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Educação & Cultura

Alfabetização: estratégias para avançar na aquisição da escrita

Usar textos reais como ponto de partida e depois focar em palavras e sílabas possibilitam um trabalho mais significativo

Princesa, unicórnio, Homem de Ferro, bailarina, borboleta, Naruto… Essa é a lista de fantasias de carnaval criada pelos alunos de Caroline Rezende, professora de 1º ano na EE Prudente de Morais, na capital paulista. Em uma turma de 31 estudantes, a maioria já está em uma hipótese de escrita silábica sem ou com valor sonoro, e alguns já são silábicos-alfabéticos. 

Com base nesse diagnóstico inicial, Caroline dividiu a turma em agrupamentos produtivos de forma a estimular a aprendizagem entre pares. As  atividades de escrita sempre partem de um texto e seu contexto, de uma leitura realizada em sala de aula. “As cantigas e os textos que eles sabem de cor [como trava-línguas e parlendas] estão muito presentes em sala”, diz. 

Para essas atividades, ela escolhe palavras e sílabas que vão estimular a reflexão das crianças. Também faz propostas envolvendo listas. “Fiz a leitura de nomes da turma, selecionei alguns para pensar no tamanho da palavra, a letra que começa e termina, o que sabiam do nome que ajudava a ler.” 

A experiência de Caroline é prova de como a alfabetização e o letramento são processos indissociáveis e simultâneos. Esta reportagem tem foco no sistema de escrita alfabética, e os próximos conteúdos deste especial irão se debruçar nos demais aspectos.

Alfabetização: como planejar boas atividades de escrita

A avaliação diagnóstica é o passo inicial para qualquer discussão a respeito de práticas docentes, especialmente quando falamos de alfabetização. 

“Precisamos, mais do que nunca, neste mundo pós-pandemia, diagnosticar o que as crianças já aprenderam e o que ainda têm por aprender”, afirma Artur Gomes de Morais, pesquisador e professor-titular no Programa de Pós-graduação em Educação e no Centro de Estudos em Educação e Linguagem (CEEL) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). 

Essa sondagem deve acontecer não apenas no início do ano, mas de forma sistemática e periódica para acompanhar o avanço das crianças e contribuir para o planejamento do alfabetizador. 

O segundo passo é em relação ao método. “Não há um método único que resolva tudo. Os professores têm de lançar mão de todas as estratégias possíveis”, aponta Isabel Frade, presidente da Associação Brasileira de Alfabetização (ABAlf) e pesquisadora do Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita (Ceale) da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 

Artur considera que é preciso abandonar métodos padronizados. “Magda Soares sempre insistiu que precisamos ‘ter método’ para alfabetizar, de modo a desenvolver um ensino que respeite as ideias do aprendiz e garanta um domínio progressivo da escrita alfabética.”

A aquisição do sistema de escrita alfabética

Ao propor que as crianças experimentem e pensem a respeito da escrita, o professor, enquanto tenta interpretar o que eles querem registrar, deve estimular a discussão. Ele pode dar pistas, fazer perguntas, remeter a palavras que elas já conhecem, estimular a comparação com outros vocábulos e questionar o que acontece quando se muda uma letra, por exemplo. 

“O estudo da relação som-letra não é ficar trabalhando com a mesma sílaba até os alunos a dominarem, mas trabalhar sistematicamente com essas unidades variando o fonema, a abordagem e as estratégias”, destaca Isabel. 

Para isso é essencial disponibilizar um alfabeto móvel e textos na sala de aula, de forma que as crianças possam ter acesso a esses materiais e consultá-los. “O ambiente alfabetizador precisa contar com  esses recursos: textos, rótulos [de produtos], jogos. Isso possibilita um aprendizado mais significativo”, explica Ermita de Nazaré, professora de 1º ano na EMEF Grão Pará, em Tucuruí (PA). 

“A criança cria um repertório e sabe onde pode procurar apoio. Ela não tira isso da cabeça espontaneamente. Isso é trabalhado quando há muitas palavras escritas na sala de aula que ela memoriza, assim como os títulos das histórias ou os personagens que conhece”, complementa Isabel.

Texto como centro do processo de alfabetização

Magna Soares, professora de 2º ano na EM Dona Marucas, em Lagoa Santa (MG), estava apenas há um ano na rede quando foi criado o Núcleo de Alfabetização e Letramento, com apoio de sua quase xará, Magda Soares. 

