Judiciário
A vulnerabilidade no crime de estupro
Resumo: Trata-se do estudo da compreensão da vulnerabilidade nos aspectos da tipificação do crime dos crimes de estupros, segundo a legislação, a jurisprudência e a doutrina. Para isso, estabeleceu-se o objetivo de traçar um panorama situacional da vulnerabilidade na configuração dos crimes de estupros, seja o estupro propriamente dito ou o estupro de vulnerável, com uso da metodologia de pesquisa bibliográfica. Os resultados evidenciam que o crime de estupro pode ocorrer com ou sem a presença da vulnerabilidade, quando ela ocorrer, tem-se o crime intitulado estupro de vulnerável. A vulnerabilidade, por sua vez, pode ocorrer pelo critério etário, quando a vítima é menor de 14 anos, quando não tem o necessário discernimento para a prática do ato ou não tem condições de oferecer resistência ao ato sexual violador.
INTRODUÇÃO
Este estudo trata dos aspectos da vulnerabilidade para efeitos de configuração do crime de estupro, abordando os elementos legais, jurisprudenciais e doutrinários. O capítulo do Código Penal (CP) que trata dos crimes sexuais passou por uma significativa mudança no ano de 2009, em que a nomenclatura passou a ser de crime contra a dignidade sexual, o que mostra a preocupação da sociedade em considerar que a sexualidade constitui um elemento da dignidade da pessoa humana (BRASIL, 2009).
Neste sentido, a presente pesquisa tem o objetivo de traçar um panorama situacional da vulnerabilidade na configuração dos crimes de estupro, seja o estupro propriamente dito ou o estupro de vulnerável. Para tanto, faz uso da metodologia de pesquisa bibliográfica, uma vez que se trata de um método adequado e suficiente para chegar ao objetivo estabelecido, pois fornecer elementos a resolução de um problema de pesquisa e atingir objetivos acadêmicos (LAKATOS; MARCONI, 2003).
Dados do Anuário Brasileiros de Segurança Pública de 2022 mostram que em uma década o Brasil registrou mais meio milhão de estupros, desses, somente no ano de 2021, 75,5% foram do crime de estupro e 25,5% do crime de estupro de vulnerável (BUENO; LIMA, 2022). Esses dados mostram a relevância do tema, bem como justifica o presente estudo, à medida em que contribui para a melhor compreensão do tema, o debate na sociedade e fornecer material bibliográfico para a evolução acadêmica.
Com isso, o estudo se propõe a oferecer uma resposta aceitável para o seguinte problema: qual estado da técnica da compreensão da vulnerabilidade no crime de estupro, segundo a legislação, a jurisprudência e a doutrina?
Os resultados mostram que o crime de estupro é tipificado com ou sem a ocorrência de vulnerabilidade. Quando há a vulnerabilidade, estar-se diante do crime de estupro de vulnerável, quando ela não está presente o crime caracterizado é o de estupro propriamente dito.
Em vulnerabilidade é compreendida segundo dois critérios: o etário e a ausência da capacidade de oferecer resistência ou não ter o necessário discernimento. O critério etário é a presunção absoluta de vulnerabilidade da pessoa menor de 14 anos. O segundo critério é quando a vítima do crime de estupro de vulnerável não tem o necessário discernimento para a prática do ato, por enfermidade ou deficiência mental, ou, por quaisquer outras causas, não pode oferecer resistência.
A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA DO CRIME DE ESTUPRO
A legislação penal brasileira, o Código Penal (CP), trata dos crimes contra a dignidade sexual no Título VI, que em seu Capítulo I estabeleceu os crimes contra a liberdade sexual. Essa parte do CP passou por uma significativa alteração legislativa, trata-se da Lei nº 12.015/2009, que deu nova roupagem e atualização da legislação criminal sexual no Brasil.
A referida reforma introduzida pela Lei nº 12.015/2009
unificou numa só figura típica o estupro e o atentado violento ao pudor, fazendo desaparecer este último, como rubrica autônoma, inserindo-o no contexto do estupro, que passa a comportar condutas alternativas. O objeto do constrangimento é qualquer pessoa, pois o termo usado é alguém. No mais, o referido constrangimento a alguém, mediante violência ou grave ameaça, pode ter as seguintes finalidades complementares: a) ter conjunção carnal; b) praticar outro ato libidinoso; c) permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. (NUCCI, 2017, p. 939)
O crime de estupro está nos art. 213 e 217-A, CP. Ao art. 213, CP, trata do crime de estupro propriamente dito, isto é, estabelece a regra geral do crime de estudo, ao passo que o art. 217-A, CP, estabelece o crime de estupro de vulnerabilidade, objeto central deste estudo.
O crime do art. 213, CP, é a conduta de usar da violência ou grave ameaça para a o ato sexual.
