Nacional
Novo presidente, novos governadores, velho orçamento
Os desafios para superar a deficiência do processo orçamentário em final de mandato
No último dia 30 de outubro o país elegeu novo presidente da República, bem com vários governadores. Tomam posse no primeiro dia de janeiro de 2023, exatamente quando tem início o exercício financeiro, bem como a execução do orçamento. Orçamento esse que foi proposto pelo chefe do Poder Executivo nos meses que antecederam o próprio pleito eleitoral, e aprovados pelo Poder Legislativo competente no final do exercício financeiro em curso.
Ocorre que, em muitos casos, como na administração pública federal e em grande parte dos estados, não houve reeleição. Mudaram o chefe do Executivo e boa parte do Parlamento, com novos integrantes. Em muitos casos toda a direção e orientação política do ente federado foi alterada, em maior ou menor intensidade.
No entanto, caberá a todos os entes federados dar fiel cumprimento ao orçamento aprovado pelo governo anterior. Razão pela qual, como já escrevi anteriormente, “(n)o primeiro ano de mandato, não se cumprem promessas”.[1] Essa é a regra estabelecida pelo processo orçamentário vigente, e alinhada ao sistema de planejamento orçamentário da administração pública, essencial para a gestão eficiente dos recursos materiais, humanos e financeiros do Estado.
Mas não parece justa e adequada. Afinal, quando se alteram os governantes, a presunção é de que houve intenção e interesse em mudar os rumos da gestão pública, e o que o processo orçamentário determina é, no primeiro ano de mandato, a continuidade e respeito ao que foi decidido no governo anterior. E não se diga que isso só se aplica à lei orçamentária. Lembre-se de estar vigente, até o final do primeiro ano de mandato do sucessor, o plano plurianual aprovado no início do mandato que se finda. Também está em vigor a Lei de Diretrizes Orçamentárias aprovada no primeiro semestre desse último ano de mandato.
Fato é que o processo orçamentário, nesse aspecto, está falho. Não parece razoável exigir que um novo governante, justamente no início de seu mandato, quando as cobranças da sociedade por ações concretas são mais intensas, e as expectativas são maiores, pouco possa fazer para implantar as políticas públicas com suas orientações. Os novos gestores nomeados para ocupar os cargos públicos certamente terão dificuldade em dar cumprimento e executar o orçamento da forma como aprovado pelo governo anterior.
Há que se corrigir essa distorção, mas não há soluções simples. E que passam por alterações na legislação vigente, uma vez que a interpretação das normas de planejamento orçamentário, por mais elástica que seja, não permite obter resultados satisfatórios.
A forma como a questão vem sendo resolvida atualmente também é indesejável. O mandatário assume e, insatisfeito com vários dos dispositivos vigentes, faz uso dos múltiplos instrumentos de flexibilidade orçamentária para ajustar o orçamento aprovado, de forma improvisada e apressada, aos interesses de seu mandato. Um desrespeito ao sistema de planejamento orçamentário, à eficácia de suas normas, e à falta de seriedade com que é tratado o Direito Financeiro, além de reforçar a ideia de que o orçamento é uma peça de ficção.
Mas não é só. Há outras inconsistências nas normas que regulam o sistema de planejamento orçamentário. Vejam a situação do próximo governante que, ao assumir, logo terá de apresentar o projeto de LDO, que vai orientar a Lei Orçamentária Anual (LOA) a ser aprovada para o segundo ano de seu mandato. E terá de fazê-lo de forma alinhada ao plano plurianual (PPA) vigente – que foi aprovado no mandato anterior.
Portanto, em sendo fielmente respeitado o ordenamento, a LDO terá de estar alinhada ao PPA, e vai orientar a LOA para vigorar no ano subsequente. Ou seja, até o orçamento do segundo ano de mandato terá de estar de acordo com as diretrizes do governo anterior! Para completar, ao final do ano deverá ser aprovado o PPA do atual governo, que condicionará a LDO e LOA do ano seguinte. Ocorre que a LOA do ano seguinte terá de ser simultaneamente aprovada, obedecendo às diretrizes do governo anterior e ao mesmo tempo do atual! Confuso e equivocado, não é mesmo? Um problema até o momento insolúvel, como já reconhecido por estudiosos do tema, sendo urgente uma alteração legislativa, e que não será fácil.[2]
A Constituição aprovada em 1988 já dispôs, em seu artigo 165, § 9º, I, que cabe à lei complementar “dispor sobre o exercício financeiro, a vigência, os prazos, a elaboração e a organização do plano plurianual, da lei de diretrizes orçamentárias e da lei orçamentária anual”, o que não foi cumprido até o momento, estando vigente para essa finalidade a já cinquentenária Lei 4.320, de 1964, e dispositivos dispersos distribuídos entre a Lei de Responsabilidade Fiscal e as sucessivas leis de diretrizes orçamentárias, deixando essa lacuna, imperfeição e insegurança jurídica nesse aspecto. Um problema que vem à tona em momentos como esse, sendo mais do que oportuno aproveitá-lo para chamar a atenção de todos com vistas à busca de uma solução que não pode tardar.
