Judiciário
Contradições eleitorais do ‘novo mundo digital’
As eleições municipais de 2024 escancararam um exemplo de como existe uma contradição entre o tratamento dado para influenciadores tradicionais, o das mídias sociais clássicas, e o para influenciadores digitais.
A eleição municipal de São Paulo traz exemplo concreto, quando disputaram um candidato, que apresentava um programa de TV (Datena); e outro era influenciador digital (Pablo Marçal).
Somente o candidato apresentador de TV teve que se afastar das suas atividades, pois não há qualquer regra semelhante em relação aos influenciadores digitais, os quais continuam, inclusive, lucrando com suas redes durante o período eleitoral.
Contudo, essa é só a primeira parte evidenciada da contradição.
A legislação eleitoral exige que os meios de comunicação tradicionais noticiem suas reportagens respeitando o tratamento isonômico entre os candidatos e sem macular a imagem de qualquer deles, a fim de evitar um comprometimento do equilíbrio das eleições.
A igualdade de condições aos candidatos, que se convencionou denominar de “pars conditio”, cuja força normativa deriva do que dispõe o artigo 5º, caput e o artigo 14 da Constituição de 1988 (CR/88), bem como dos artigos 36-A, I e 73 da Lei nº 9.504/1997, é um dos princípios que regem o Direito Eleitoral.
Dessa feita, a partir do encerramento do prazo para as convenções, proíbe-se a propaganda eleitoral negativa nos meios de comunicação, assim como um tratamento não isonômico entre os candidatos, impingindo certas restrições à liberdade jornalística na cobertura das eleições, conforme dispõe o artigo 45 da Lei 9.504/1997.
Em havendo violação às normas proibitivas se faz necessária a aplicação das sanções correspondentes, quais sejam: aplicação de multa, prevista no artigo 45, § 2º da Lei nº 9.504/1997, e/ou suspensão da programação da emissora, estabelecida no artigo 56 da Lei nº 9.504/1997, podendo chegar até mesmo à cassação do registro do candidato.
Todavia, ainda não há qualquer regulação em relação a quem exerce esse mesmo papel nas redes.
Digitalização do mundo
O Direito Eleitoral positivado precisa dar conta deste avanço da digitalização sobre o processo eleitoral, expressão do fenômeno da “digitalização do mundo”, valendo-se da expressão do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han:
O tsunami de informação desencadeia forças destrutivas. Abrange também, neste meio-tempo, âmbitos políticos e leva a fraturas e disrupções massivas no processo democrático. A democracia degenera em infocracia [1].
Esse fenômeno foi acompanhado de uma ascensão do papel das redes sociais nas campanhas eleitorais. Pesquisa realizada pelo Instituto DataSenado, nominada “Redes Sociais, Notícias Falsas e Privacidade na Internet” [2] concluiu que 45% dos entrevistados decidiram seu voto levando em consideração informações de alguma rede social.
Das 2,4 mil pessoas entrevistadas, 79% disseram sempre utilizar o WhatsApp para se informar, enquanto 50% indicaram que sempre recorrem à televisão e 49% sempre se informam pelo YouTube. Ainda segundo a pesquisa, as redes sociais que tiveram maior impacto nas eleições foram o Facebook (31%), o WhatsApp (29%), o YouTube (26%), o Instagram (19%) e o Twitter (10%).
A insatisfação popular reprimida hoje é exteriorizada por meio das redes sociais, cujo controle das informações por ali disponibilizadas é quase impossível de acontecer. Momento esse em que as pessoas passaram a compartilhar todo fruto de mensagens que estivessem em consonância com seu pensamento, independentemente de se aferir sua fidedignidade ou não.
Esse entendimento é defendido por Carlos Affonso Souza e Chiara Antonia Spadaccini de Teffe [3], destacando principalmente o engajamento gerado por manchetes sensacionalistas e conteúdo inverídico.
Diante dessa realidade, houve uma preocupação por parte da Justiça Eleitoral de combater esse fenômeno. Inclusive, o TSE lançou em 2019 um “Programa de Enfrentamento à Desinformação”, partindo das restrições que o próprio ordenamento jurídico já previa, quanto da necessidade de regular a utilização das redes sociais, principalmente na perspectiva de evitar a propagação desses conteúdos falsos e com ataques à honra.
