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Judiciário

A concessão de fiança pelo delegado de polícia

O delegado de polícia deve ser visto como bússola para esquadrinhar, nos labirintos das relações humanas conflituosas, possíveis sintomas de violações, arbitrariedades, derramamento de ódio e sentimento de revolta contra o sistema democrático

Resumo:

  • A fiança concedida pelo delegado de polícia é uma garantia de liberdade do autuado e essencial para o bom funcionamento dos atos processuais.
  • O delegado de polícia pode conceder fiança nos casos em que a pena máxima não ultrapasse 4 anos, conforme o artigo 322 do CPP.
  • Existem diversas hipóteses em que o delegado de polícia pode arbitrar o valor da fiança, como em crimes de homicídio culposo, furto simples, injúria racial, entre outros.

RESUMO. O presente texto tem por finalidade precípua apresentar estudos preliminares sobre a concessão de fiança pelo delegado de polícia, geralmente, durante a lavratura do auto de prisão em flagrante delito, como protagonista e protetor do sistema social evitando o perecimento do tecido social. Visa ainda relacionar sem efeito exauriente as hipóteses de cabimento de delitos que permitem a concessão da fiança na forma do art. 322 do CPP.


INTRODUÇÃO

O tema concessão de fiança tem suscitado interesse jurídico e social, mormente, por se tratar de instrumento de garantias da liberdade e garantia na realização da Justiça. Há doutrinadores que afirmam que a primeira modalidade de garantia exigida pelo Estado – assim em Atenas como em Roma – foi a caução fidejussória, consistente na apresentação de fiadores, que assumiam a obrigação de apresentar o réu no dia do julgamento (Almeida Júnior apud Eugênio Pacelli de Oliveira, “Regimes Constitucionais da Liberdade Provisória”, p. 42.).1

Falar de concessão de fiança criminal é preciso necessariamente mencionar a sua natureza jurídica e a importante função do delegado de polícia da funcionalidade do sistema de justiça. A Carta Magna de 1988, elevado à categoria do rol dos direitos fundamentais, art. 5º, LXVI, que ninguém será levado à prisão ou nela mantido, quando a lei admitir a liberdade provisória, com ou sem fiança.

Assim, num primeiro momento é importante ressaltar que a fiança é um direito de liberdade do autuado e uma garantia ao bom funcionamento dos atos processuais, assegurando as condições impostas, e o regular andamento dos atos investigatórios e do processo. Os crimes que admitem fiança são aqueles vistos por exclusão; assim, abstraindo os crimes inafiançáveis, entendem que os demais cabem fiança. Trata-se de um exercício de exclusão. O certo é a própria lei dizer quais os crimes inafiançáveis como o fez com os crimes hediondos, a tortura, o terrorismo, o tráfico ilícito de drogas, o racismo, o crime militar, nos casos de prisão civil, nos crimes cometidos por grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático; aos que, no mesmo processo, tiverem quebrado fiança anteriormente concedida ou infringido, sem motivo justo, qualquer das obrigações a que se referem os artigos 327 e 328 do Código Penal; e por último, quando presentes os motivos que autorizam a decretação da prisão preventiva.

Em síntese, como se afirma antanho, a lei dos crimes hediondos veda a concessão de fiança, indulto, graça e anistia, aos crimes rotulados como hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo. Destarte, a Lei n.º 8.072, de 1990, apresentada um rol dos crimes hediondos, a saber: 

São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, consumados ou tentados: 

I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por 1 (um) só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2º, incisos I, II, III, IV, V, VII, VIII e IX);     

I-A – lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2o) e lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3o), quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição

II – roubo:   

a) circunstanciado pela restrição de liberdade da vítima (art. 157, § 2º, inciso V);

b) circunstanciado pelo emprego de arma de fogo (art. 157, § 2º-A, inciso I) ou pelo emprego de arma de fogo de uso proibido ou restrito (art. 157, § 2º-B);   

c) qualificado pelo resultado lesão corporal grave ou morte (art. 157, § 3º);

I-B – feminicídio (art. 121-A);     

III – extorsão qualificada pela restrição da liberdade da vítima, ocorrência de lesão corporal ou morte (art. 158, § 3º);    

IV – extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo, 2o e 3o

V – estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o);            

VI – estupro de vulnerável (art. 217-A, caput e §§ 1o, 2o, 3o e 4o);                 

VII – epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o).                   

