Educação & Cultura
O que é currículo em espiral e como aplicá-lo na sala de aula?
Essa abordagem teórica, que dialoga com a BNCC, propõe que os estudantes mobilizem saberes prévios para desenvolver habilidades e aprofundar conhecimentos de forma significativa e progressiva
Ao longo de sua trajetória escolar, os alunos têm contato com um mesmo tema diversas vezes, sempre aprofundando seus conhecimentos sobre o assunto. No 1º ano do Ensino Fundamental, por exemplo, aprendem a identificar e nomear figuras planas; no 2º, reconhecê-las e compará-las; e, no 3º, classificá-las. Essa abordagem teórica é chamada de currículo em espiral.
O conceito surgiu na década de 1960, proposto pelo psicólogo estadunidense Jerome Bruner (1915-2016). Para ele, todo assunto poderia ser ensinado a uma criança em qualquer fase de desenvolvimento, mesmo que de forma simples.
Currículo em espiral e o construtivismo
O currículo em espiral pressupõe que um mesmo tópico seja revisitado pelos estudantes de tempos em tempos, ampliando sempre sua complexidade e se relacionando com o aprendizado adquirido anteriormente. Bruner foi um teórico construtivista, portanto, entendia que os alunos são capazes de construírem seus próprios conhecimentos, pautados pela descoberta.
“O construtivismo considera que o aluno tem que ser o centro do processo de ensino e aprendizagem. Partindo desse pressuposto, quando você permite que a criança ou jovem retome um conteúdo e vá se aprofundando, respeitando seu nível cognitivo, ela consegue mobilizar melhor esse objeto de conhecimento”, explica Cíntia Diógenes, professora dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental na rede municipal de Fortaleza (CE) e integrante do Time de Formadores da NOVA ESCOLA.
Nos métodos mais tradicionais de ensino, os professores abordam cada tópico apenas uma vez, com tudo o que está relacionado a ele em algumas aulas. “Ficava entendido que o aluno já havia aprendido aquilo, então não precisava mais retornar ao assunto”, afirma Cíntia. Com o currículo em espiral, a lógica é outra.
“Quando você trabalha nessa proposta de currículo em espiral, você permite que o aluno assimile, mobilize, sistematize e aplique esses conhecimentos em algumas situações. Depois que isso já estiver bem acomodado, ele vai poder ter novos desafios envolvendo esse assunto”, completa a educadora.
Progressão da aprendizagem
A ideia de não apenas revisar, ou seja, andar em círculos, mas mobilizar conhecimentos prévios para aprofundar os conhecimentos dos alunos, avançando em espiral, é um aspecto importante dessa abordagem.
“Uma aprendizagem significativa se dá pela ideia de que eu já tenho um repertório, um conhecimento prévio. Quando eu entro em contato com algo novo, eu dialogo com esse saber que eu já tenho”, destaca Tereza Perez, diretora da Comunidade Educativa CEDAC. E, ao dialogar com esse novo conteúdo ou abordagem, o estudante desenvolve novas possibilidades de compreensão desse saber. “Então, eu caminhei, aprendi e dei um passo à frente. E assim eu vou sucessivamente. Desconheço outra maneira de aprender que não seja essa”, reforça.
Sidecleia dos Anjos, formadora da NOVA ESCOLA e do Instituto Chapada, diz que essa abordagem é essencial para garantir uma aprendizagem que se consolida no longo prazo e que não é transmitida apenas para cumprir uma lista de conteúdos a serem ensinados.
“Quando eu organizo um currículo pensando nesse encadeamento das habilidades que um estudante vai desenvolver, eu ganho na garantia de uma progressão da aprendizagem”, salienta a formadora. “Então, a aprendizagem vai acontecer de forma mais sistêmica e consistente, porque eu estou pensando nela pautada não em um ano ou bimestre, mas em um longo período, e considerando que ela se estabelece com outras aprendizagens de outros anos.”
