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Assistencialismo estatal, liberação de emendas parlamentares e reeleição de prefeitos

O caso das eleições municipais de 2024

O assistencialismo estatal e a liberação indiscriminada de emendas parlamentares são fenômenos intrinsecamente ligados ao processo político-eleitoral brasileiro. Essas práticas, muitas vezes justificadas como instrumentos de melhoria das condições sociais e econômicas da população, podem também servir como ferramentas para consolidar o poder político e influenciar diretamente o resultado das eleições.

Em 2024, segundo amplamente noticiado pela imprensa, prefeitos vitoriosos nas urnas receberam 33% mais recursos em emendas per capita do que aqueles derrotados na busca por um novo mandato.[1] Um levantamento feito pelo jornal O Globo, mostrou que dos 112 municípios que mais receberam as emendas pix[2] e onde o prefeito tentou um segundo mandato, 105 saíram vitoriosos, um índice de 93,7%.[3] O reflexo, portanto, da utilização indiscriminada de emendas parlamentares no processo eleitoral é evidente.

Este artigo examina o impacto dessas práticas na Eleição de 2024, com especial atenção à reeleição de prefeitos. Aborda ainda a atuação da Justiça Eleitoral na mitigação dos efeitos negativos dessas políticas e propõe reflexões sobre a necessidade de revisão legislativa e jurisprudencial para garantir a lisura e a igualdade no processo eleitoral.

  1. Histórico do Assistencialismo Estatal e Seus Reflexos na Administração Pública

O assistencialismo estatal é um fenômeno social, político e jurídico que remonta a práticas antigas de governança. É um mecanismo pelo qual o Estado fornece ajuda direta à população, geralmente em forma de benefícios, subsídios ou serviços. Auxílios sociais e econômicos a pessoas em condição de vulnerabilidade podem ser medidas relevantes para retirá-las de um contexto de desigualdade extrema, mas para tanto devem ser pensados dentro de uma elaboração orçamentária de longo prazo e que contemple políticas públicas emancipatórias. No contexto contemporâneo, o assistencialismo tornou-se uma ferramenta relevante em várias democracias, especialmente em países com altos índices de desigualdade social, como o Brasil. Sua influência no processo eleitoral é inegável, levantando debates sobre seus impactos na formação de uma cidadania plena e no fortalecimento democrático.

Durante a República Velha (1889-1930), práticas clientelistas e paternalistas estruturaram as relações entre poder público e população. A dominação patrimonial, bem pontua Raymundo Faoro, por incompatível com a igualdade jurídica e as garantias institucionais contra o arbítrio, torna o indivíduo dependente do poder que lhe dita, pela definição de valores, a conduta. Aponta, em consequência, para um sistema autocrático, que, em lugar de se desenvolver segundo uma ordem em que a sociedade é autônoma, afirma a dependência ao poder da autoridade.[4]

Após a Constituição de 1988, o assistencialismo ganhou nova roupagem. No nível municipal, a distribuição de benefícios, cestas básicas, e outros recursos diretamente por prefeituras tornou-se prática comum, especialmente em períodos próximos às eleições. Esse tipo de ação impacta não apenas a administração pública, ao priorizar políticas de curto prazo em detrimento de investimentos estruturais, mas também a competição política, favorecendo gestores incumbentes e perpetuando ciclos de dependência.

2. Assistencialismo Estatal e Seus Reflexos no Processo Eleitoral

O assistencialismo estatal tem um impacto profundo no processo eleitoral, especialmente em democracias em desenvolvimento. Programas sociais, quando amplamente divulgados e promovidos por candidatos ou partidos políticos, podem influenciar significativamente o comportamento do eleitorado.