VII-A – (VETADO)                   

VII-B – falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei nº 9.677, de 2 de julho de 1998).           

VIII – favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º).              

IX – furto qualificado pelo emprego de explosivo ou de artefato análogo que cause perigo comum (art. 155, § 4º-A).    

X – induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação realizados por meio da rede de computadores, de rede social ou transmitidos em tempo real (art. 122, caput e § 4º);   

XI – sequestro e cárcere privado cometido contra menor de 18 (dezoito) anos (art. 148, § 1º, inciso IV);  

XII – tráfico de pessoas cometido contra criança ou adolescente (art. 149-A, caput, incisos I a V, e § 1º, inciso II).   

Consideram-se também hediondos, tentados ou consumados:   

I – o crime de genocídio, previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956;;      

II – o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;       

III – o crime de comércio ilegal de armas de fogo, previsto no art. 17 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;      

IV – o crime de tráfico internacional de arma de fogo, acessório ou munição, previsto no art. 18 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003;      

V – o crime de organização criminosa, quando direcionado à prática de crime hediondo ou equiparado.  

VI – os crimes previstos no Decreto-Lei nº 1.001, de 21 de outubro de 1969 (Código Penal Militar), que apresentem identidade com os crimes previstos no art. 1º desta Lei.    

VII – os crimes previstos no § 1º do art. 240 e no art. 241-B da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente).  

A lei processual prevê as autoridades competentes a autorizadas para a concessão da fiança: o delegado de polícia e o juiz de direito.

Antes da lei nº 12.403, de 2011, o delegado de polícia somente poderia conceder fiança nos crimes punidos por detenção. Após esta lei, o artigo 322 do CPP autoriza a concessão da fiança pelo delegado de polícia nos crimes cuja pena em abstrato não seja superior a 04 anos. Em conformidade com a Lei nº 12.830, de 2013, ao delegado de polícia na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais. Assim, as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.

De acordo com o artigo 322 do CPP, a autoridade policial somente poderá conceder fiança nos casos de infração cuja pena privativa de liberdade máxima não seja superior a 4 (quatro) anos. Nos demais casos, a fiança será requerida ao juiz, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas. 

Para determinar o valor da fiança, a autoridade terá em consideração a natureza da infração, as condições pessoais de fortuna e vida pregressa do acusado, as circunstâncias indicativas de sua periculosidade, bem como a importância provável das custas do processo, até final julgamento. A fiança tomada por termo obrigará o afiançado a comparecer perante a autoridade, todas as vezes que for intimado para atos do inquérito e da instrução criminal e para o julgamento. Quando o réu não comparecer, a fiança será havida como quebrada.

Quanto ao valor da fiança, esta deve ter como parâmetro o dispositivo do artigo 325 do CPP. Assim, o valor da fiança será fixado pela autoridade que a conceder nos seguintes limites:

I – de 1 (um) a 100 (cem) salários mínimos, quando se tratar de infração cuja pena privativa de liberdade, no grau máximo, não for superior a 4 (quatro) anos;           

II – De 10 (dez) a 200 (duzentos) salários mínimos, quando o máximo da pena privativa de liberdade cominada for superior a 4 (quatro) anos.  

Quanto à fiança, o artigo 330 do CPP, anuncia que a fiança, que será sempre definitiva, consistirá em depósito de dinheiro, pedras, objetos ou metais preciosos, títulos da dívida pública, federal, estadual ou municipal, ou em hipoteca inscrita em primeiro lugar. A avaliação de imóvel, ou de pedras, objetos ou metais preciosos será feita imediatamente por perito nomeado pela autoridade.

O valor da fiança será recolhido à repartição arrecadadora federal ou estadual, ou entregue ao depositário público, juntando-se aos autos os respectivos conhecimentos. Nos lugares em que o depósito não se puder fazer de pronto, o valor será entregue ao escrivão ou pessoa abonada, a critério da autoridade, e dentro de três dias dar-se-á ao valor o destino que lhe assina este artigo, o que tudo constará do termo de fiança.

Em caso de prisão em flagrante, será competente para conceder a fiança a autoridade que presidir ao respectivo auto, e, em caso de prisão por mandado, o juiz que o houver expedido, ou a autoridade judiciária ou policial a quem tiver sido requisitada a prisão.