O currículo em espiral na BNCC
A aprendizagem em espiral aparece de forma bastante consolidada na Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Isso se dá, sobretudo, a partir das habilidades propostas pelo documento, que repetem temáticas ao longo do anos, sempre mobilizando conhecimentos adquiridos anteriormente e os aprofundando.
Cada habilidade presente na BNCC tem um verbo de ação cognitiva, um objeto de conhecimento e um modificador, ou seja, um contexto. Por exemplo, na habilidade EF01MA14, que prevê que os alunos consigam “identificar e nomear figuras planas (círculo, quadrado, retângulo e triângulo) em desenhos apresentados em diferentes disposições ou em contornos de faces de sólidos geométricos”:
- “identificar” e “nomear” são os verbos de ação cognitiva;
- “figuras planas” é o objeto de conhecimento;
- e “desenhos apresentados em diferentes disposições ou em contornos de faces de sólidos geométricos” é o modificador.
Ao longo dos anos escolares, a BNCC propõe habilidades que apresentam o mesmo objeto de conhecimento, mas alterando os verbos e os modificadores. Seguindo o mesmo exemplo, a habilidade EF02MA15 traz o mesmo objeto de conhecimento – figuras planas -, mas com outros verbos e contexto ligeiramentes diferentes: “Reconhecer, comparar e nomear figuras planas (círculo, quadrado, retângulo e triângulo), por meio de características comuns, em desenhos apresentados em diferentes disposições ou em sólidos geométricos”.
“Dessa forma, o aluno vai caminhando, indo e voltando no mesmo objeto, de forma a aprofundar o seu conhecimento acerca daquele assunto”, comenta Cíntia.
“A BNCC traz aprendizagens de longo prazo, e aí ela estabelece que determinada habilidade é para ser construída do 1º ao 5º ano ou do 6º ao 9º ano, por exemplo. Isso significa que eu vou trabalhar aquela habilidade do mesmo jeito em todos os anos? Não. Como ela é uma uma habilidade maior, mais ampla, eu vou recortando, dando progressão a ela”, acrescenta Sidecleia.
Aluno como protagonista
Além das habilidades da BNCC apresentarem essa conexão direta com o currículo em espiral, o documento também tem forte influência do construtivismo ao colocar o aluno no centro do processo de ensino e aprendizagem.
“Se o professor já tem um bom domínio da Base, ele percebe que as ações presentes nas habilidades não estão focadas no educador ou no ensino. O documento traz verbos de ação cognitiva do aluno, aquilo que o estudante precisa fazer”, observa Cíntia.
“Ninguém constrói uma habilidade pelo outro”, reforça Sidecleia. “Então, eu não construo uma habilidade se o outro me explicar algo. Eu construo uma habilidade se eu fizer, testar, tiver alguém mediando e dizendo quais são os caminhos que eu posso seguir.”
Currículo em espiral e a taxonomia de Bloom
Assim como o currículo em espiral, a taxonomia de Bloom pressupõe que os alunos consolidem seu repertório mental antes de passarem para um aprendizado mais aprofundado, sempre respeitando sua etapa de desenvolvimento.
Apesar de as duas teorias serem complementares, elas não são a mesma coisa. Criada pelo psicólogo e pedagogo estadunidense Benjamin Bloom (1913-1999), a taxonomia de Bloom afirma que toda aprendizagem cognitiva é dividida em seis habilidades (conhecimento, compreensão, aplicação, análise, síntese e avaliação), sendo cada nível mais complexo e específico que o anterior.
Cada uma dessas habilidades é composta por diversos verbos de ação. Por exemplo, o conhecimento pode ser definido por verbos como apontar, definir, enunciar, marcar, recordar, nomear e sublinhar, enquanto a avaliação se reflete em verbos como apreciar, eliminar, escolher, ordenar e validar. Nesse sentido, é bastante fácil associar essa teoria aos verbos de ação cognitiva presentes nas habilidades da BNCC, que vão avançando com o passar dos anos.
