Segurança Pública
A rebeldia policial em face do controle externo ministerial
A lei não prescreve que o controle extrínseco da atividade policial pelo MP somente ocorre de forma subsidiária
Temos visto proliferar manifestações de autoridades policiais contra o controle externo da atividade policial exercido pelo Ministério Público por força do artigo 129, inciso VII, da Constituição Federal de 1988. De igual forma dispõe o artigo 94, inciso IV, da Constituição do Estado de São Paulo.
A Lei Complementar Federal n. 75 de 1993, conhecida como Lei Orgânica do Ministério Público da União (MPU), contém diversos dispositivos acerca do controle externo da atividade policial. Vejamos:
Art. 3º O Ministério Público da União exercerá o controle externo da atividade policial tendo em vista: a) o respeito aos fundamentos do Estado Democrático de Direito, aos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, aos princípios informadores das relações internacionais, bem como aos direitos assegurados na Constituição Federal e na lei; b) a preservação da ordem pública, da incolumidade das pessoas e do patrimônio público; c) a prevenção e a correção de ilegalidade ou de abuso de poder; d) a indisponibilidade da persecução penal; e) a competência dos órgãos incumbidos da segurança pública.
Art. 9º O Ministério Público da União exercerá o controle externo da atividade policial por meio de medidas judiciais e extrajudiciais podendo: I – ter livre ingresso em estabelecimentos policiais ou prisionais; II – ter acesso a quaisquer documentos relativos à atividade-fim policial; III – representar à autoridade competente pela adoção de providências para sanar a omissão indevida, ou para prevenir ou corrigir ilegalidade ou abuso de poder; IV – requisitar à autoridade competente para instauração de inquérito policial sobre a omissão ou fato ilícito ocorrido no exercício da atividade policial; V – promover a ação penal por abuso de poder.
As normas supracitadas dão uma ideia do contorno que terá o controle exterior exercido pelo parquet.
É bem verdade que a Lei Federal n. 8.625 de 1993, conhecida como Lei Orgânica dos Ministérios Públicos dos Estados, não possui regra acerca desse controle, porém, seu artigo 80 determina a aplicação subsidiária da Lei Orgânica do Ministério Público da União.
Ademais, a recente Resolução n. 279 de 2023 do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) dispõe sobre as atribuições do Ministério Público no exercício do controle externo da atividade policial.
Malgrado, existe forte resistência no seio policial, chegando quase a um apelo pelo descumprimento de normas constitucionais e legais.
Boscaro e Jorge (2024, p. 161), comentando sobre a medida cautelar de busca e apreensão, informam que o ordenamento jurídico em nenhum momento exige que o órgão ministerial seja instado a se manifestar acerca dessas medidas adotadas pela Polícia Investigativa e requeridas ao Poder Judiciário. E acrescentam que,
O uso do argumento de ser o Ministério Público o “fiscal da lei, habitualmente utilizado, para provocar a sua manifestação quanto a medida cautelar de busca e apreensão domiciliar, não prospera, vez que todos os cidadãos são “fiscais da lei” (lato sensu), sendo (todos) os operadores do direito “fiscais da lei especializados” (stricto sensu). (g. n.)
Ainda que seja verídico que todos os cidadãos são fiscais da lei, se adotarmos a visão da sociedade aberta dos intérpretes da constituição de Peter Haberle, fato é que, constitucionalmente falando, esse é um dever do Ministério Público por força do artigo 127, enquanto que às demais pessoas esse múnus é facultativo, exercido mormente pelo direito constitucional de petição.
Outrossim, segundo o Delegado de Polícia Eliomar da Silva Pereira (2019, p. 16),
É preciso, em definitivo, no direito brasileiro, entender-se que o sistema acusatório, ao separar as funções de acusar e julgar, não consente que a acusação possa ter sobre a defesa qualquer proeminência, tampouco que possa produzir provas que serão utilizadas em julgamento, sem controle recíproco das partes, pois isso nos leva irremediavelmente de volta ao inquisitório como advertia Francesco Carra. (g. n.)
Nesse ponto, os argumentos não fazem sentido, haja vista que a Constituição da República, quando enumera os direitos e garantias fundamentais no artigo 5º, trouxe diversos dispositivos que desigualam a relação processual a favor do réu, consagrando princípios como o do favor rei, o nemu tenetur se detegere, os embargos infringentes e a revisão criminal somente pro reu etc. Também é consabido que antes do crime, o “cidadão” possui tempo para o devido planejamento da execução, dificultando a obtenção de elementos e provas que o incriminem, colocando a sociedade em desvantagem.