Depois de prestada a fiança, que será concedida independentemente de audiência do Ministério Público, este terá vista do processo a fim de requerer o que julgar conveniente. A fiança poderá ser prestada enquanto não transitar em julgado a sentença condenatória. Recusando ou retardando a autoridade policial a concessão da fiança, o preso, ou alguém por ele, poderá prestá-la, mediante simples petição, perante o juiz competente, que decidirá em 48 (quarenta e oito) horas. O dinheiro ou objetos dados como fiança servirão ao pagamento das custas, da indenização do dano, da prestação pecuniária e da multa, se o réu for condenado.           

HIPÓTESES DE CABIMENTO DA CONCESSÃO DE FIANÇA PELO DELEGADO DE POLÍCIA

Analisando pormenorizadamente os tipos penais definidos no Código Penal c/c artigo 322 do Código de Processo Penal, poderá o Delegado de Polícia arbitrar o valor da fiança nos seguintes crimes:

1) Homicídio culposo – art. 121, § 3º, do CP;

2) Induzimento, instigação ou auxílio a suicídio ou a automutilação, artigo 122, § 2º;

3) Aborto provocado pela gestante ou com o seu consentimento – art. 124;

4) Aborto provocado por terceiros, artigo 126 do CP;

5) Perigo de contágio venéreo – art. 130, § 1º;

6) Perigo de contágio de moléstia grave – art. 131;

7) Abandono de incapaz – art. 133, caput;

8) expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria, artigo 134, § 1º, do CP;

9) Maus-tratos na forma qualificada – art. 136, § 1º;

10) Intimidação sistemática virtual (cyberbullying), artigo 146-A, parágrafo único, do CP;    

11) Sequestro e Cárcere privado – art. 148 caput;

12) Invasão de dispositivo informático, artigo 154-A, do CP;

13) Furto simples – art. 155, caput;

14) Extorsão indireta – art. 160;

15) Supressão ou alteração de marca em animais – art. 162 do CP;

16) Dano qualificado – art. 163, Parágrafo único;

17) Apropriação indébita – art. 168, caput;

18) Duplicata simulada – art. 172;

19) Induzimento à especulação – art. 174;

20) Fraudes e abusos na fundação ou administração de sociedade por ações – art. 177;

21) Emissão irregular de conhecimento de depósito ou “warrant” – art. 178;

22) Receptação – art. 180, caput;

23) Violação de direito autoral – art. 184, §§ 1º e 3º, CP;

24) Invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola. Sabotagem – art. 202;

25) Aliciamento para o fim de emigração – art. 206;

26) Aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território brasileiro – art. 207;

27) Violação de sepultura – art. 210;

28) Destruição, subtração ou ocultação de cadáver – art. 211;

29) Vilipêndio a cadáver – art. 212;

30) Satisfação de lascívia mediante presença de criança ou adolescente – art. 218-A;

31) Mediação para servir a lascívia de outrem, artigo 227 do CP;

32) Rufianismo, artigo 230 do CP;

33) Simulação de autoridade para celebração de casamento – art. 238;

34) Simulação de casamento – art. 239;

35) Abandono material – art. 244;

36) Entrega de filho menor a pessoa inidônea, artigo 245, § 1º do CP;

37) Explosão – art. 251, § 1º;

38) Uso de gás tóxico ou asfixiante – art. 252;

39) Perigo de inundação – art. 255;

40) Desabamento ou desmoronamento – 256;

41) Interrupção ou perturbação de serviço telegráfico ou telefônico – art. 266;

42) Falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais, na forma culposa – art. 273, § 2º;

43) Outras substâncias nocivas à saúde pública – art. 278;

44) Medicamento em desacordo com receita médica – art. 280;

45) Associação Criminosa – art. 288;

46) Falsificação de papéis públicos – art. 293, § 2º;

47) Petrechos de falsificação – art. 294;

48) Falsidade ideológica em documento particular – art. 299, se o documento for particular;

49) Falso reconhecimento de firma em documento particular – art. 300, em caso de documento particular;

50) Reprodução ou adulteração de selo ou peça filatélica – art. 303;

51) Falsificação do sinal empregado no contraste de metal precioso ou na fiscalização alfandegária, ou para outros fins – art. 306, parágrafo único;

52) Fraude de lei sobre estrangeiro – art. 309 e 310;