Conforme um objeto de conhecimento é acompanhado de um verbo diferente, sua complexidade aumenta, o que pode ser relacionado tanto à taxonomia de Bloom quanto ao currículo em espiral. “A gente não coloca a taxonomia de Bloom e o currículo em espiral numa tabela comparativa. Na verdade, a taxonomia de Bloom apoia a estruturação de um currículo em espiral”, aponta a professora e formadora Cíntia Diógenes.
“Em um currículo em espiral, é importante que haja uma preocupação com essa progressão das ações cognitivas a serem desenvolvidas pelos estudantes, como proposto por Bloom. Se isso não acontece, você está trabalhando em um círculo e não em uma espira. Ou seja, você vai e volta no mesmo assunto sem progredir nas aprendizagens, sem aprofundar, como se fosse um cachorrinho correndo atrás do próprio rabo”, compara Cíntia.
Aprendizagem em espiral na sala de aula
Além do currículo em espiral se desenvolver ao longo dos anos da Educação Básica, relacionando as habilidades abordadas em cada etapa, também é importante trabalhar a aprendizagem em espiral dentro de cada ano e de cada habilidade.
Na sala de aula, o professor pode dividir uma única habilidade em diversos objetivos de aprendizagem, criando um aprendizado progressivo e espiralado. “Eu não consigo ajudar os meus estudantes a desenvolverem uma habilidade em uma aula, eu preciso de uma sequência de aulas. Portanto, é importante que eu pense a progressão dentro dessas aulas”, afirma Sidecleia. “Toda habilidade tem um conjunto de saberes menores que estão envolvidos naquela construção, então eu consigo organizar esses saberes, que chamamos de objetivos de aprendizagem, de forma progressiva. Assim, eu estou garantindo esse currículo em espiral.”
Para isso, a principal dica das especialistas é que os professores foquem no planejamento das aulas. Primeiro, é necessário pensar em qual habilidade se espera que os alunos aprendam até o final de determinada aula ou sequência de aulas. Depois, é hora de pensar no caminho em espiral que será seguido para atingir esse objetivo.
Foco na recomposição de aprendizagens
Além de espiralar cada habilidade, é essencial que os professores avaliem os alunos constantemente para saber se eles têm conhecimentos prévios suficientes para avançarem para um novo tópico.
Neste momento de recomposição de aprendizagens após períodos de ensino remoto por conta da pandemia de Covid-19, o currículo em espiral ajuda os professores a olhar para trás e encontrar conhecimentos que podem ser mobilizados para que os alunos adquiram novos saberes. Confira um vídeo detalhando o que é a recomposição de aprendizagens:
Segundo Cíntia, graças ao currículo em espiral, é possível recompor habilidades. “Se eu trabalho os mesmos objetos de conhecimento ano após ano, então é possível que eu retome. Se no 3º ano eu deveria trabalhar análise e comparação de figuras planas, mas meus alunos ainda não estão nesse nível de complexidade, eu posso retomar os conceitos mais basilares e ir progredindo gradualmente até chegar ao que eu espero que eles façam naquele ano”, exemplifica. “Se eu tivesse que trabalhar todo o assunto em um ano só, esse conhecimento todo teria sido perdido.”
Aprendizagem com equidade
O currículo em espiral também pode auxiliar os professores a garantir a equidade da turma. Para isso, é necessário olhar para cada estudante, entender o que cada um sabe e ajustar as propostas.
“Eu sempre vou buscar uma equiparação de aprendizagens. A gente já sabe que ninguém aprende a mesma coisa ao mesmo tempo, porque os repertórios e os ritmos são diferentes, mas tenho que buscar que a turma esteja alinhada”, ressalta Tereza. “Tenho que olhar de outra maneira para os alunos que estão com mais dificuldade, porque a espiral tem que funcionar para todo mundo: para quem está com dificuldade, para quem está no meio e para quem já é muito sabido. Ela sempre tem que puxar um pouco além do estágio de cada um.”