Judiciário
Ordem ilegal não se cumpre: análise jurídica detalhada e apropriada
Atenção a todos os funcionários públicos!
Por Roberto Tomé
Policiais, policiais federais, oficiais de justiça, juízes, desembargadores, ministros e todos os que exercem funções públicas:
Cumprir ordens ilegais pode trazer sérias consequências legais. Este artigo examina a fundamentação jurídica para o não cumprimento de ordens manifestamente ilegais, com base no Código Penal, Código Civil, Constituição Federal do Brasil, jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça (STJ), e o Tratado de Roma.
Princípios Constitucionais e Jurídicos
1. Constituição Federal:
A Constituição Federal de 1988 é à base do ordenamento jurídico brasileiro. Em seu artigo 5º, inciso II, estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Este princípio fundamental estabelece que atos administrativos e judiciais devam ser baseados na legalidade.
O artigo 37 da Constituição Federal destaca os princípios da administração pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. O princípio da legalidade exige que todos os atos administrativos estejam fundamentados na lei, e que ordens ilegais violam diretamente esse princípio.
2. Código Penal:
O artigo 22 do Código Penal Brasileiro (CPB) dispõe que “se o fato é cometido em estrita obediência à ordem, não manifestamente ilegal, de superior hierárquico, só é punível o autor da ordem”. Se a ordem for manifestamente ilegal, o subordinado que a cumpre pode ser responsabilizado criminalmente. O artigo 29 do CPB complementa, dizendo que “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a estas cominadas”.
O artigo 319 do CPB trata do crime de prevaricação, que é “retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal”. Este crime se aplica quando um funcionário público cumpre uma ordem ilegal com a intenção de satisfazer interesses pessoais.
3. Código Penal Militar:
O Código Penal Militar (CPM) aborda a obediência hierárquica em seu artigo 38. Dispõe que não é culpado quem comete crime “sob coação irresistível ou em estrita obediência à ordem de superior hierárquico, em matéria de serviços”. No entanto, o §2º especifica que “se a ordem do superior tem por objeto a prática de ato manifestamente criminoso, ou há excesso nos atos, ou na forma de execução, é punível também o inferior”.
4. Código Civil:
O Código Civil Brasileiro, em seu artigo 186, afirma que “aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Portanto, cumprir uma ordem ilegal que resulta em dano pode implicar responsabilidade civil para o executor. O artigo 927 complementa: “aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.
Jurisprudência e Aplicação Prática
1. Supremo Tribunal Federal (STF) e Jurisprudência:
O STF tem reiteradamente afirmado que ordens manifestamente ilegais não precisam ser cumpridas. No Habeas Corpus n.º 73.454/SP, o STF decidiu que “a ninguém é dado cumprir ordens manifestamente ilegais, sendo legítima a recusa ao cumprimento de tal ordem”.
Em decisões como o Mandado de Segurança n.º 26.602, o STF reforçou que “ordens manifestamente ilegais não eximem de responsabilidade, seja do emitente ou do executor”.
2. Superior Tribunal de Justiça (STJ):
O STJ também tem decisões que abordam a não-obrigatoriedade de cumprimento de ordens ilegais. Em um de seus julgados, o STJ afirmou que “não se pode exigir que o subordinado cumpra uma ordem que claramente viola a lei, e essa obediência não exime a responsabilidade”.
3. Habeas Corpus:
Em casos de habeas corpus, o STF tem analisado a legalidade das ordens de prisão, determinando que ordens de prisão ilegais devam ser revogadas. Mesmo que um paciente tenha se ocultado para não se submeter a uma ordem de prisão ilegal, esse fato não é suficiente para justificar um novo decreto de prisão, a menos que a nova ordem atenda às previsões dos artigos 312, 313, inciso I, e 315 do Código de Processo Penal (CPP).
Tratado de Roma
O Tratado de Roma, que criou o Tribunal Penal Internacional (TPI) e do qual o Brasil é signatário, reforça que a obediência a ordens superiores não exime a responsabilidade por crimes, se a pessoa tinha consciência de que a ordem era ilegal. Este tratado visa assegurar que crimes contra a humanidade, genocídios e crimes de guerra sejam punidos, mesmo que cometidos sob ordens superiores.
Direito Administrativo
1. Lei n.º 8.112/90:
A Lei n.º 8.112/90, que rege os servidores públicos federais, estabelece em seu artigo 116, IV, que é dever do servidor cumprir ordens superiores, salvo quando manifestamente ilegais. Este princípio é replicado em diversas legislações estaduais e municipais, reforçando a não obrigação de cumprir ordens ilegais.
2. Responsabilidade do Superior e Subordinado:
A responsabilidade pela execução de uma ordem manifestamente ilegal recai tanto sobre quem a emitiu quanto sobre quem a cumpriu. Em caso de cumprimento de uma ordem ilegal, tanto o superior que deu a ordem quanto o subordinado que a executou podem ser penalizados. Por exemplo, no Mandado de Segurança n.º 26.602, o STF reiterou que “ordens manifestamente ilegais não eximem de responsabilidade, seja do emitente ou do executor”.
Penalidades e Abuso de Poder
1. Abuso de Autoridade:
A Lei n.º 13.869/2019, conhecida como Lei de Abuso de Autoridade, estabelece diversas penalidades para atos de abuso de poder por parte de autoridades públicas. Entre os principais dispositivos estão:
– Artigo 3º: “Constitui abuso de autoridade qualquer atentado aos direitos e garantias legais assegurados ao exercício profissional”.
– Artigo 4º: “É abuso de autoridade ordenar ou executar medida privativa de liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder”.
– Artigo 9º: “É abuso de autoridade deixar, sem justa causa, de comunicar, imediatamente, a execução de prisão temporária ou preventiva à autoridade judiciária competente”.
2. Responsabilidade Civil e Criminal:
Além das penalidades administrativas, o abuso de poder pode resultar em responsabilidade civil e criminal. O artigo 37, §6º, da Constituição Federal estabelece que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Exemplos Práticos
1. Mandados de Busca e Apreensão:
Mandados de busca e apreensão expedidos em inquéritos manifestamente ilegais devem ser descumpridos pelos policiais federais, civis e militares. O cumprimento de mandado de prisão oriundo de autoridade ilegítima deve ser recusado, conforme decisões reiteradas do STF e do STJ.
2. Ordens Manifestamente Criminosas:
No âmbito militar, ordens que têm por objeto a prática de atos manifestamente criminosos não devem ser cumpridas. A teoria da obediência cega não se aplica, e tanto o superior que deu a ordem quanto o subordinado que a cumpriu podem ser responsabilizados. No caso do Inquérito Policial Militar n.º 4.444/DF, o Superior Tribunal Militar (STM) decidiu que “a obediência a ordens manifestamente ilegais não exime de culpa o subordinado”.
O descumprimento de ordens manifestamente ilegais é um imperativo jurídico e ético. Não se trata de um ato de desobediência, mas sim de uma obrigação legal para garantir que a justiça e a legalidade prevaleçam. Funcionários públicos devem estar cientes de suas responsabilidades e das consequências de cumprir ordens ilegais, sempre se orientando pela lei e pela jurisprudência vigente.
A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) também se posiciona firmemente sobre a importância da legalidade e da não-obediência a ordens manifestamente ilegais, reafirmando a defesa dos direitos fundamentais e do Estado de Direito.