Educação & Cultura
Graciliano Ramos: use obras do escritor para debater bullying e sociedade
No mês que marca os 70 anos da morte de Mestre Graça, conheça atividades para explorar a narrativa do escritor e temas atuais
As águas de março fecham o verão e trazem à nossa memória saudosas lembranças, revelações literárias e – por que não? – o pensamento crítico, múltiplo e influente de Mestre Graça. Alagoano de Quebrangulo, em 20 de março de 1953, Graciliano Ramos “ficou encantado” e provou que viveu, como diria seu contemporâneo Guimarães Rosa. Setenta anos depois, ainda somos impactados pelo seu manejo com a linguagem e pela sua capacidade de dar expressões distintas aos seres humanos e seus espaços de vivência.
Autor da segunda fase do Modernismo (1930 a 1945), Graciliano Ramos enfatiza o retrato do interior do Brasil atrelando o comportamento humano ao ambiente onde se vive. O período é conhecido também como Neorrealismo, e, naquele momento histórico, a região Nordeste passava por uma grande crise econômica em virtude da seca e da pobreza.
Algumas das personagens de Graciliano se tornaram ícones literários, como Fabiano, de Vidas secas, que apresenta uma visão de mundo que oscila entre o lado positivo e o negativo, entre ser bicho e homem, fruto de condições sociais específicas, marcadas por injustiça e desigualdade.
Obra para abordar bullying e diferenças
Para lembrar os 70 anos da morte de Mestre Graça, que tal planejar uma atividade com o livro A terra dos meninos pelados? É uma oportunidade de levar o aluno a conhecer esse autor tão importante da nossa literatura. Uma das possibilidades de trabalho em sala de aula é o debate sobre aceitação das diferenças. Afinal, a história de Raimundo Pelado é um convite a “espiarmos para dentro”, semelhante ao que acontece nas histórias de Alice no País das Maravilhas e O Mágico de Oz.
Raimundo é um menino diferente dos outros de seu convívio. Com a cabeça pelada e um olho preto e outro azul, sofre o que chamamos hoje de bullying. Cansado de ser alvo de piadas na escola e na rua, decide realizar uma viagem fantástica, dessas que fazemos quando olhamos para dentro de nós.
Ele chega a um lugar onde as pessoas sabem conviver mais harmonicamente. A terra encantada é Tatipirun, e as crianças são iguais a Raimundo naquilo que ele tem de diferente, por isso ele se sente acolhido por todos os meninos e experencia muitas aventuras.
A leitura da obra permitirá contemplar os principais aspectos da textualidade, como tipologia narrativa, personagens e ações coerentes com o enredo, além de elementos formais de textualização, especialmente aqueles que dizem respeito ao padrão culto, formal ou informal da língua, de acordo com a situação narrada em Tatipirun.
Conjugando-se tais elementos – e também o que os estudantes já sabem e o que podem seguramente aprender –, provoque reflexões sobre os habitantes de Tatipirun, instigando-os a compreender as diferenças entre os seres humanos. Mesmo em um mundo de fantasias, onde tudo é realizável, é possível descobrir que cada menino tem uma característica diferente e que essa jornada nos permite compreender melhor a importância de valores como tolerância, respeito, confiança, autoestima e amizade.
Crie um mural colaborativo
Para dinamizar o trabalho, acesse a plataforma colaborativa Padlet e crie seu mural digital – melhor dizendo, escolha o formato para dar à “terra de seus meninos”. Organize o conteúdo e dê à página o layout que melhor represente o espaço criado.
Você poderá adicionar uma descrição da cidade virtual que pretende compartilhar com a turma, uma espiada para dentro de sua realidade. Escolha um papel de parede e símbolos sugestivos de identificação. Como será um mural interativo, indique também qual será a ordem das publicações e permita comentários e reações.
Cidade virtual preparada, é hora de pedir aos alunos que criem seu avatar. Há vários aplicativos que nos dão essa possibilidade. Minha sugestão é o bitmoji. A exemplo de Raimundo, lá os alunos poderão realçar suas características e ter um olhar atento sobre eles mesmos, quem são e o que pretendem destacar no mundo fantástico criado coletivamente.