Além disso, citando ainda Boscaro e Jorge (2024, p. 171), comentando sobre os prejuízos ao processo penal em caso de parecer ministerial, alegam que
A legislação apenas permite que o Ministério Público requisite a instauração de Inquérito Policial, caso ainda não tenha sido inaugurado e desde que presente justa causa, bem como possibilita que o Parquet requisite diligências investigatórias ao final do trabalho de Polícia Judiciária Civil, sob pena de subverter a “divisão microfísica de poder intraprocessual” e, consequentemente, o Estado de Direito, ao fomentar a usurpação da função da investigação criminal estatal. (g. n.)
No mesmo sentido escreve o Delegado de Polícia Marcelo Sales França (2024, p. 304),
Neste último caso, inclusive, muitas vezes intervindo de forma indevida na presidência do feito, por usar dessa faculdade constitucional em momento inoportuno, isto é, antes do término das investigações, e não quando lhe faculta a lei processual a devolução dos autos à autoridade policial, consoante dispõe o art. 46 do CPP.
Nesse aspecto, a Constituição Cidadã em nenhum momento prescreve que as diligências persecutórias somente poderão ser realizadas ao final do procedimento, tampouco as leis que regem o Ministério Público (Lei n. 8.625/1993 e LC n. 75/1993), não cabendo ao intérprete policial fazê-lo.
Ademais, o artigo 16 do Código de Processo Penal trata da situação na qual o caderno apuratório já esteja relatado e encaminhado ao Poder Judiciário, conforme manda o § 1º do artigo 10 do mesmo Codex, e não sobre eventuais diligências requeridas em seu bojo.
Além de tudo, o artigo 46 do Caderno Processual Penal cuida dos prazos para o oferecimento da peça acusatória, não dispondo ser esse ou aquele o único momento para a solicitação de diligências ministeriais.
Continuando, o Dr. França (2024, p. 315), em comentários ao controle externo democrático pelo parquet chega a afirmar que:
Enfim, são inúmeras as situações jurídicas em que a convicção do Delegado de Polícia é afrontada por alguns promotores que buscam se portar como verdadeiro superior hierárquico, tentando impor, em enorme disparate, seu entendimento ao daquele que é o primeiro garantidor da legalidade e da justiça, ainda mais quando se constata que a decisão é tida como errática pelo membro do parquet consiste em posicionamento jurídico defendido não só por delegados, mas também outros por (sic) promotores, juízes e operadores do direito, ou seja, claramente se nota um desvio de finalidade nesse proceder ministerial. (g. n.)
Ora, aqui a vaidade e ego que tantos delegados questionam vêm à tona por meio deles.
Analogicamente, seria o mesmo que dizer que um magistrado, sentindo sua decisão afrontada por meio de um recurso, pugnasse pela reforma da advocacia…
Inclusive, o autor policial (2024, p. 317), em relação ao controle externo, assevera que “apenas e tão somente quando houver omissão dos órgãos de controle interno é aberta a porta do controle externo para o Ministério Público”.
Nesse particular, conforme já comentamos acima, temos que a Constituição de Outubro em nenhum momento prescreve que o controle extrínseco somente ocorrerá de forma subsidiária, tampouco as leis que regem o Ministério Público (Lei n. 8.625/1993 e LC n. 75/1993), não cabendo ao intérprete vigilante fazê-lo.
De outra banda, os Delegados de Polícia William Garcez e Joaquim Leitão Júnior (2024, p. 328), com requintes de heresia, subscrevem a respeito do controle de constitucionalidade e legalidade das requisições do ministério público nas investigações criminais e do seu momento, afirmando categoricamente que
Da mesma forma, quando houver requisição ministerial para que se instaure um inquérito policial, portanto, antes do início da investigação criminal, é forçoso que, eventuais indicações de diligências a serem desempenhadas pela polícia judiciária devem ser recebidas pelo delegado como sugestões, já que a condução do apuratório, determinando as diligências que serão realizadas, compete exclusivamente à autoridade policial. (g. n.)
Claramente, o texto constitucional é claro em afirmar ser função institucional do Ministério Público “requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial”, não havendo margem para qualquer interpretação diversa como a proposta pelos policiais.
É aqui que desperta certa hipocrisia acadêmica, pois, da mesma forma que se defende que se o constituinte quisesse ter criado a investigação criminal ministerial o teria feito de forma expressa, também se quisesse que as “requisições” não fossem vinculantes igualmente o teria realizado de forma expressa, utilizando as palavras “sugestão”, “solicitação” ou “requerimento”.
A questão de haver hierarquia não possui nenhuma relação com o cumprimento de disposições constitucionais, que são imperativas, até porque mesmo a Advocacia e o Ministério Público devem cumprir determinações judiciais no processo, a despeito de não haver subordinação.