“Aprendi tudo sobre como funciona a alfabetização. Como partir de um texto para explorar as palavras, como escolher aquelas que vou usar, se vou trabalhar com sílabas simples ou complexas”, conta a educadora. 

Este ano, a professora tem duas turmas de 2º ano, uma em cada turno. Entre seus 36 alunos, 27 já estão em nível alfabético, alguns ainda trabalhando com sílabas mais simples, enquanto outros já dominam as mais complexas. Com base no planejamento anual e no diagnóstico, Magna monta seu próprio planejamento selecionando textos e livros que deseja explorar. “Do texto vai para a frase, para a palavra, e depois trabalhamos as sílabas, as letras. Eu acho mais tranquilo fazer dessa maneira do que de forma solta [descontextualizada]”.

Aprendizagem significativa

O trabalho centrado em textos não quer dizer que o professor não vá passar por todas as sílabas ou letras. Essas aprendizagens devem ser garantidas e sistematizadas para acompanhar o que as crianças já sabem e o que ainda precisam trabalhar – esse mapeamento ajuda a direcionar a escolha dos textos e das atividades seguintes. 

“O mais interessante é não se prender em determinadas sílabas [ou em uma ordem ou família silábica]. Às vezes, em uma palavra, trabalhamos três sílabas diferentes, e a criança está sempre retomando o que já sabe”, diz a professora de Lagoa Santa. 

“Magda Soares tinha as casinhas em que as crianças colocavam as sílabas que iam aprendendo de forma significativa. Não para formar as famílias silábicas, mas para saber que aprenderam o BA e o PA, por exemplo. Até que tinham todas as sílabas na ordem que aprenderam”, completa Isabel. 

Entre os desafios encontrados, Magna destaca o próprio desenvolvimento da consciência fonêmica [habilidade que consiste em conhecer e manipular

intencionalmente a menor unidade fonológica da fala, o fonema]. “As crianças não precisam da minha voz, e elas também podem falar para escrever. Quando ganham confiança para fazer isso e aprendem a dividir a palavra em sílabas, elas conseguem transmitir isso para a escrita e avançar”, observa.

Como começar o processo

Embora conhecer o alfabeto seja uma informação importante, ele não é pré-requisito para as demais atividades. “Ele vai sendo utilizado em contextos sociais, como apoio para pensar”, comenta Caroline. “Os primeiros dias de aula não são para aprender cada letra. Desde o começo, trabalhamos com textos reais. Colocamos a mão na massa, mesmo que não saibam escrever. Eu os apoio com informações de que precisam, eles consultam o alfabeto ou eu escrevo palavras de referência.” 

Na fase inicial, quando as crianças ainda estão em nível pré-silábico, o trabalho com rimas e aliterações (semelhança entre sílabas iniciais) ganha destaque, pois favorece que elas prestem atenção nos sons das palavras e não apenas em seu significado. Se, por exemplo, a proposta era encontrar outras palavras que começam com MA de MAcaco, e as crianças respondem cachorro, gato, leão – palavras do mesmo campo semântico –, o professor pode questionar, repetir os termos e chamar atenção para as sílabas iniciais. 

Em caso de ainda haver dificuldade, uma estratégia é dar pistas ou propor que procurem palavras de referência na sala – no caso de ter no mural uma lista de nomes e uma das alunas chamar MAria, por exemplo, já vão encontrar mais uma palavra. 

Dessa forma, com atividades que promovem a reflexão a respeito das palavras e do que elas são “compostas”, os alunos poderão avançar para uma hipótese silábica. “A partir do momento que a criança compreende que a escrita representa a fala, ela está começando a desenvolver a consciência fonológica [veja miniglossário a seguir], percebendo que a escrita representa os sons”, explica Mazé Nóbrega, formadora de professores e consultora pedagógica desta reportagem.

Miniglossário: consciência fonológica e grafofonêmica

“O ato de escrever é diferente do ato de ler. As crianças constroem hipóteses, na hora de escrever já sabem o som que querem representar. Ela até pode colocar a letra ‘equivocada’, mas já sabe o que quer registar”, exemplifica Isabel Frade, da ABAlf. “É diferente de ler, porque ela não tem nenhuma pista do que aquilo representa se não conhece a relação letra-som”. 

Apesar de interligados, já que o domínio de um facilita o outro, são conhecimentos diferentes. Veja, a seguir, alguns conceitos importantes nesse processo:

Consciência fonológica

É a compreensão de que as palavras são compostas por segmentos sonoros, isto é, a correspondência som-letra (fonema-grafema). 