Professor, peça que os alunos insiram suas personagens no Padlet com a respectiva apresentação. É fundamental promover a interação entre eles e levantar problemáticas relacionadas à convivência, ao combate ao bullying e ao cyberbullying, à tolerância e ao respeito.
Contos e contextos sociais
Caros colegas, meu objetivo aqui é convidá-los para bebermos na fonte inesgotável de lições deixados pelas vivências de Graciliano Ramos. Ele era um autor que escrevia realidades e falava do indivíduo oprimido e seus dilemas. Foi prefeito e diretor da Imprensa Oficial de Alagoas, mas seu universo era mesmo o das letras. Redator de jornal e professor, muito se dedicou à Educação.
Inquieto, seu dom era escrever sobre aquilo que viveu. E viveu em um tempo de crises, conflitos, pressões políticas, arbitrariedade e prisões. Foi em meio ao período da Era Vargas, por exemplo, que o livro de contos Insônia foi publicado. Inicialmente, os contos foram redigidos em jornais e depois reunidos em um único volume.
O conto homônimo que intitula o livro é responsável pelo tom dado às narrativas. São histórias que revelam a interioridade das pessoas, como elas se posicionam quando são confrontadas com dilemas. As primeiras foram escritas enquanto o autor ainda estava preso. Em outras, Mestre Graça tem sensibilidade para tecer protagonistas femininas que, mesmo sendo oprimidas pelo contexto patriarcal, se mostravam capazes de vencer as mais diversas limitações. Acredita-se que uma delas, inclusive, foi inspirada na própria filha do autor.
A prisão de J. Carmo Gomes também integra a obra e retrata os conflitos vividos pelas personagens Aurora e seu irmão José Carmo Gomes, que, por sua vez, anseia por uma sociedade justa, na qual vigore um regime político diferente daquele existente no Rio de Janeiro de 1930.
Proponha uma atividade interdisciplinar
O contexto histórico e sociocultural que permeia Insônia revela como o ser humano, seus conflitos interiores, fraquezas e vulnerabilidade resultam da influência de fatores externos no modo de agir e pensar nas mais distintas situações. Ao propor o estudo dos contos, faça também um trabalho interdisciplinar com o componente curricular de História.
Oriente uma pesquisa para que saibam como era, por exemplo, o Brasil e o Rio de Janeiro na década que antecedeu a Segunda Guerra Mundial. A criação de um infográfico – que pode ser feito manualmente, com colagens, ou usando aplicativos próprios para isso – permite ao aluno visualizar melhor uma época tão distante de seus olhos, mas com questões e problemas atuais.
O passo seguinte é a seleção dos contos que serão melhor explorados, revistados e recontados conforme a realidade da sua cidade. Uma boa oportunidade para estimular a reflexão da turma é pedir aos alunos que escolham uma personagem e deem a ela a roupagem do século 21, ou seja, quais conflitos, fraquezas e desafios seriam vivenciados na atualidade?
A narrativa retextualizada deverá apresentar uma linguagem próxima à variante linguística usada por eles atualmente, mas a personagem não poderá perder sua essência e as características engenhadas por Graciliano. A socialização dos textos valorizará a produção oral e escrita, e o aluno, ao verbalizar, será estimulado a expressar sua opinião a respeito do que leu e compreendeu após esse confronto de épocas.
Por fim, como acontece em O olho torto de Alexandre, narrativa que está no livro Histórias de Alexandre, desejo que as palavras de Mestre Graça, um misto de mistério e aventura, nos permitam “espiar” o interior de nós mesmos e aprender com a experiência, afinal, o mundo bom é o que pode ser melhorado. “E acreditem vossemecês que este olho atravessado é melhor que o outro.”
Ana Cláudia Santos é professora de Língua Portuguesa na Educação Básica da rede estadual de ensino há 20 anos e mestranda em Educação Profissional e Tecnológica. Foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10, promovido pela Fundação Victor Civita, nas edições de 2014 e 2018, com os trabalhos O Povo Conta e O (Ser)tão de Cada Um. Recebeu a medalha Ordem do Mérito Educacional (MEC) – Grau de Cavaleiro e o troféu Capitão-Médico João Guimarães Rosa, da Academia de Letras da PMMG.
Fonte: Nova Escola