AGRICULTURA & PECUÁRIA
Como garantir a integridade social dos projetos de carbono?
Futuro promissor depende do desenvolvimento desse mercado pautado efetivamente por integridade climática e social
O Brasil é conhecidamente uma potência em termos de projetos de carbono florestais: segundo estudo desenvolvido pelo ICC Brasil em conjunto com a Way Carbon considerando o ano de 2022 (ICC Brasil e WayCarbon. Oportunidades para o Brasil em Mercados de Carbono. Relatório 2022), o país poderia gerar US$ 120 bilhões em receitas até 2030, com o potencial de atender a até 28% da demanda global do mercado regulado e 48,7% do mercado voluntário até 2030.
Este futuro promissor, contudo, depende do desenvolvimento desse mercado pautado efetivamente por integridade climática e social, sob pena de sua utilização ser globalmente abandonada. Significa dizer que os projetos de carbono precisam efetivamente contribuir à transição para uma economia de baixo carbono – mediante métricas robustas e baseadas na ciência – e ser estruturados e desenvolvidos de forma tal a não causarem prejuízos às comunidades por eles afetadas. O olhar e a preocupação sobre referidas temáticas têm crescido de forma exponencial na comunidade internacional, sendo para fins deste artigo importante destacar a discussão envolvendo a integridade social.
Certificadoras do mercado voluntário de carbono como a Verra e a Architecture for REDD+ Transactions (ART) contabilizam o envolvimento das comunidades locais nos projetos de carbono como fator de risco em suas metodologias (respectivamente, Verified Carbon Standard – VCS e The REDD+ Environmental Excellence Standard – TREES). Assim, no VCS, somente são aprovados os projetos que tenham passado pelo processo de consulta à população do entorno, compreendido quais as relações de dependência entre a área do projeto e a comunidade local e quais os riscos que a sua implementação pode acarretar, mitigando os efeitos e promovendo ações que gerem impactos positivos.
Por outro ângulo, para destacar projetos de carbono florestais que – concomitantemente – garantam redução de emissões, beneficiem as comunidades locais e promovam conservação da biodiversidade, foi criado o padrão Climate, Community and Biodiversity (CCB) pelo Verra. Dentre os indicadores que precisam ser atendidos para validação de projetos de carbono perante o CCB está o “Respeito pelos Direitos a Terras, Territórios e Recursos, e Consentimento Prévio, Livre e Informado” – no âmbito do qual há referência expressa à figura da consulta prévia, livre e informada (CPLI) – objeto de especial interesse deste artigo.
Por sua vez, o TREES foi pensado a partir das decisões da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima (UNFCCC, na sigla em inglês) – dentre as quais estão as Salvaguardas de Cancun, específicas para projetos de Redução de Emissões provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal – REDD+. Exige-se, assim, que a presença de comunidades tradicionais seja mapeada e que o projeto valorize os seus conhecimentos, mediante a observância aos tratados internacionais, à legislação nacional e às especificidades regionais. O ART dá ênfase, ainda, à imprescindibilidade de conferir participação ativa às comunidades tradicionais e/ou locais nos projetos de carbono, conferindo transparência no processo de tomada de decisões e incluindo-as nos programas e políticas previstos para a emissão destes créditos – referenciando também a figura da CPLI.
A CPLI é prevista em diversos tratados internacionais ratificados pelo Brasil, sendo o principal deles a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais. Esta Convenção trata do direito dos povos tradicionais de terem sua integridade preservada e dispõe sobre a obrigação de os governos nacionais promoverem: (i) medidas específicas à salvaguarda de pessoas, instituições e iniciativas próprias, bens, culturas e meio ambiente dos povos tradicionais; e (ii) a consulta expressa livremente, mediante procedimentos apropriados às circunstâncias, de boa-fé, que confiram aos povos consultados o pleno conhecimento de causa, com a participação de suas instituições representativas, a fim de chegar a um acordo, sempre que houver medida legislativa ou administrativa capaz de afetá-los.
Nessa linha, embora a Convenção 169 da OIT faça referência ao processo de CPLI, não há efetivamente uma regra quanto à sua aplicação concreta, o que tem ficado a cargo dos governos nacionais que a ratificaram.