Artur Gomes de Morais, da UFPE, ressalta que esse conceito não pode ser confundido com o método fônico, que faz parte dos métodos sintéticos de alfabetização. Independentemente das metodologias adotadas, a consciência fonológica é uma aprendizagem obrigatória para a aquisição do sistema de escrita alfabética. 

“O professor faz isso em várias situações, sem isolar fonemas, mas ao apresentá-los no contexto das palavras, verificando os sons, as sílabas, as rimas, as aliterações e avaliando as mudanças quando os fonemas estão em determinadas posições das palavras. Tudo isso tem a ver com a relação entre oral e escrito”, acrescenta Isabel. 

No livro Alfaletrar: toda criança pode aprender a ler e a escrever (2020), Magda Soares explica que a consciência fonológica, associada à aprendizagem das letras, seria composta por três níveis:

– Lexical: supõe a compreensão tanto do conceito de palavra na escrita (limitada por espaços em branco), como a percepção de que a cadeia de sons que que a compõe pode ser igual a outras (rimas e aliterações);

  • – Silábica: a palavra pode ser dividida em partes menores, sílabas;

– Fonêmica: as sílabas, que compõem as palavras, são formadas por unidades menores de sons – os fonemas. Aqui temos a consolidação da correspondência som-letra.

Consciência grafofonêmica

Enquanto temos esse processo na escrita, a consciência grafofonêmica desenvolve-se à medida em que a criança avança em seu conhecimento das relações fonemas-letras, atingindo a fase alfabética e incorporando as regras básicas de ortografia. 

“Penso que, como Magda Soares, uma vez atingida a hipótese de escrita alfabética – eu diria que já quando a criança está silábico-alfabética –, a escola precisa ajudá-la a conhecer as diferentes relações entre grafemas e sons, com todas as estruturas silábicas de nossa língua”, salienta Artur.

Leia esta reportagem para entender outros termos e explicações importantes do processo de alfabetização.

Atividades contextualizadas e de pareamento

Ainda que ambas as professoras estejam com turmas do 1º ano do Fundamental, a realidade de Ermita é bem diferente da de Caroline.  “A maior parte da turma, 19 alunos [de 25] não sabem diferenciar letras de números”, conta. 

Após uma boa sondagem, Ermita iniciou o ano investindo em atividades variadas, com projetos de leitura e escrita, uso de jogos e brincadeiras e trabalho colaborativo. Em paralelo, duas vezes por semana, no contraturno escolar, ela tem a oportunidade de continuar o trabalho com mais estratégias para o avanço das crianças. Nesse momento, além do foco em leitura e escrita, elas também terão projetos envolvendo outros componentes curriculares. 

Essas propostas sempre surgem dentro de contextos sociais de escrita, assim como Magna e Caroline fazem. “Tudo tem de ser contextualizado. Eu apresento o todo. Por exemplo, eu trabalhei a cantiga Galinha do Vizinho. Cantamos duas ou três vezes até eles memorizarem a letra. Depois, eu fui para algumas partes [focando em palavras começando com determinada letra]”, lembra Ermita. A estratégia pode ser utilizada com textos de outros gêneros que tenham sido compartilhados com as crianças.

Escrita espontânea e uso de brincadeiras

Ainda que os alunos não escrevam convencionalmente, Ermita ressalta a importância dos momentos de escrita espontânea. Para celebrar o Dia Internacional da Mulher, ela propôs que eles escrevessem, do jeito deles, uma carta para as mulheres de sua vida– alguns, por exemplo, fizeram garatujas. 

“É um pontapé inicial, a forma que entendem hoje que se dá a escrita”, destaca. Posteriormente, ela questiona o que eles escreveram e assume o papel de escriba. Os alunos têm então a oportunidade de comparar e refletir sobre a escrita e perceber que ela se dá por meio das letras. 

Como o aspecto lúdico é muito importante no ciclo de alfabetização, utilizar jogos e brincadeiras também é uma boa estratégia para construir aprendizagens significativas e engajar as crianças. Na sala de Caroline, há cantinhos com materiais para brincar, que podem ter relação com as atividades de leitura e escrita. 

“As crianças propõem o que pode ser, como uma padaria ou um supermercado. Como vivemos em uma sociedade em que a palavra está sempre presente, pensamos em quais placas precisamos ter. Então, temos essas escritas mais orgânicas”, finaliza.

Nova Escola

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