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:
Pena – reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos
§ 1° Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos
§ 2º Se da conduta resulta morte
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. (BRASIL, 2019)
A melhor compreensão deste dispositivo evidencia que a conjunção canal ou ato libidinoso é no sentido de que a primeira é o coito vaginal, isto é, a penetração do pênis no canal vaginal, o “penis in vaginam”, enquanto o ato libidinoso é os demais atos sexuais, tais como “coito anal ou oral, o uso de instrumentos ou dos dedos para a penetração no órgão sexual feminino, ou a cópula vestibular, em que não há penetração” (JESUS, 2020, p. 129).
O crime do art. 217-A, CP, é o estupro de vulnerável, além dos elementos acima estudado, pressupões que o sujeito ativo esteja em situação de vulnerabilidade.
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena – reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2º (VETADO)
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave:
Pena – reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4º Se da conduta resulta morte:
Pena – reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos.
§ 5º As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime. (BRASIL, 2019)
A vulnerabilidade será mais detalhada na seção seguinte, mas neste momento cabe observar que a lei brasileira compreende como vulnerável a pessoa menor de 14 anos ou quem, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência, portanto, trata-se de um critério etário e de outro referente a condição de resistir (ESTEFAM, 2022).
A jurisprudência dos tribunais pátrios segue esse entendimento, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) editou a Súmula 593 sobre o tema.
Súmula nº 593/STJ: O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente. (STJ, 2017)
Os crimes de estupros, assim, podem ocorrer com o sem a presença da vulnerabilidade, quando ela está presente, tem-se o tipo penal específico do estupro de vulnerável.
O ESTUDO DA VULNERABILIDADE
O ordenamento jurídico brasileiro é construído para garantir o mandamento constitucional de proteção integral da Criança e do Adolescente, sobretudo concretizado no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (SPOSATO, 2013; BRASIL, 1900).
Porém, para chegar a este estágio, o direito percorreu um longo caminho. A criança e o adolescente passaram a ser sujeitos de direitos fundamentais com prioridade absoluta, evoluindo de um “modelo da ‘situação irregular’ pela da ‘proteção integral’, no qual a criança e adolescente são vistos como titulares de direitos e deveres” (NOVELINO, 2017, p. 865). A legislação brasileira está em consonância com os ditames da comunidade internacional, uma vez que a Organização das Nações unidas (ONU) aprovou, em 1959, a Declaração Universal dos Direitos da Criança, “visando à conscientização global. Esse organismo internacional aprovou em 1989 a ‘Convenção sobre os Direitos da Criança’, ratificada pelo Brasil em 1990 (VENOSA, 2003, p. 31).
Resta, então, com o advento da lei nº 12.015/2009 a presunção absoluta da vulnerabilidade da pessoa menor de 14 anos no caso de conjunção carnal ou ato libidinoso. No entanto, esta afirmação não era unânime à época (nem hoje o é para a minoria dos juristas), pois
doutrina e jurisprudência se desentendiam quanto a esse ponto, discutindo se a aludida presunção era de natureza relativa (iuris tantum), que cederia diante da situação apresentada no caso concreto, ou de natureza absoluta (iuris et de iure), não podendo ser questionada. Sempre defendemos a posição de que tal presunção era de natureza absoluta, pois, para nós, não existe dado mais objetivo do que a idade. (GRECO, 2017, p. 145)
A doutrina e a jurisprudência evoluíram para conceber a interpretação literal da lei, como deve ser em matéria de direito penal, no sentido de a presunção de vulnerabilidade ser absoluta quando se trata de vítima menor de 14 anos. Neste sentido, para Capez (2019, p. 16) o “consentimento de menor de 14 anos para a prática de relações sexuais e sua experiência anterior não afastariam a presunção de violência para a caracterização do estupro ou do atentado violento ao pudor”.
Capez (2019) lembra, ainda, que o legislador de 2009 não usou a melhor técnica legislativa penal, pois estabeleceu o termo “menor de 14 anos”, o que leva a conclusão de que caso a conduta seja prática no dia do aniversário de 14 anos não fica configurado o crime de estupro de vulnerável. Se há violência ou grave ameaça, resta caracterizado o crime de estupro do art. 213, CP, se não há, a conduta será atípica.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ), como dito na seção anterior, pacificou este entendimento na súmula 593, o que vem sendo seguido pelos tribunais. Vejamos alguns exemplos: STF, HC 81.268/DF; STF, RHC 80.613/SP; STF, RHC 79.788/MG; STF, HC 76.246/MG; STJ, REsp 250.305/SC; STJ, REsp 40.200-39/CE; STJ, REsp 486.041/MG; STJ, REsp 213.291/SP; STJ, REsp 324.161/SC; STF, HC 9.993/SP.