No Peru, por exemplo, houve regulamentação da Convenção 169 da OIT em 1989. Tal regulamentação prevê, dentre outros pontos, (i) que a consulta seja feita antes da tomada de qualquer decisão, em prazo considerado razoável para que as instituições tradicionais ou organizações representativas possam refletir e fazer propostas concretas sobre o objeto da consulta (consulta prévia); (ii) que os povos tradicionais seja ouvidos em clima de confiança, colaboração e respeito mútuo, impondo, tanto ao Estado quanto aos representantes das instituições e organizações, o dever de agir de boa-fé, com a ausência de coerção ou condicionamento (consulta livre); e (iii) a adaptação, inclusive linguística, às diferenças existentes entre as culturas, obrigando o consultante a disponibilizar todas as informações necessárias para que os povos tradicionais se expressem devidamente (consulta informada).
Importa também destacar a decisão de 2007 da Corte Interamericana de Direitos Humanos (IDH), no Caso del Pueblo Saramaka vs. Suriname. Neste julgamento, a Corte IDH definiu que há direito exclusivo de uso do território e dos recursos naturais aos povos tradicionais, estendendo o direito de propriedade previsto no artigo 21 de sua Convenção. Assim, definiu-se que qualquer limitação a este direito deve ocorrer via CPLI, repartição de benefícios e elaboração de estudos adequados. O processo de consulta foi, ademais, reconhecido como princípio de direito internacional (Caso del Pueblo Indígena Kichwa de Sarayaku vs. Equador), e deve ocorrer de maneira culturalmente apropriada.
Muito embora o Brasil também seja signatário da Convenção 169 da OIT (a qual possui qualidade de norma supralegal e aplicação imediata, como decidiu o Supremo Tribunal Federal), ainda não há no ordenamento brasileiro qualquer regulamentação desse processo de CPLI – o qual deve alcançar todos os grupos que se reconheçam culturalmente diferenciados, a partir de formas próprias de organização social, que ocupem territórios e utilizem recursos naturais como condição essencial à reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, e que transmitirem estes conhecimentos pela tradição (incluindo, portanto, os povos indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas e populações extrativistas).
A construção de uma regulamentação legal desse processo de CPLI no Brasil – que parta de um processo amplo de consulta e discussão envolvendo as comunidades tradicionais do país – nos parece chave para garantir a preservação dos direitos das comunidades tradicionais e, por outro ângulo, impulsionar o país rumo à transição sustentável a uma economia de baixo carbono via oportunidades do mercado de carbono florestal.
Isso porque a falta de uma regulamentação legal desse processo coloca os desenvolvedores de projetos de carbono florestais – comumente desenvolvidos em locais próximos a comunidades tradicionais – em situação de significativa insegurança jurídica. Falhas no desenvolvimento de projetos de carbono florestais sob a perspectiva de integridade social podem, no limite, arruinar a reputação desse novo mercado e impedir que o país aproveite das inúmeras oportunidades financeiras que estão a ele atreladas.
Enquanto tal regulamentação não vem, entendemos que há caminhos e ações possíveis para tratar desta problemática: diversos povos tradicionais – como os Yanomami, Krenak, povos e comunidades do Xingu, de Montanha e Mongabal, Munduruku etc. – já possuem protocolos comunitários para a realização de CPLI, divulgados pelo Ministério Público Federal.
Nesse sentido, avaliar se já existe procedimento de CPLI relacionado aos povos tradicionais impactados por um determinado projeto de carbono e adotá-lo a cada tomada de decisão que possa os interessar é uma ação recomendada aos desenvolvedores de projetos de carbono florestais no Brasil. Adotar práticas e ações inspiradas nesses protocolos – por exemplo, realização de reuniões na própria comunidade, em datas pré-alinhadas que não conflitem com as atividades da comunidade, com a participação de órgãos representativos e na presença de tradutores da língua locais previamente indicados pela comunidade – também pode contribuir para mitigar os riscos de exposição de desenvolvedores com projetos que impactem comunidades ainda sem referidos protocolos, conferindo bases mais sólidas à integridade social dos projetos de carbono florestal no Brasil.