Cumpre notar que as eleições ocorrem após a data da apresentação do projeto de lei orçamentária pelo chefe do Poder Executivo que exerce o cargo, e o resultado delas é conhecido durante o prazo de tramitação da lei orçamentária no Parlamento, a quem caberá deliberar sobre o tema, o que inclui os parlamentares reeleitos, os não reeleitos e não inclui os novos eleitos. Essas decisões seguem as regras do processo orçamentário vigente, e seus impactos atingirão o mandato subsequente. Utilizando o exemplo da administração pública federal atual, caberá aos parlamentares em exercício apresentar as emendas, várias delas “impositivas”, portanto, de cumprimento obrigatório. E as “emendas de relator” que ficaram conhecidas por abarcar parte do que ficou conhecido como “orçamento secreto”[3], todas produzindo seus efeitos no exercício financeiro posterior, quando o novo mandatário assumirá seu cargo. Não há como deixar de reconhecer a disfuncionalidade do sistema atualmente vigente, que precisa ser corrigida.
Enquanto isso, há que se buscar alternativas que ao menos mitiguem os problemas causados por essa falha do ordenamento jurídico que já perdura há décadas.
É certo que o governo eleito tem meios oficiais de obter informações sobre o que se passa no governo atual. No âmbito da administração pública federal, por exemplo, a Lei 10.609/2002 assegura ao presidente eleito instituir equipe de transição, com o objetivo de inteirar-se do funcionamento dos órgãos e entidades da administração pública federal e preparar os atos de iniciativa do novo mandatário, tendo direito a acessar informações relativas às contas públicas, programas e projetos (arts. 1º e 2º). Nesse ano, anuncia-se também a criação de um comitê no âmbito do TCU para supervisionar a transição de governo.[4]
Não há, no entanto, poderes para interferir na elaboração do novo orçamento. Nem haveria como, uma vez que já se encontra em fase de deliberação e aprovação pelo Congresso Nacional, a quem cabe decidir a questão. Resta apenas exercer influência sobre os parlamentares em exercício para que apresentem eventuais emendas alinhadas aos interesses do novo mandato que se inicia[5] – o que não difere do procedimento de todos os anos. A mídia já noticia as conhecidas dificuldades do presidente eleito: “Primeiro desafio de Lula é negociar com Congresso novo Orçamento”, anuncia a Folha de S.Paulo.[6]
E há inúmeros desafios a vencer no exercício seguinte e em todo o mandato, para o que o primeiro orçamento tem papel de extrema relevância. Como se pode constatar, sendo frequente ocorrer todos os anos, há previsões contidas na proposta orçamentária que dependem de atos ainda não concretizados[7], sendo essa fase legislativa de elaboração da lei orçamentária importante para dar a forma final da lei orçamentária que vai conduzir a administração pública durante todo o próximo ano.
Outros desafios são destacados no texto de Fabrício Tomio, Rodrigo Kanayama e Gustavo Torres, publicado neste JOTA[8], como a cooperação necessária no debate sobre a lei orçamentária, em face do presidencialismo de coalizão que vivenciamos, que exige um equilíbrio delicado na dinâmica das relações entre os poderes, especialmente no que tange às emendas parlamentares, que é exatamente a situação vivida neste momento, agravada pelo fato de termos um chefe de Poder Executivo e um Parlamento em exercício que difere dos que foram eleitos.
Vê-se que há muito o que fazer para aperfeiçoar o processo orçamentário, e torná-lo compatível com o que se espera do orçamento público, que é refletir os interesses da sociedade na definição dos gastos públicos, ao mesmo tempo em que cumpra suas funções de instrumento de planejamento, gestão e controle da administração pública, o que é fundamental para que os recursos públicos sejam bem aplicados.
[1] CONTI, José Mauricio. Levando o direito financeiro a sério. A luta continua. 3ª edição São Paulo: Blucher Open Access, 2019, pp. 161-164 (Disponível em https://www.blucher.com.br/livro/detalhes/levando-o-direito-financeiro-a-serio-1541).
[2] Sobre o tema, vejam meu livro CONTI, José Mauricio, Planejamento orçamentário da administração pública no Brasil, ed. Blucher, 2020, pp. 231-234 (Disponível em: https://www.blucher.com.br/o-planejamento-orcamentario-da-administracao-publica-no-brasil_9786555500219), bem como OLIVEIRA, Weder de (Curso de Responsabilidade Fiscal, vol I, ed. Forum, 2013, pp. 295-303).
[3] Sobre o tema, vejam meu livro CONTI, José Mauricio, A luta pelo Direito Financeiro, ed. Blucher, 2022, pp. 143-148 (Disponível em https://www.blucher.com.br/a-luta-pelo-direito-financeiro).
[4] Em medida inédita, TCU cria comitê para supervisionar transição entre Bolsonaro e Lula (CNN Brasil, 31.10.2022 – www.cnnbrasil.com.br).
[5] Governo eleito já discute o Orçamento de 2023.Valor Econômico, Brasília, 01.11.2022 (<https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/11/01/governo-eleito-ja-discute-orcamento-de-2023.ghtml>).
[6] Folha/Uol, Eleições 2022, 30.10.22.
[7] Recursos para o Auxílio Brasil no montante divulgado, bem como para a correção da tabela do IR, são destacados no texto de Lorenna Rodrigues e Eduardo Rodrigues (“Parece discurso de candidato”, critica relator do Orçamento sobre promessa de Auxílio de R$ 600, publicado no Estado de São Paulo – www.estadao.com.br, em 1.9.2022)
[8] O próximo presidente e seus desafios político orçamentários. Jota, 5.9.2022 (https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-proximo-presidente-e-seus-desafios-politico-orcamentarios-05092022).