Mas, como visto na secção anterior, o conceito de vulnerabilidade vai além do critério etário, ele engloba também o discernimento para o ato, a capacidade de resistência da vítima de estupro e a capacidade do Estado de proteger a vítima em certas circunstâncias, incluem-se
no rol de vulnerabilidade casos de doença mental, embriaguez, hipnose, enfermidade, idade avançada, pouca ou nenhuma mobilidade de membros, perda momentânea de consciência, deficiência intelectual, má formação cultural, miserabilidade social, sujeição a situação de guarda, tutela ou curatela, temor reverencial, enfim, qualquer caso de evidente fragilidade. (CAPEZ, 2019. p.157)
O estado de vulnerabilidade deve ser, portanto, analisado à luz do caso concreto, “em razão do estado ou condição da pessoa, diz respeito a sua capacidade de reagir a intervenções de terceiros quando no exercício de sua sexualidade” (PRADO, 2019, p.915).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa teve o intuito de investigar a situação da vulnerabilidade na caracterização dos crimes de estupro, sob a ótica da legislação, jurisprudência e doutrina pátria. Para isso, usou o método da pesquisa bibliográfica, que se mostrou adequado para o propósito almejado.
Foi possível atingir o objeto traçado, pois ficou evidente a tipificação legal de duas modalidades de estupros, ambos com os limites legais reconhecidos pela jurisprudência e doutrina brasileira. O crime de estupro sem a ocorrência de vulnerabilidade, nos termos o art. 213, CP, e o crime de estupro de vulnerável, desde que presente a vulnerabilidade da vítima, nos termos do art. 217-A, CP.
Os estudos do tema mostram que a vulnerabilidade é caracterizada quando o sujeito passivo do crime se encontra suscetível à ação do sujeito ativo que tem o dolo de violar a liberdade sexual da vítima. A vulnerabilidade, portanto, é presumida para pessoas menos de 14 anos, mas pode ocorrer também quando as pessoas, acometida de doença ou deficiência mental, não têm o necessário discernimento para a prática do ato sexual, ou por outras circunstâncias, como a completa embriaguez, desmaio, sonolência profunda, a hipnose, dentre outras, não têm condições de oferecer resistência ao ato sexual.
Frisa-se, ainda, como resultado, que a violação sexual pode ocorrer com a penetração do pênis no canal vaginal, denominado de conjunção carnal, ou por atos libidinosos. Esses atos podem ser as demais manifestações sexuais, como sexo oral, anal ou quaisquer outras lascívias.
Assim, o problema da pesquisa foi respondido, ou seja, estabeleceu-se uma compreensão do estado da técnica da compreensão da vulnerabilidade no crime de estupro, segundo a legislação, a jurisprudência e a doutrina.
O presente estudo contribui para a comunidade acadêmica à medida em que fornece análise sistemática da ciência do tema, mas também para a sociedade, pois disponibiliza argumentos para o debate e melhor compreensão da vulnerabilidade. Como estudos futuros, sugere-se que seja aprofundado o tema para os demais aspectos da proteção criminal da liberdade sexual e melhorar a pesquisa sobre a compreensão da vulnerabilidade.
REFERÊNCIAS
VENOSA, S. S. Direito Civil. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2003. v. 6.
LAKATOS, E. M.; MARCONI, M. A. Fundamentos de Metodologia Científica. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
NUCCI, G. S. Código Penal Comentado. 18. ed. ver. atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
CAPEZ, F. Curso de direito penal parte especial: arts. 213 a 359-H. 17. ed. atual. São Paulo: Saraiva Educação, 2019. v. 3.
PRADO, C. R. Tratado de Direito Penal: parte especial – arts.121 a 249 do CP. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, v. 2.
BRASIL. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Brasília, 2009. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em: 9 fev. 2023.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, 1990.Dispoível em: < https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm>. Acesso em: 10 fev. 2023.
BUENO, S.; LIMA, R. S. (coord.). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2022: Uma década e mais de meio milhão de vítimas da violência sexual. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2022. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/07/11-anuario-2022-uma-decada-e-mais-de-meio-milhao-de-vitimas-de-violencia-sexual.pdf. Acesso em: 9 fev. 2023.
JESUS, D. Direito Penal: Parte especial: crimes contra a propriedade imaterial a crimes contra a paz pública – arts. 184 a 288-A do CP. Atualizador: André Estefam. 24. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. v. 3.
ESTEFAM, A. Direito Penal: parte especial – arts. 121 a 234-C. 9. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022. v. 2.
GRECO, R. Curso de Direito Penal: parte especial. 14. ed. Niterói: Impetus, 2017. v. III
SPOSATO, K. B. Direito penal de adolescentes: elementos para uma teoria garantista. São Paulo: Saraiva, 2013.
NOVELINO, M. Curso de direito constitucional. 12. ed. ver., ampl. e atual. Salvador: Juspodivm, 2017.
STJ, Superior Tribunal de Justiça. Súmulas Anotadas. In: Súmula 593. Brasília, 2017. Disponível em: https://scon.stj.jus.br/SCON/pesquisar.jsp?livre=593&b=SUMU&thesaurus=JURIDICO&p=true&tp=P. Acesso em: 9 fev. 2023.
Defensor Público do Estado de Sergipe Graduado e Especialista em Direito Público – Universidade Federal da Bahia (UFBA)