Educação & Cultura
Materiais educacionais devem refletir a diversidade étnico-cultural da comunidade escolar
Recursos pedagógicos que valorizam saberes e histórias locais fortalecem o senso de pertencimento dos estudantes e contribuem para a preservação da cultura e identidade
Quando pensamos em uma Educação diversa e significativa para crianças e adolescentes, um desafio é garantir que o material educacional reflita a diversidade étnico-cultural e as potencialidades do território onde a escola está localizada. As competências gerais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) explicitam a necessidade de valorizar e utilizar os conhecimentos historicamente construídos, assim como fruir e reconhecer o valor das diversas manifestações artísticas e culturais, das locais às mundiais. E, também, de participar de práticas diversificadas da produção artístico-cultural e valorizar a diversidade de saberes e vivências culturais.
Segundo Luciana Marchi Franceschini, coordenadora de programas e projetos do Cenpec, o material educacional que não dialoga com a cultura e com o contexto em que o aluno está inserido tem poucas chances de favorecer a aprendizagem significativa. Livros didáticos, obras da literatura, jogos, material não estruturado e audiovisuais têm que estar alinhados à realidade sociocultural dos estudantes. “Mas ainda vemos a adoção de materiais descolados do contexto e o uso não qualificado pelo professor e pelo aluno”, diz.
Kelly Cristina dos Santos, mestra em Educação, coordenadora pedagógica de Educação Infantil e formadora de professores, salienta que um material descontextualizado pode acarretar desinteresse dos estudantes por não se reconhecerem no acervo. Ela chama isso de “pasteurização da aprendizagem”, já que a criança se relaciona com um material que não alarga a experiência da qual ela faz parte, mas traz como padrão uma outra população, geralmente branca.
“A escola tem um compromisso de ampliação do universo cultural. Não é preciso ficar restrito aos marcadores culturais do território, mas isso não pode ser excluído ou colocado sempre como segunda opção”, ressalta. “Os materiais precisam apresentar uma prevalência dos elementos que compõem a cultura local. Gradualmente, os professores podem apresentar outros elementos, de outras culturas”, pontua ela.
Desafios da diversificação de materiais educacionais
Conforme o Censo Escolar 2022, 3.541 escolas de ensino básico (1,9% do total do país) estão localizadas em terras indígenas — ministram conteúdos específicos e diferenciados, de acordo com aspectos etnoculturais — e 3.597 (2%) oferecem Educação indígena, por meio das redes de ensino. Em 2020, o mesmo censo indicou a existência de 2.526 escolas quilombolas no Brasil. Ainda não há dados de escolas que ficam em comunidades ribeirinhas, mas, em janeiro de 2024, o Ministério da Educação (MEC) indicou a possibilidade de incluir no Censo essa informação.
Frente a essa diversidade de realidades, a distribuição de materiais nem sempre está de acordo com as diferentes necessidades e características das escolas. E, muitas vezes, os materiais distribuídos pelas redes estaduais ou municipais de ensino são os mesmos para as instituições localizadas nos centros urbanos, nas áreas indígenas e quilombolas.
Kelly explica que, geralmente, os municípios que têm populações indígenas, quilombolas e caiçaras são pequenos e com pouco fôlego financeiro. A prefeitura segue a legislação, que se baseia no menor custo, e mesmo que a verba para as escolas sejam bem geridas, pesam as questões de mercado, de produção e de concorrência para licitação. Além disso, pode acontecer de pessoas do setor de compras não saberem os fundamentos pedagógicos do porquê é tão importante diversificar os materiais. “Isso de fato duplica o trabalho de orçamento, de licitação e de prestação de contas, mas se justifica pedagogicamente. As Secretarias de Educação precisam estreitar as trocas com o setor de compras para ajustar isso”, defende.
Fortalecendo o senso de pertencimento
Quando os saberes ancestrais e comunitários não estão na escola, onde as crianças e os adolescentes passam uma parte significativa do seu dia, a tendência é que eles se percam cada vez mais, o que já vem acontecendo.
