Esporte
As origens do Jiu-Jítsu – Parte 2
Essa luta foi criada na Índia?
A resposta a essa pergunta no subtítulo é um retumbante “NÃO”. Mas por que tantos mestres e professores insistem em afirmar isso?
A razão é simples: há uma grande confusão entre fatos históricos, tradições orais sem comprovação científica, mitos e lendas que foram perpetuados ao longo do tempo. Vamos então aos fatos.
A origem das artes marciais é uma questão complexa e praticamente impossível de determinar com precisão. Se considerarmos que o termo “arte marcial” se refere ao treinamento de soldados para a guerra, essas práticas surgiram em diferentes culturas, em épocas e contextos distintos.
Sabemos que quase todos os povos antigos tinham algum sistema de combate corpo a corpo, mas a documentação mais antiga aponta a Índia e a China como berços de várias artes marciais milenares.
Na Índia, duas das artes marciais mais antigas conhecidas são o Kalari Payattu e o Vajra Mushti. O Kalari Payattu (“payattu” significa treinamento de combate; “kalari” se refere ao espaço ou ginásio no qual ele é praticado) era muito comum principalmente na região de Kerala, e sua origem remonta a mais de 3.000 anos.
A prática envolve técnicas de luta armada e desarmada, além de um componente espiritual, com ligações com o hinduísmo e o budismo. Já o Vajra Mushti (“vajra” significa cetro ou arma divina; “mushti”, golpe ou soco) era uma técnica de luta desarmada praticada pelos guerreiros da casta Xátria.
A Índia se tornou uma sociedade rigidamente estratificada depois das invasões dos arianos, absorvendo a religião e as tradições desses povos, inclusive suas artes de combate.
Segundo a hipótese mais aceita por acadêmicos, os arianos, povos indo-europeus das estepes da Ásia Central, invadiram o norte da Índia por volta de 1.500 a.C., estabelecendo o sistema de castas e introduzindo a religião védica.
Eles trouxeram consigo técnicas de combate que, com o tempo, foram incorporadas e adaptadas às tradições locais. Esses métodos de luta, transmitidos de geração a geração, poderiam ser algumas das mais antigas formas de combate corpo a corpo metodizadas conhecidas.
Já na China, as referências às artes marciais são igualmente antigas e repletas de simbolismo cultural. O Jiao Di (角抵) é uma das mais antigas formas documentadas de combate chinês.
Originado durante a dinastia Xia (2.070 a.C. – 1.600 a.C.), Jiao Di era uma forma de luta que envolvia o uso de capacetes com chifres e na qual os competidores tentavam derrubar seus adversários.
Ao longo dos séculos, esse combate evoluiu para o Shuai Jiao (摔跤), uma luta de arremesso e projeções que tem semelhanças com o judô e o jiu-jítsu, mas com raízes muito mais antigas.
O ideograma para Shuai (摔) significa “jogar no chão”, e Jiao (跤) significa “arremesso”, destacando a ênfase da técnica em quedas e controle do oponente.
Estas formas de combate corpo a corpo eram usadas tanto em batalhas quanto em competições, e são documentadas desde a dinastia Zhou (1.046 a.C. – 256 a.C.).
O Shuai Jiao foi amplamente praticado pelos exércitos da dinastia Han (202 a.C. – 220 d.C.) e continua a ser uma parte importante da cultura marcial chinesa, rivalizando em antiguidade com as artes marciais indianas.
Voltando ao mito de que o Jiu-Jítsu teria origem na Índia, podemos entender de onde essa confusão se origina, ao examinarmos a relação entre a Índia, a China e o Japão no contexto da disseminação do budismo.
Siddhartha Gautama, o Buddha (563 a.C. – 483 a.C.), nasceu como príncipe da casta Xátria, e é provável que tenha sido treinado em artes marciais como parte de sua educação.
Após sua “iluminação”, ele renunciou à violência, mas isso não impediu que muitos monges budistas, em tempos posteriores, adotassem as artes marciais para autodefesa durante suas peregrinações.
A chegada do budismo à China é um ponto crucial nessa história. Acredita-se que o budismo tenha sido introduzido na China por volta de 25 d.C., durante o reinado do imperador Ming, da dinastia Han do Leste.
Com essa chegada, houve um sincretismo entre o budismo, o confucionismo e o taoismo, bem como entre estilos de artes marciais chinesas, como o Kung Fu (Wu Shu).
O famoso 29º patriarca do budismo, Bodhidharma (Ta Mo em chinês, Daruma em japonês, 440 d.C. – 528 d.C.), é amplamente creditado como o responsável por conectar o budismo à prática marcial.
Ele viajou para a China por volta do século V e se estabeleceu no famoso Templo Shaolin, onde fundou a escola de Kung Fu Shaolin e o budismo Chan, que mais tarde se tornou o Zen no Japão.
A partir daí, várias tradições marciais e espirituais se interligaram, e é provável que essa associação entre monges budistas e artes marciais tenha levado à ideia errônea de que o Jiu-Jítsu teria nascido na Índia.
No entanto, o Jiu-Jítsu, tal como o conhecemos, tem suas raízes no Japão feudal, desenvolvido por samurais durante o período Heian (794 – 1185 d.C.) e refinado ao longo dos séculos seguintes.
O termo “Jiu-Jítsu” aparece pela primeira vez nos anais da história do Japão por volta do século XVI, durante a guerra civil japonesa (período Sengoku).
Jiu-Jítsu (柔術) significa “arte suave” e reflete o princípio de utilizar a força do oponente contra ele, algo que difere das formas de combate mais brutais e diretas vistas em outras culturas.
Portanto, por conta da intensa influência cultural e religiosa da China no Japão (até os ideogramas são os mesmos), pode-se dizer que as artes marciais japonesas têm em seus “DNAs” genes originários da Índia e, mais fortemente, da China.
CARLOS LIBERI – Mestre de Jiu-Jítsu, faixa-coral (sétimo grau); membro do Conselho Diretor da Gracie Barra Flórida, instrutor-chefe da GB Sanford e da GB Campinas. Especialista em história e filosofia das artes marciais pelas Faculdades Integradas de Santo André (FEFISA).