracileide também notou efeitos em relação à aceitação e à autoestima dos alunos. “Muitos estudantes que eram de religiões de matrizes africanas ficaram muito mais encorajados a falar sobre isso. Existe uma intolerância religiosa muito forte nas escolas. Quando começamos a abordar os orixás, quebrando os tabus de uma cultura que demoniza a nossa origem afro-brasileira, trabalhamos para olhá-los como os heróis de origem africana. Os contos africanos são pedagógicos e podem ser trabalhados nisso também.”

Passo a passo de um projeto

A ideia do professor como um investigador, capaz de entender o que o estudante compreende e o que precisa aprender, também é defendida por Larissa. “É fundamental conhecer a turma, se aproximar, identificar o que a criança sabe ou não. Muitas vezes, as histórias têm lições importantes para aquele momento, como a questão do silêncio, de saber ouvir os mais velhos e da autoestima das crianças pretas. O conto traz ensinamentos e valores para a vida – mostram a importância da família, da figura da mãe, praticamente divinizada, da memória e da palavra. Se você valoriza a palavra, você vai aprender que precisa fazer silêncio para ouvir aquilo que está sendo contado. E cada criança vai trazer uma história a partir da discussão daquele conto”, explica.

Durante a pesquisa de seu mestrado, Larissa fez algumas dinâmicas em sala de aula para explorar sentidos e investigar quais espaços da natureza as crianças já conheciam. “Não faz sentido falar de Iemanjá sem saber se aquela criança já foi à praia, já viu o mar, ouviu uma concha ou tocou na areia. Não faz sentido falar de Oxossi com uma criança que não teve contato com as folhas e a natureza. Para contar algo para ela, é preciso buscar primeiro o que ela já sabe. Por isso, fizemos dinâmicas e brincadeiras, explorando sensações como o toque na natureza, o toque na areia, a descrição daqueles sentidos. A partir disso, é que levei os contos”, acrescenta.

O processo foi contar as histórias e, durante o relato, fazer perguntas para verificar se os alunos acompanhavam o enredo, quem eram os personagens, o ponto principal da problemática e a solução. “Foi uma forma de provocá-los, de saber a lição que eles aprenderam. Primeiro, trabalhei a oralidade, fazendo com que eles recontassem aquilo que vinham ouvindo. Depois, foi a vez da escrita, com relatos pessoais a partir da contação da história. Busquei explorar várias linguagens, com oficinas de teatro, de desenho e de criação de indumentária, para entender como e o que eles entenderam e, posteriormente, reproduzir aquilo, valorizando suas autorias”, ressalta Larissa.

Antes da leitura de contos ou itans que tratavam de orixás, por exemplo, ela propôs um jogo, em que fazia descrições das características dessas entidades para que as crianças pudessem identificá-los. A ideia era trabalhar o lúdico e fazer os alunos se interessarem pela história, fornecendo recursos para ampliarem a compreensão do conto.

Após a pesquisa e nas trocas com a professora Gracileide, ela acabou conhecendo mais sobre as crianças e os impactos das atividades. “Algumas eram tímidas e se mobilizaram, se ofereceram para ser contadores de história. A gente viu a importância da arte-educação, que permitiu que sujeitos se encontrassem no seu lugar e pudessem se expressar da melhor forma. Eles se sentiram à vontade para contar [as histórias] também”.

Curadoria de contos e sugestões de atividades

As educadoras reforçam que os livros didáticos, em geral, trazem imagens de povos africanos e indígenas sempre muito cheias de estereótipos e preconceitos. “Precisamos trabalhar com textos que a gente não vê nos livros didáticos. Em uma turma em que a grande maioria tem ascendência afro-brasileira, as crianças vão ver contos distantes da realidade dela, com personagens brancos. Eu não sou contra que tenha esses contos, já que o Brasil é um país com uma diversidade étnica muito grande. Mas eu sou contra que só se tenha esses contos eurocentrados”, argumenta Larissa. Ela recomenda autores como Vanda Machado, Júlio Braga e Ruy do Carmo Póvoas e indica planos de aula com roteiros de atividades e sugestões de contos do Mucai.

Sony Ferseck vê um avanço nos materiais, principalmente a partir da década de 1990, após a promulgação da Constituição Federal, e sugere escritores como Daniel Munduruku e Conceição Evaristo. “São bastante representativos e com produções maravilhosas que abordam vivências por meio de suas memórias pessoais ou coletivas, aquilo que Conceição Evaristo irá chamar de “escrevivência”. Ela também destaca o autor Gustavo Caboco que, em Baaraz Kawau trabalha questões identitárias e de preconceito racial, ao contar o seu reencontro com o próprio povo depois de uma visita ao museu. Para acessar publicações de escritores indígenas, ela indica a plataforma Wikilivros. E, para capacitação docente, recomenda o texto “As 10 mentiras mais contadas sobre os indígenas”, de Lilian Brandt, que pode servir como ponto de partida para a desconstrução de estereótipos sobre os povos indígenas.

As educadoras também sugerem algumas formas de trabalho com contos africanos e indígenas na sala de aula:

  • – Leitura de O Sopro da Vida, de Putakaryy Kakykary

O professor pode apresentar a obra e a biografia do autor, explicar o seu nome indígena, localizá-lo geograficamente e propor que os alunos registrem no caderno as palavras novas que aprenderam e suas percepções. Na sequência, os estudantes são convidados a compartilhar aquilo que eles entenderam. “Esse livro é interessante porque traz imagens para colorir, o lúdico, o brincar com as cores. Além disso, é bilingue, escrito em Wapichana e em português. Assim, é possível trabalhar também a variação linguística, as expressões e os vocábulos”, salienta a educadora Jeane.

  • – Roda de conversa a partir de elementos do cotidiano das crianças

Textos que falam da mandioca e do guaraná, por exemplo, podem ser trabalhados com os alunos a partir daquilo que eles conhecem e de forma bem concreta. O professor pode trazer sementes de guaraná e mandioca e introduzir as histórias, organizando uma roda de conversa. “A partir daí, outros temas muito presentes nas culturas indígenas e africanas podem ser abordados, como o cuidado com o outro e com a natureza”, indica a professora Gracileide.

  • – Trabalho com contos que desconstroem o senso comum

Gracileide também recomenda os contos africanos “Por que os cães se cheiram” e  “O casamento da princesa”, que abordam questões muito palpáveis para as crianças. “Com o segundo, é possível desconstruir esse imaginário das princesas enquanto garotas loiras de olhos claros. Você começa esse processo de discussão que vai trazer um conflito em relação ao que é posto como estética. O resultado é muito legal.”

  • – Atividades diversas com textos indicados

Larissa sugere especialmente a leitura do itan “O desejo de Gadamu” (do livro Itan de boca a ouvido, de Ruy do Carmo Póvoas), do conto “No final, como os orixás vieram para o Brasil” (da obra Ifá, o adivinho, de Reginaldo Prandi), e “O Beira-Mar” (de Contos crioulos da Bahia narrados por mestre Didi). ”É possível interpretar as narrativas, dialogar sobre ensinamentos e valores trazidos por elas, conhecer os símbolos e as características dos orixás, colorir e ornamentar símbolos e objetos de mão usados por eles e estimular a criatividade e a autoria, reconhecendo e valorizando a história e a cultura afro-brasileira”, enumera a especialista. 

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