Essas comunidades foram e continuam sendo historicamente violentadas em processos de luta por demarcação de territórios – que tendem a durar anos e nem sempre encontram um desfecho positivo para elas –, violência física, racismo e preconceitos de diversas ordens. Nesse contexto, uma violência bastante praticada é o epistemicídio. O termo foi criado por Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e estudioso das epistemologias do sul global, para se referir à destruição de saberes, culturas e formas de conhecimento que não são assimiladas pela cultura ocidental.
Luciana afirma que valorizar os saberes dos estudantes e da comunidade ajuda a fortalecer o senso de pertencimento. Segundo ela, a escola precisa associar o saber local com o saber formal. “Quando isso acontece, o aluno reconhece no objeto do conhecimento o valor do seu povo. Às vezes, pode ser difícil, mas para atender à diversidade brasileira é preciso equilibrar os elementos do currículo nacional com as especificidades da cultura local.”
Kelly chama a atenção para o fato de que já há muitos professores, educadores de ensino não formal e empresas que se preocupam em produzir materiais diversos. “É interessante que essas pessoas tentem divulgar seus trabalhos para outros educadores e para as secretarias de Educação para que boas práticas não se restrinjam a uma escola ou mesmo a uma turma específica.”
Cuidados ao produzir materiais educacionais
As especialistas Luciana Franceschini e Kelly dos Santos compartilham dicas para a elaboração de bons materiais
Receitas prontas não funcionam
É importante pesquisar e se inspirar em práticas diversificadas de ensino que garantam a aprendizagem de todos os alunos. O professor deve identificar a situação de aprendizagem de cada um e oferecer situações para o aluno continuar evoluindo em sua singularidade”, diz Luciana.
Domínio do assunto
Para elaborar o próprio material, o professor tem que se apropriar profundamente do objeto de conhecimento. Por isso, é necessário investir em formação continuada.
Foco na intencionalidade pedagógica. Clareza sobre o que os alunos têm que aprender e sobre competências e habilidades que precisam ser desenvolvidas é fundamental para selecionar e criar materiais. A idade dos alunos, o contexto sociocultural, o nível de aprendizagem, as necessidades e os interesses também são essenciais para direcionar os objetivos.
Trabalho colaborativo
Se os professores da escola ou da rede de ensino estão articulados, o material será mais completo pois contará com a colaboração e revisão de diversas pessoas. Também é interessante verificar se é possível receber apoio de universidades da região ou de programas do governo.
De olho nos editais públicos
“Às vezes, um livro superinteressante que poderia ser distribuído para várias escolas fica de fora da lista de seleção por conta de detalhes técnicos. Os professores-autores devem acessar os editais para conhecer melhor as questões burocráticas envolvidas na distribuição de materiais”, sugere Kelly.
Professores-autores
Flávia Elís de Oliveira Silva, da etnia Pankararu, é professora da Educação Infantil e coordenadora dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental na EE Indígena Nossa Senhora do Carmo, em Jatobá (PE). Ela conta que a maioria dos materiais utilizados no dia a dia das crianças são voltados para a sua cultura: maracás (tipo de chocalho indígena), barro (em vez de massinhas), cestos de palha e consumo de frutas da região.
Como a escola passou para a rede estadual recentemente, novos materiais começaram a chegar, como livros literários infantis, livros didáticos, materiais esportivos e de papelaria. No entanto, ela diz sentir falta da realidade do sertão pernambucano neles. “Os materiais fazem referência ao sudeste. Eles não contam as histórias do semiárido e dos povos indígenas de Pernambuco. Geralmente, os povos indígenas que encontramos nos livros são os da Amazônia.”
Ela comenta que educadores da região trabalham há anos para lidar com esse problema. Desde o final da década de 1990, o Centro de Cultura Luiz Freire presta assessoria educacional e promove a formação de professores indígenas de Pernambuco visando à elaboração de materiais didáticos. Além de já ter participado de ações desse centro, Flávia também faz parte da Ação Saberes Indígenas na Escola (ASIE), do Ministério da Educação (MEC), onde já atuou como professora-formadora.