53) Fraudes em certames de interesse público, art. 311-A, do CP;

54) Peculato mediante erro de outrem – art. 313;

55) Extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento – art. 314;

56) Violência arbitrária, art. 322 do CP;

57) Abandono de função em faixa de fronteira – art. 323; parágrafo único;

58) Resistência qualificada – art. 329, § 1º;

59) Descaminho – art. 334;

60) Patrocínio de contratação indevida, art. 337-G, do CP;

61) Perturbação de processo licitatório, art. 337-I, do CP;      

62) Violação de sigilo em licitação, art. 337-J, do CP;    

63) Contratação inidônea, art. 337-M, do CP;       

64) Omissão grave de dado ou de informação por projetista, art. 337-O, do CP;       

65) Reingresso de estrangeiro expulso, art. 338 do CP;

66) Falso testemunho ou falsa perícia – arts. 342 e 343;

67) Coação no curso do processo – art. 344;

68) Fraude processual – art. 347, parágrafo único;

69) Fuga de pessoa presa ou submetida a medida de segurança – art. 351, § 3º;

70) Arrebatamento de preso – art. 353;

71) Patrocínio infiel – art. 355;

72) Sonegação de papel ou objeto de valor probatório, art. 356 do CP;

73) Assunção de obrigação no último ano do mandato ou legislatura – art. 359-C;

74) Ordenação de despesa não autorizada – art. 359-D;

75) Aumento de despesa total com pessoal no último ano do mandato ou legislatura – art. 359 –G;

76) Oferta pública ou colocação de títulos no mercado – art. 359 –H.

77) Espionagem, art. 359-K, § 3º, do CP.

Vale ressaltar que além desses casos em epígrafe, existem outras hipóteses definidas em leis especiais em que o Delegado de Polícia também poderá arbitrar fiança, a saber:

1. Posse irregular de arma de fogo de uso permitido, artigo 12 do Estatuto do Desarmamento;

2. Porte ilegal de arma de fogo de uso permitido, artigo 14 do Estatuto do Desarmamento;

3. Disparo de arma de fogo, artigo 15 do Estatuto do Desarmamento;

4. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor, artigo 302 do Código de Trânsito Brasileiro:

5. Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência, artigo 306 do Código de Trânsito Brasileiro;

6. Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada, artigo 308 do Código de Trânsito Brasileiro;

7. Conduzir embarcação ou aeronave após o consumo de drogas, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem, artigo 39 da Lei Sobre Drogas.

REFLEXÕES FINAIS

O Delegado de Polícia nos dias atuais exerce uma das funções mais importantes dentro do sistema jurídico do Brasil. Trata-se de um imprescindível agente público que funciona como filtro da legalidade, alguém que funciona como primeiro juiz natural na solução das aflições sociais. É o delegado de polícia quem primeiro tem contato com os fatos, brutos, para análise a luz da justiça e do direito; não se trata tão somente de um autômato confirmador de conduções que lhes são levadas à Unidade Policial; sua principal função é garantir a promoção dos direitos fundamentais, evitando juízos apressados que podem levar o cidadão diretamente para a espada pontiaguda, desumana e injusta, sem passar pelo equilíbrio da balança.

O delegado de polícia é quem exerce juízo de valor de tipicidade penal. E tanto isso é verdade que o CPP, em seu artigo 304 estatui que apresentado o preso à autoridade competente, ouvirá esta o condutor e colherá, desde logo, sua assinatura, entregando a este cópia do termo e recibo de entrega do preso. Em seguida, procederá à oitiva das testemunhas que o acompanharem e ao interrogatório do acusado sobre a imputação que lhe é feita, colhendo, após cada oitiva suas respectivas assinaturas, lavrando, a autoridade, afinal, o auto. O § 1º desse mesmo comando normativo esclarece que resultando das respostas fundada suspeita contra o conduzido, a autoridade mandará recolhê-lo à prisão, exceto no caso de livrar-se solto ou de prestar fiança, e prosseguirá nos atos do inquérito ou processo, se para isso for competente; se não o for, enviará os autos à autoridade que o seja.

Em Minas Gerais, a Lei Complementar nº 129, de 2013, em seu artigo 10, inciso I, preceitua que a função de polícia judiciária compreende, dentre outras medidas, o exame preliminar a respeito da tipicidade penal, ilicitude, culpabilidade, punibilidade e demais circunstâncias relacionadas à infração penal. Logo se das respostas claramente ficar evidenciado que o conduzido não praticou crime, deve o Delegado de Polícia, não ratificar a prisão, prosseguindo com as investigações no inquérito policial.

