Judiciário
Lei de Alienação Parental como violência institucional de gênero
Texto limita a autonomia da mulher perante o Poder Judiciário
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A Lei 12.318/2010 possibilitou a discussão de nova questão nas demandas de família: a alienação parental. Passados 12 anos de sua entrada em vigor, alguns dispositivos foram incluídos, revogados ou alterados pela Lei 14.340/2022. A mais notável mudança diz respeito à exclusão da suspensão da autoridade parental como medida possível em caso de alienação parental.
A Síndrome da Alienação parental (SAP) foi definida pelo psiquiatra americano Richard Gardner como um distúrbio infantil que surge especialmente entre crianças cujos pais se encontram em litígio conjugal. A SAP seria uma campanha de desqualificação induzida pelo genitor alienador, que na maior parte das vezes se assenta na figura do guardião, ou seja, a mãe. A “Alienação Parental” ou “Alienação dos Pais” foi incluída no CID 11, na subcategoria QE52.0 “Caregiver-Child Relationship Problem”.
Gardner formou-se na Universidade de Columbia. Lá foi professor voluntário clínico de psiquiatria infantil. Em 1985 desenvolveu a teoria da alienação parental, tendo sido contratado para depor como testemunha especializada em mais de 400 casos envolvendo litígio conjugal e abuso sexual incestuoso nos Estados Unidos. Gardner possuía uma editora própria, a Therapeutics Creative Inc., na qual publicava grande parte de suas obras. Foi casado com Lee Gardner, de quem posteriormente divorciou-se, tendo havido desta união três filhos. Sua morte se deu de forma violenta através de suicídio, tendo ele desferido múltiplas facadas em seu peito e pescoço.[1]
A inovação legislativa no sentido de excluir a suspensão da autoridade parental como medida contra o alienador é um avanço, todavia não suficiente para retirar o estigma de “alienadora” da genitora mulher, que na maior parte das vezes tem esse rótulo nas discussões processuais.
São inúmeras as críticas não só do ponto de vista jurídico, como também de saúde mental acerca da alienação parental.
Sob o ponto de vista da psicologia, merecem destaque os estudos de Analicia Martins de Sousa, especialista em psicologia jurídica, que critica a teoria de Gardner por equiparar a criança a um ser autômato, que recebe e executa instruções, desconsiderando o potencial de cada um dos indivíduos em (re)agir diante das situações mais adversas, bem como a complexidade das relações humanas, vez que em algumas situações a rejeição pelo genitor pode se justificar pela existência de alguma causa. Destaca ainda que Gardner busca enquadrar a família em litígio em um modelo teórico, que privilegia a descrição de sintomas para a classificação de doenças e, por conseguinte, a classificação dos indivíduos.
Os estudos críticos da psicóloga apontam que a teoria de Gardner “engendra uma visão determinista e limitada com relação aos comportamentos dos atores sociais, os quais tem ignorada sua singularidade, sua capacidade de desenvolver suportes em meio a situações de conflito e sofrimento.” Segundo Sousa, vive-se um momento fecundo na contemporaneidade de proliferação de discursos sobre novas síndromes, numa espécie de “sindromização” do sofrimento humano e de “patologização” de toda sorte de comportamentos.[2]
Do ponto de vista médico, é de se destacar a firme posição do Conselho Nacional de Saúde, que durante a tramitação do PL 7352/2017, manifestou-se pela revogação da Lei de Alienação Parental, tendo como principal argumento a ausência de respaldo científico consolidado desta síndrome. [3]
No âmbito jurídico internacional, o movimento contrário à existência desta síndrome e consequente alegação nos tribunais tem crescido, por ser violadora dos direitos das mulheres e configurar violência institucional de gênero pelo Poder Judiciário ao taxá-la de vingativa ou ressentida em disputas envolvendo alienação parental ou divórcio.