Sem embargo, segundo obtempera o Ministro do STF Luís Roberto Barroso (2022. p. 295),
As normas constitucionais são espécies de normas jurídicas. Aliás, a conquista desse status fez parte do processo histórico de ascensão científica e institucional da Constituição, libertando-a de uma dimensão estritamente política e da subordinação ao legislador infraconstitucional. A Constituição é dotada de força normativa e suas normas contêm o atributo típico das normas jurídicas em geral: a imperatividade. Como consequência, aplicam-se direta e imediatamente às situações nelas contempladas e sua inobservância deverá deflagrar os mecanismos próprios de sanção e de cumprimento coercitivo. (g. n.)
Em relação ao entendimento jurisprudencial pátrio, o Superior Tribunal de Justiça possui julgados que bem delimitam o alcance do controle externo da polícia, conforme os julgados que seguem, verbis:
4. A LC 75/93, em seu art. 9, inciso I, autoriza expressamente o acesso pelo MPF a todas as dependências da Polícia Federal, inclusive as salas do Núcleo de Análise, ressalvado, apenas, o acesso a informações sigilosas relativas à persecução penal. Neste caso, somente o procurador da república que oficie junto ao juízo onde esteja tramitando a investigação é que poderá ter acesso a informações e documentos sigilosos referentes à investigação penal específica. (STJ – REsp: 1848640 PE 2019/0343650-5, Relator: Ministro HERMAN BENJAMIN, Data de Publicação: DJ 22/04/2020)
9. Essa orientação da egrégia Corte do Distrito Federal, porém, não pode ser aceita sem reservas, porquanto, sendo norma constitucional a de que cabe ao MP o exercício do controle externo da atividade policial (art. 129, VII da Carta Magna), soaria irrazoável (e quiçá ilógico) que não lhe fosse reconhecido o poder de requisitar elementos relevantes àquela atividade, quando já disponíveis em repartição da Polícia Civil, que se acha (e isso é voz constitucional) sob o controle externo. (STJ – REsp: 1126468 DF 2009/0041988-3, Relator: Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, Data de Publicação: DJ 18/12/2012)
9. Portanto, é manifesto que a pasta com ordens de missão policial (OMP) deve estar compreendida no conceito de atividade-fim e, consequentemente, sujeita ao controle externo do Ministério Público, nos exatos termos previstos na Constituição Federal e regulados na LC 73/93, o que impõe à Polícia Federal o fornecimento ao Ministério Público Federal de todos os documentos relativos as ordens de missão policial (OMP). (STJ – REsp: 1365910 RS 2013/0026070-9, Relator: Ministro HUMBERTO MARTINS, Data de Julgamento: 05/04/2016, T2 – SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 28/09/2016 IP vol. 99 p. 271 RB vol. 637 p. 51 RIP vol. 99 p. 271)
8. O controle externo da atividade policial exercido pelo Parquet deve circunscrever-se à atividade de polícia judiciária, conforme a dicção do art. 9º, da LC n. 75/1993, cabendo-lhe, por essa razão, o acesso aos relatórios de inteligência policial de natureza persecutório-penal, ou seja, relacionados com a atividade de investigação criminal. 9. O poder fiscalizador atribuído ao Ministério Público não lhe confere o acesso irrestrito a “todos os relatórios de inteligência” produzidos pelo Departamento de Polícia Federal, incluindo aqueles não destinados a aparelhar procedimentos investigatórios criminais formalizados. (STJ – REsp: 1439165 RJ 2014/0045712-3, Relator: Ministro GURGEL DE FARIA, Data de Publicação: DJ 25/10/2018)
Concluindo, não vemos razão para tamanha celeuma doutrinária por parte das autoridades policiais, estando já bastante sedimentado no STJ que o controle externo permite ao órgão de execução adentrar nos estabelecimentos policiais, ressalvado, apenas, o acesso a informações sigilosas específicas relativas à persecução penal que é de atribuição do promotor natural, requisitar dados de servidores policiais que estejam sob investigação, analisar as ordens de missão policial (OMP) por integrarem o conceito de atividade-fim, além de ter acesso aos relatórios de inteligência policial de natureza persecutório-penal, com exceção daqueles não destinados a aparelhar procedimentos investigatórios criminais formalizados.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. 9. ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.
JORGE, Higor Vinícius Nogueira. Polícia Judiciária e Ministério Público – Uma Relação de Interdependência Funcional no Sistema de Justiça Criminal. São Paulo: JusPodivm, 2024.
PEREIRA, Eliomar da Silva. Introdução ao direito de polícia judiciária. v. 1. Belo Horizonte: Fórum, 2019.
Criminólogo e Mestrando em Direito. Procurador Municipal.