E assim, na essência de sua atividade jurídica deve o delegado de polícia, inclusive analisar qualificadores, causas de aumento e diminuição de pena, incidência de concurso de crimes, material, formal, continuidade delitiva, sistema de aplicação de pena, se cúmulo material, ou exasperação da pena, para verificar a possibilidade de conceder ou não fiança ao conduzido. Nesse sentido, o delegado de polícia, deve, inclusive, invocar o enunciado da Súmula 81 do STJ, para fundamentar a negativa da concessão de fiança, nas hipóteses de concurso de crimes, pois segundo a Súmula referida, “não se concede fiança quando, em concurso material, a soma das penas mínimas cominadas for superior a dois anos de reclusão”. Claro que a leitura atual se faz quando as penas mínimas cominadas forem superiores a quatro anos de reclusão.

Para plena garantia dos direitos, deve o delegado de polícia ficar atento a três situações que acontecem corriqueiramente numa Unidade Policial, no que se referem aos casos de maus-tratos a animais, descumprimento de medidas protetivas e lesão corporal na violência doméstica. Para este último caso, em virtude do Pacote Antifeminicídio, o § 9º do artigo 129 CP sofreu modificações em razão da Lei nº 14.994, de 2024, a saber:

§ 9o Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: 

Pena – reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos.      

No caso de maus-tratos a animais, artigo 32, §1º, da Lei 9.605, de 1998, a nova redação determinada pela Lei nº 14.064, de 2020, não permite ao delegado de polícia a concessão da fiança, quando se tratar de cão e gato, ficando assim redigido:

Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:       

Pena – detenção, de três meses a um ano, e multa.

§ 1º-A Quando se tratar de cão ou gato, a pena para as condutas descritas no caput deste artigo será de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, multa e proibição da guarda.     

E mais que isso. O crime de descumprimento de medidas protetivas, previsto no artigo 24-A, da Lei Maria da Penha, consistente em descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência previstas nesta Lei tinha pena de detenção de 3 meses a 2 anos, sendo que o § 2º determinava que na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança. Acontece que com o advento da Lei nº 14.994, de 2024, que introduziu o PACOTE ANTIFEMINICÍDIO, a pena passou para reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Mas o § 2º continua a dizer que na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança; claro que esse parágrafo passou a ser considerado letra morta mesmo porque o Delegado de Polícia somente poderá conceder fiança nos crimes com pena não superior a 4 anos. Depois disso é somente o juiz mesmo a autoridade competente para a concessão.  

Outra norma que o Delegado de Polícia deve ficar atento é quanto ao crime de descumprimento de medidas protetivas previstas na Lei nº 14.344, de 24 de maio de 2022; a referida Lei Henry Borel criou várias medidas de proteção à criança e ao adolescente.

O artigo 2º aduz que configura violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente qualquer ação ou omissão que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual, psicológico ou dano patrimonial:

I – no âmbito do domicílio ou da residência da criança e do adolescente, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas;

II – no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que compõem a família natural, ampliada ou substituta, por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa;

III – em qualquer relação doméstica e familiar na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a vítima, independentemente de coabitação.

O caso de grande repercussão nacional do menino HENRY BOREL, inclusive instituindo em todo o território nacional, o dia 3 de maio de cada ano como Dia Nacional de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Criança e o Adolescente, em homenagem ao menino Henry Borel.

Foi criado o crime de descumprimento de decisão judicial que defere medida protetiva de urgência, artigo 25, com previsão de pena de detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. Não obstante o tamanho da pena, o que § 2º aduz que na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.

Art. 25. Descumprir decisão judicial que defere medida protetiva de urgência prevista nesta Lei:

Pena – detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos.

§ 1º A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do juiz que deferiu a medida.

§ 2º Na hipótese de prisão em flagrante, apenas a autoridade judicial poderá conceder fiança.

§ 3º O disposto neste artigo não exclui a aplicação de outras sanções cabíveis.