Recentemente o ministro Benedito Gonçalves reforçou essa necessidade de as plataformas digitais assegurarem mecanismos para o combate à desinformação no âmbito digital, ante a sua evidente responsabilidade de reprimir tais condutas [4].
O Tribunal Superior Eleitoral, atento a essa realidade social, já se manifestou sobre a evolução do conceito de meios de comunicação social, tendo se consignado nas discussões do RO-El nº 060397598 e da Ac.-TSE, de 28.10.2021, que: “enquadram-se no conceito de veículos ou meios de comunicação social a que se refere este dispositivo a Internet e as redes sociais.”
Em âmbito doutrinário, o ministro Alexandre de Moraes, em sua tese detTitularidade para o Departamento de Direito de Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, assentou que as redes sociais e os serviços de mensagem privada são o mais novo e eficaz instrumento de comunicação de massa [5].
Fato é que, como aponta Jacques A. Wainberg, os influenciadores digitais são atualmente a segunda fonte mais popular de aconselhamento, perdendo apenas para recomendações dos amigos e da família [6].
Assim, não se pode desconhecer a rápida atuação que a Justiça Eleitoral tem empreendido para lidar com a nova realidade social, da política sendo feita nas redes sociais, inclusive por seus atores sociais mais relevantes, os influenciadores digitais.
Não obstante o ritmo acelerado da “digitalização do mundo da vida” muitas vezes se precipitar diante de soluções normativas engendradas no Direito Eleitoral positivado, é hora de se enfrentar o tema.
Dentro da programação do XXII Colégio de Dirigentes das Escolas Judiciais Eleitorais (Codeje), ocorrido no TRE/RJ, reuniu-se o Grupo de Pesquisa “Processo Eleitoral e Integridade das Eleições nas Américas”, criado por meio da Instrução Normativa Esagu/AGU nº 10, publicada em 19/11/2024, e sob Coordenação-Geral do Diretor da Esagu, João Carlos Souto, cujo tema foi objeto de debates.
Considerando os precedentes, e levando em conta que as redes sociais são equiparadas a “veículos ou meios de comunicação social”, deveriam também se aplicar as restrições inerentes aos meios de comunicação social a influenciadores digitais.
Esse é o desafio para as próximas eleições, que deve estar na agenda do legislativo brasileiro.
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[1] HAN, Byung-Chul. Digitalização e crise da democracia. Petrópolis: 2021, p. 25.
[2] DATASENADO. Redes Sociais, Notícias Falsas e Privacidade de Dados na Internet. Pesquisa DataSenado, Novembro/2019. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/ouvidoria/publicacoes-ouvidoria/redes-sociais-noticias-falsas-e-privacidade-de-dados-na-internet> Acesso em: 10.10.2022.
[3] SOUZA, Carlos Affonso; TEFFÉ, Chiara Antonia Spadaccini de. Fake News e eleições : identificando e combatendo a desordem informacional. In: ABBOUD, Georges; JR, Nelson Nery; RICARDO, Campos (Eds.). Fake news e Regulação. São Paulo: Thomson Reuters, 2018. p. 177–190.
[4] CARACAS, Letícia. O Globo. Blog do Edison Silva. Responsabilização das plataformas digitais diante propagação de fake news é defendida por Benedito Gonçalves. 14 de março de 2023. Disponível em: < https://blogdoedisonsilva.com.br/2023/03/responsabilizacao-das-plataformas-digitais-diante-propagacao-de-fake-news-e-defendida-por-benedito-goncalves/> Acesso em: 19/07/2023.
[5] MORAES, Alexandre de. O DIREITO ELEITORAL E O NOVO POPULISMO DIGITAL EXTREMISTA Liberdade de escolha do eleitor e a promoção da Democracia. Tese apresentada como requisito parcial para participação no concurso público de títulos e provas visando ao provimento de cargo de Professor Titular no Departamento de Direito de Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo: 2024, p. 129.
[6] WAINBERG, Jacques A.. Influenciadores sociais: o feitiço, a fama e a fé. Brasília: Edições do Senado Federal, 2021, p. 29.