Saúde
O que são neurodireitos e por que especialistas defendem que é necessário discutir o tema
Chile foi pioneiro no debate e já foi até aos tribunais, mas, Brasil ainda engatinham na mudança de legislação
A cena parece pertencer a um filme ou série de ficção científica. Neurocientistas implantam em cérebros de ratos imagens nunca vistas pelos animais, mas que passam a se tornar memórias a partir da manipulação de pensamentos. A experiência aconteceu, de fato, em um laboratório em Nova York, nos Estados Unidos, e movimenta o debate sobre a proteção da integridade psíquica dos indivíduos, incluindo os seres humanos. Esse é o conceito básico para os neurodireitos (ou direito à neuroproteção).
O tema pode soar futurista, mas já é uma discussão atual. Prova disso foi o passo à frente dado pelo Chile que, em 2021, de forma pioneira, sancionou emenda à Carta Fundamental, a sua Constituição, em favor da privacidade de pensamentos. A lei estabelece que o desenvolvimento científico e tecnológico precisa estar a serviço das pessoas, resguardando a atividade cerebral e as informações associadas.
Em agosto deste ano, o primeiro grande caso de vulto veio à tona após denúncia do agora ex-senador chileno Guido Girardi contra a empresa americana Emotiv. A companhia criou o dispositivo Insight, que promete “ler a mente” ao monitorar a atividade cerebral do usuário, por meio de uma espécie de fone de ouvido que funciona como interface entre cérebro e computador. Apesar de ser vendido em muitos países, o político se baseou na legislação recente para questionar violação ética do produto.
Girardi apresentou um recurso à Corte Suprema do Chile alegando que o dispositivo captura informações sem o consentimento dos usuários com a ideia de criar um banco de dados. O sistema, segundo o ex-senador, pode interpretar emoções e sentimentos, com capacidade de influenciar decisões. O tribunal local decidiu pela proibição da comercialização do Insight em terras chilenas até que a tecnologia seja avaliada devidamente pelas autoridades de saúde nacionais.
Um dos maiores defensores dos neurodireitos é justamente o diretor do Centro de Neurotecnologia da Universidade de Columbia de Nova York, o neurocientista espanhol Rafael Yuste, que liderou a experiência que implementou pensamentos em ratos. Percebendo que cérebros humanos podem ser manipulados no futuro, o cientista alerta que ideias, sentimentos e decisões correm risco de passar por modificações, para o bem e para o mal.
— Tudo isso poderá ser feito em seres humanos. Isso tem o risco de decifrar, além das palavras que você quer escrever, também as palavras que você não quer escrever, como os pensamentos que você tem em mente. A neurotecnologia tanto poderá ser usada para curar a esquizofrenia e escrever à máquina com o pensamento, quanto para ler pensamentos de um prisioneiro ou de uma pessoa a fim de vender produtos, ou votos — comentou o especialista à reportagem de GZH, em passagem por Porto Alegre, em julho deste ano.
Discussão ainda no começo por aqui
Durante sua estada no RS, Rafael Yuste se reuniu com o vice-governador Gabriel Souza para tratar da necessidade de modificar as leis estaduais e para motivar o Estado a capitanear uma mudança na legislação brasileira. Uma alteração na constituição gaúcha, no entanto, deverá partir de iniciativa de deputados estaduais, e não do Executivo.
Em setembro, o presidente da Assembleia Legislativa, deputado Vilmar Zanchin (MDB), informou que será protocolada na Casa a Emenda à Constituição que trata dos neurodireitos. Segundo o parlamentar, o Legislativo gaúcho será o primeiro do país a tomar tal iniciativa. A Procuradoria Especial da Mulher, coordenada pela deputada Patrícia Alba (MDB), será a autora da emenda, que deverá ser assinada por todos os parlamentares.
Ao nível federal, o senador Randolfe Rodrigues (sem partido-AP) apresentou uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) para incluir, entre os direitos e garantias fundamentais de todo cidadão, a proteção à integridade mental e à transparência algorítmica. O texto aguarda relatoria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Os cinco neurodireitos
Yuste coordena a The NeuroRights Foundation, iniciativa ligada à Universidade de Columbia e que conclama a comunidade internacional de neurocientistas em busca da conscientização sobre os neurodireitos e os impactos das neurotecnologias. A entidade estabeleceu cinco neurodireitos:
1. Identidade pessoal
Limita qualquer neurotecnologia que possa alterar o sentido do eu das pessoas, que têm direito de controlar sua integridade física e mental.
2. Livre-arbítrio
Preserva a capacidade dos indivíduos de tomar decisões de forma livre e autônoma, ou seja, sem qualquer manipulação ou influência mediada pelas neurotecnologias.
3. Privacidade mental
Dados neurais só podem ser acessados por motivos médicos ou científicos — e com consentimento —, e não por razões econômicas ou para fins de manipulação.
4. Acesso equitativo a tecnologias de melhoramentos mentais
Busca regular a aplicação das neurotecnologias para melhorar as capacidades cerebrais para que não estejam ao alcance de poucos, gerando desigualdade na sociedade.
5. Proteção contra os vieses de algoritmos
Evita que as pessoas sejam discriminadas por qualquer fator, com inserção de preconceitos e distorções nos cérebros
Um olhar para os vulneráveis
A advogada e consultora jurídica Gabrielle Bezerra Sales Sarlet, professora de Direito da PUCRS, vê benefícios na neurotecnologia, mas atenta para parte da população historicamente vulnerabilizada, que pode ser alvo de novas modalidades de discriminação e de outras formas mais sofisticadas de exclusão social, “seja em razão da sutileza, seja da pervasividade”. No entanto, acredita que há um momento propício no país para a discussão sobre essa temática.
— O grande dilema a ser enfrentado é que, ao passo em que o ritmo das inovações é disruptivo, o modo de produção de instrumentos de regulação jurídica merece ponderação e carece de tempo de discussão para fugir das soluções apressadas e inefetivas — pondera a pós-doutora.
O professor da Faculdade de Direito da UFRGS Cesar Santolim percebe a relevância do debate, que ganhou protagonismo a partir do aprimoramento da inteligência artificial. Segundo ele, no neurodireito, como estudo das relações entre o Direito e o sistema nervoso, há diversas técnicas que são utilizadas para o “mapeamento” da atividade cerebral.
— Os “neurolawyers” procuram entender o comportamento humano a partir da compreensão dos processos e das estruturas do sistema nervoso, redesenhando soluções jurídicas a partir destas constatações. Até agora, a maioria destes estudos está centrada no Direito Penal (“neurocriminology”), mas há análises feitas também em outras áreas — explica.
Fonte: GZH