A ONU Mulheres, em 2011, posicionou-se afirmando ser inadmissível a legislação declarar a “síndrome da alienação parental” como possível prova em audiências sobre custódia ou visitação de filhos. Do mesmo modo, há recomendações da ONU para coibir e banir os termos nos tribunais por prejudicar mulheres e crianças em situações de violência doméstica e familiar e em casos de abuso sexual intrafamiliar a países com legislação semelhante à do Brasil, como Itália (2011), Costa Rica (2017), Nova Zelândia (2018) e Espanha (2020).
O Relatório sobre a implementação da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, da Comissão Interamericana de Mulheres da Organização dos Estados Americanos (OEA), de 18 de fevereiro de 2014, reconheceu que o tema e o uso da “Síndrome da Alienação Parental” vêm afetando cada vez mais as mulheres na região.
Ponto de destaque debatido na Câmara dos Deputados é o de que mulheres vítimas de violência doméstica, ao pleitearem medidas protetivas de afastamento dos agressores, são demandadas judicialmente em ações de guarda e visitas por eles, sob alegação de serem alienadoras e de quererem afastar a prole do convívio paterno, o que inegavelmente implica na necessidade de reaproximação da genitora do agressor, temendo perder a guarda dos filhos caso fique caracterizada a SAP.[4]
A lei é criticável em todos os sentidos. A criação de uma síndrome por um psiquiatra do sexo masculino, que sugeriu até mesmo a prisão do genitor alienador, bem como “patologização” de comportamentos que podem ser naturais em razão de desentendimentos de casais recém divorciados são questões que violam os direitos das mulheres.
Desnecessária a criação de uma patologia para supostamente proteger crianças e adolescentes. A proteção deles decorre do sistema consagrado pela Constituição Federal de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente, que os elevam à condição de sujeitos de direitos especiais e autônomos, com a finalidade de garantir o melhor interesse, a proteção integral e a absoluta prioridade.
A campanha de desqualificação contra o genitor pode ser combatida por instrumentos menos estigmatizantes e reducionistas para a mulher, como o cumprimento de sentença de visitas fixadas judicialmente, imposição de multa por descumprimento, visitas assistidas gradativas no fórum na forma do art. 4º, parágrafo único da lei, entre outras maneiras, notadamente as alternativas extrajudiciais, que não caracterizem violência institucional de gênero.
A mais recente exclusão da medida de suspensão da autoridade parental revela avanço em relação à legislação e o tratamento da temática, não sofrendo mais a genitora supostamente alienadora com o receio de ter suspendido o poder familiar sobre a criança, que era a medida mais grave prevista na lei. Todavia é ainda insuficiente. As críticas e movimentos internacionais no sentido de exclusão do termo “Síndrome de Alienação Parental”, “Ato de Alienação Parental” e congêneres como artifício jurídico para retomada da convivência parental revelam a necessidade de revogação desta lei por serem limitantes da autonomia da mulher perante o Poder Judiciário, já que as medidas que podem ser impostas se aproximam muito mais de técnicas disciplinares do que intervenções terapêuticas para sanar o problema da convivência familiar com o genitor “alienado”.
O discurso no processo de uma doença e seu tratamento subjazem a coerção imediata, o controle constante e a imposição de comportamentos, com o objetivo de subjugar e disciplinar, tornando estas mães dóceis e cooperativas, com todo aparato jurídico à disposição.
[1] LAVIETES, S. “Richard Gardner, de 72 anos, morre; dúvidas sobre queixas de abuso”. The New York Times. Disponível em http://www.nytimes.com/2003/06/09/obituaries/09GARD.html. Acessado em 11/12/2022.
[2] SOUSA, Analicia Martins. Síndrome da Alienação Parental – um novo tema nos juízos de família. São Paulo: Editora Cortez, 2010.
[3] Recomendação n. 003 de 11 de fevereiro de 2022 do Conselho Nacional de Saúde, disponível em https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=9162654&ts=1656425464715&disposition=inline
[4] Disponível em https://www.camara.leg.br/noticias/548680-lei-brasileira-que-trata-da-alienacao-parental-nao-tem-base-cientifica-afirma-debatedora/, acessado em 12/12/2022.