Em relação à injúria racial, artigo 140, § 3º, do CP, que define “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a religião ou à condição de pessoa idosa ou com deficiência”, a pena é de reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos, e multa. Neste caso, conforme texto de lei do artigo 322 do CPP é possível a concessão de fiança pelo Delegado de Polícia. Acontece que recentemente, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu equiparar o crime de injúria racial ao de racismo. Com isso, o crime passa a ser inafiançável e imprescritível. Os ministros do Supremo entenderam que a injúria racial é uma forma de discriminação que se materializa de forma sistemática e, assim, fica configurado o racismo. A decisão foi em 28 de outubro de 2021, finalizando histórico julgamento no HC 154.248/DF.

Para reafirmar a imprescindibilidade desse censor do sistema de justiça, recentemente entrou em vigor a Lei Orgânica Nacional das Polícias Civis, Lei nº 14.735, de 2023, que reforça a sua importância institucional para o aprimoramento do sistema social, que veio reafirmar o seu compromisso com o sistema de justiça, sobretudo, para a proteção da dignidade humana e dos direitos fundamentais no âmbito da investigação criminal, a participação e interação comunitária, a resolução pacífica de conflitos, a lealdade e ética, a busca da verdade real, a essencialidade da investigação policial para a persecução penal, com destaque para o livre convencimento técnico-jurídico do delegado de polícia.

Para finalizar, mesmo não recebendo o devido respeito e valorização de nossos governantes, que têm medo de serem vítimas e caírem nas fortalecidas redes investigativas, e do próprio sistema de justiça, quando pela esdrúxula disputa por vaidades institucionais, por mídias e holofotes, é possível reconhecer que o Delegado de Polícia é um agente público que deve ser visto como bússola para esquadrinhar, nos labirintos das relações humanas conflituosas, possíveis sintomas de violações, arbitrariedades, derramamento de ódio e sentimento de revolta contra o sistema democrático; é a alma que enxerga a pureza da justiça ainda na trepidação das convulsões sociais. Portanto, o delegado de polícia não deve ser rotulado de mera peça de uma engrenagem sistêmica, cruel e repressora de uma máquina em busca enlouquecida por metas, de números destinados a propagandas de governo, cega, arbitrária e boçal, com a estampa da tatuagem do braço tirânico da imundície do aparelho repressor, mas sobretudo, instrumento social de garantia posto à disposição da sociedade para garimpar os resíduos e rejeitos que devem ser isolados da parte boa social, a fim de evitar a contaminação geral do tecido social.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Código de Processo Penal. Disponível em Del3689Compilado. Acesso em 01 de novembro de 2024.

BRASIL. Código Penal. Disponível em DEL2848compilado. Acesso em 01 de novembro de 2024.

BRASIL. Lei nº 12.830, de 2013. Disponível em L12830. Acesso em 01 de novembro de 2024.

BRASIL. Constituição da República. Disponível em Constituição. Acesso em 01 de novembro de 2024.

BRASIL. Código de Trânsito Brasileiro. Disponível em L9503Compilado. Aceso em 01 de novembro de 2024.

BRASIL. Estatuto do Desarmamento. Disponível em L10826. Aceso em 01 de novembro de 2024.

BRASIL. Lei sobre Drogas. Disponível em Lei nº 11.343. Aceso em 01 de novembro de 2024.

BRASIL. Lei Henry Borel. Disponível em L14344. Acesso em 01 de novembro de 2024.

NEVES. Paulo Maurício Serrano; FILHO. Wandirley Rodrigues de Sousa; ZANELLATIC. Fabrízio Casagrande. Sobre as novas regras para a fiança criminal da devolução dos bens e valores dados como fiança. Disponível Ministério Público do Estado de Goiás.


  1. NEVES. Paulo Maurício Serrano; FILHO. Wandirley Rodrigues de Sousa; ZANELLATIC. Fabrízio Casagrande. Sobre as novas regras para a fiança criminal da devolução dos bens e valores dados como fiança.