De acordo com ela, a expectativa de seu grupo, composto por representantes de diferentes povos da região, é publicar três livros com contos e lendas da região e sequências didáticas. Eles também estão fazendo um alfabeto ilustrado com elementos da realidade local e uma ficha de números com símbolos e animais sagrados que representam sua cultura.
“Na elaboração do material didático, valorizamos práticas locais e histórias para enriquecer nossa identidade, e a comunidade participa junto com os professores-pesquisadores. Buscamos conhecimentos dos mais velhos e das lideranças para garantir um conteúdo mais completo”, destaca Flávia. “E também pensamos muito na interdisciplinaridade, pois um saber não existe sem o outro. A criança já nasce na cultura, trazer isso para a sala de aula torna a aprendizagem mais prazerosa.”
Impactos nas novas gerações
Atualmente, Flávia também é uma das educadores participantes de um projeto que envolve uma parceria entre NOVA ESCOLA, a Fundação Van Leer e a Secretaria Estadual de Educação de Pernambuco, que atua em regime de colaboração com 185 municípios. O objetivo é criar uma proposta pedagógica consistente que se traduza em três eixos: criação de material educacional para professores da creche; estratégia presencial e recursos digitais para a formação continuada e expansão da rede de creches do estado com estrutura física adequada.
Segundo ela, participar dessa iniciativa tem sido uma experiência enriquecedora e transformadora. “Estamos colaborando na elaboração de materiais didáticos que respeitam e valorizam as especificidades culturais dos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos entre outros. Esse trabalho exige sensibilidade e um profundo entendimento das realidades locais, buscando integrar conhecimentos tradicionais e questões contemporâneas à prática educativa”, diz.
“Temos realizado encontros virtuais com as especialistas para receber apoio pedagógico, o que enriquece não apenas os materiais, mas também nossa visão de Educação, que deve ser diversa e inclusiva”, conta a professora e coordenadora. “Estou muito honrada em fazer parte desta equipe e animada com os resultados que estamos alcançando e com o impacto positivo que isso pode ter nas novas gerações e para outros professores do estado”.
Preservação da cultura e identidade
Em Beruri (AM), os adolescentes e os adultos para os quais o professor Fábio Gomes, da etnia Baré, leciona enfrentam os mesmos problemas em relação aos materiais. Ele dá aulas no Ensino Médio e na Educação de Jovens e Adultos (EJA) na EE Getúlio Vargas. Além da carência de computadores, projetores, equipamentos de áudio, laboratório de ciências e biblioteca, ele percebeu na região a falta de materiais didáticos nas línguas indígenas. Isso não contribui para assegurar o direito à Educação bilíngue/multilíngue que as comunidades indígenas deveriam ter.
A partir de conversas que teve com professores e caciques da região, ele notou um grande descontentamento em relação à falta de materiais na língua Apurinã. Hoje, Fábio está à frente de um grupo de professores para a construção de material educacional nessa língua no município, que conta com 23 comunidades indígenas.
“O bacana desse material é que ele está sendo elaborado por professores que, a partir de sua identidade, podem falar do rio e da floresta, que são um museu do saber importante para a nossa cultura. Passar esses conhecimentos ancestrais para os jovens estudantes é, de certa forma, passar a identidade e um pouco da nossa cultura. Então, a elaboração desse material didático tem uma importância incalculável para a nossa própria história”, argumenta Fábio.
Ele avalia que a elaboração do material também é uma tentativa de alinhar a rica história indígena e ribeirinha da região com os saberes formais e científicos, que são transmitidos por escrito. Assim, o objetivo é compartilhar o conhecimento com um número maior de pessoas e deixar um registro físico da história das comunidades para as próximas gerações.
“Esse material de apoio didático traz esperança para os nossos jovens, no sentido de preservação de sua cultura e de sua identidade. Queremos que eles vejam significado em continuar o que seus ancestrais começaram e sua história nesse lugar, e que eles possam repassar esses saberes para as próximas gerações”, finaliza.
Nova Escola