Sobre o autor

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Jeferson Botelho Pereira

Jeferson Botelho Pereira. Ex-Secretário Adjunto de Justiça e Segurança Pública de MG, de 03/02/2021 a 23/11/2022. É Delegado Geral de Polícia Civil em Minas Gerais, aposentado. Ex-Superintendente de Investigações e Polícia Judiciária de Minas Gerais, no período de 19 de setembro de 2011 a 10 de fevereiro de 2015. Ex-Chefe do 2º Departamento de Polícia Civil de Minas Gerais, Ex-Delegado Regional de Governador Valadares, Ex-Delegado da Divisão de Tóxicos e Entorpecentes e Repressão a Homicídios em Teófilo Otoni/MG, Graduado em Direito pela Fundação Educacional Nordeste Mineiro – FENORD – Teófilo Otoni/MG, em 1991995. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Teoria Geral do Processo, Instituições de Direito Público e Privado, Legislação Especial, Direito Penal Avançado, Professor da Academia de Polícia Civil de Minas Gerais, Professor do Curso de Pós-Graduação de Direito Penal e Processo Penal da Faculdade Estácio de Sá, Pós-Graduado em Direito Penal e Processo Penal pela FADIVALE em Governador Valadares/MG, Prof. do Curso de Pós-Graduação em Ciências Criminais e Segurança Pública, Faculdades Unificadas Doctum, Campus Teófilo Otoni, Professor do curso de Pós-Graduação da FADIVALE/MG, Professor da Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC-Teófilo Otoni. Especialização em Combate à corrupção, crime organizado e Antiterrorismo pela Vniversidad DSalamanca, Espanha, 40ª curso de Especialização em Direito. Mestrando em Ciências das Religiões pela Faculdade Unida de Vitória/ES. Participação no 1º Estado Social, neoliberalismo e desenvolvimento social e econômico, Vniversidad DSalamanca, 19/01/2017, Espanha, 2017. Participação no 2º Taller Desenvolvimento social numa sociedade de Risco e as novas Ameaças aos Direitos Fundamentais, 24/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Participação no 3º Taller A solução de conflitos no âmbito do Direito Privado, 26/01/2017, Vniversidad DSalamanca, Espanha, 2017. Jornada Internacional Comjib-VSAL EL espaço jurídico ibero-americano: Oportunidades e Desafios Compartidos. Participação no Seminário A relação entre União Europeia e América Latina, em 23 de janeiro de 2017. Apresentação em Taller Avanco Social numa Sociedade de Risco e a proteção dos direitos fundamentais, celebrado em 24 de janeiro de 2017. Doutorando em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidad Del Museo Social Argentino, Buenos Aires – Argentina, autor do Livro Tráfico e Uso Ilícitos de Drogas: Atividade sindical complexa e ameaça transnacional, Editora JHMIZUNO, Participação no Livro: Lei nº 12.403/2011 na Prática – Alterações da Novel legislação e os Delegados de Polícia, Participação no Livro Comentários ao Projeto do Novo Código Penal PLS nº 236/2012, Editora Impetus, Participação no Livro Atividade Policial, 6ª Edição, Autor Rogério Greco, Coautor do Livro Manual de Processo Penal, 2015, 1ª Edição Editora D´Plácido, Autor do Livro Elementos do Direito Penal, 1ª edição, Editora D´Plácido, Belo Horizonte, 2016. Coautor do Livro RELEITURA DE CASOS CÉLEBRES. Julgamento complexo no Brasil. Editora Conhecimento – Belo Horizonte. Ano 2020. Autor do Livro VIOLÊNCIA DOMÉSTICA. 2022. Editora Mizuno, São Paulo. articulista em Revistas Jurídicas, Professor em Cursos preparatórios para Concurso Público, palestrante em Seminários e Congressos. É advogado criminalista em Minas Gerais. OAB/MG. Condecorações: Medalha da Inconfidência Mineira em Ouro Preto em 2013, Conferida pelo Governo do Estado, Medalha de Mérito Legislativo da Assembléia Legislativa de Minas Gerais, 2013, Medalha Santos Drumont, Conferida pelo Governo do Estado de Minas Gerais, em 2013, Medalha Circuito das Águas, em 2014, Conferida Conselho da Medalha de São Lourenço/MG. Medalha Garimpeiro do ano de 2013, em Teófilo Otoni, Medalha Sesquicentenária em Teófilo Otoni. Medalha Imperador Dom Pedro II, do Corpo de Bombeiros, 29/08/2014, Medalha Gilberto Porto, Grau Ouro, pela Academia de Polícia Civil em Belo Horizonte – 2015, Medalha do Mérito Estudantil da UETO – União Estudantil de Teófilo Otoni, junho/2016, Título de Cidadão Honorário de Governador Valadares/MG, em 2012, Contagem/MG em 2013 e Belo Horizonte/MG, em 2013.

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