Ao estabelecer regras claras para a realização de eleições periódicas por meio da Lei nº 9.504/1997, o legislador brasileiro buscou fortalecer os mecanismos de controle sobre a conduta dos administradores públicos no contexto eleitoral, impondo punições cível-eleitorais mais severas para atos de desvio de finalidade na administração pública em favor de interesses político-partidários. Essa medida está relacionada à introdução da reeleição para cargos do Executivo, um fator que agrava o risco de desequilíbrio nas oportunidades entre os candidatos, devido ao uso indevido da chamada “máquina administrativa”.[5]

Os programas, muitas vezes criados sob a justificativa de assistência social e respaldados pela política de seguridade social prevista no artigo 203 da Constituição[6] e regulamentada pela Lei nº 8.742/1993, acabam sendo manipulados por gestores descomprometidos com o interesse público e com os reais objetivos de uma política de inclusão social. Nesse contexto, a Lei Eleitoral proíbe, na alínea “a” do inciso VI do art. 73[7], que agentes públicos realizem transferência voluntária de recursos da União aos entes no período que antecede o pleito. A exceção é aberta a recursos destinados a cumprir obrigação preexistente para execução de obras ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, além de recursos destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública.

Demais disso, a Lei nº 11.300/2006, com o objetivo de coibir de forma mais eficaz os abusos então praticados, tornou a legislação mais rígida, ao proibir a criação de novos programas desse tipo durante anos eleitorais, conforme o novo §10 do artigo 73[8], com algumas exceções previstas de maneira restrita. Mais recentemente, a Lei nº 12.034/2009 complementou essa normativa, estabelecendo expressamente a sanção de perda de mandato para essa prática e proibindo a execução desses programas, em ano eleitoral, por entidades privadas vinculadas a candidatos.[9]

Com efeito, embora o assistencialismo tenha um papel importante na redução das desigualdades, ele deve ser acompanhado de políticas estruturantes que promovam a autonomia do cidadão. A entrega excessiva de benefícios estatais, sem a adequada justificativa e sem o devido planejamento, pode terminar comprometendo o empoderamento da população e perpetuar ciclos de pobreza e exclusão social, além de servir de moeda para a interferência na vontade do eleitor, com a perpetuação de determinados grupos e pessoas no poder, em prejuízo da democracia em sentido político, econômico e social.

3. A Liberação de Verbas por meio de Emendas Parlamentares e sua Influência nas Eleições

A concessão de emendas parlamentares no Brasil poder ser uma ferramenta legítima de descentralização orçamentária e de atendimento às demandas locais. No entanto, quando essas verbas são utilizadas de maneira estratégica para influenciar processos eleitorais, como na reeleição de prefeitos em 2024, podem configurar abuso de poder econômico, comprometendo os princípios da democracia, republicano, da isonomia, da moralidade, além representarem também desrespeito aos princípios eleitorais da normalidade e da legitimidade.

Em períodos pré-eleitorais, a destinação seletiva de recursos federais aos municípios para prefeitos aliados ou estratégicos pode consolidar uma relação de dependência política e administrativa, desequilibrando a competição eleitoral. No caso das Eleições de 2024, a ausência de mecanismos eficazes de transparência na aplicação das emendas parlamentares foi um dos fatores que ampliaram o risco de abuso de poder econômico. Muitos recursos foram direcionados sem fiscalização adequada, permitindo seu uso em ações que favoreceram diretamente a imagem de prefeitos candidatos à reeleição.

Apesar das recentes mudanças legislativas, como a implementação do orçamento impositivo, ainda existem brechas que permitem a liberação de verbas em contextos estratégicos, muitas vezes sem uma análise criteriosa de seu impacto. Assim, a liberação de recursos para obras públicas ou serviços em municípios durante o período pré-eleitoral pode ser instrumentalizada pelos prefeitos beneficiados como propaganda indireta, conferindo-lhes vantagem indevida perante os concorrentes.

Para ilustrar, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) já reconheceu, em diversas situações, que a utilização de recursos patrimoniais em excesso, sejam eles púbicos ou privados, sob poder ou gestão do candidato, em seu benefício eleitoral, configura abuso do poder econômico.[10]

No caso sob exame, o vínculo entre a liberação de emendas e o favorecimento eleitoral se enquadra nesse entendimento, sendo notório que a instrumentalização de recursos públicos para influenciar eleições compromete, como visto, os princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade e moralidade administrativa, além de violar o equilíbrio democrático previsto no artigo 14 da Constituição Federal.

Esse cenário é agravado pela ausência de critérios objetivos na distribuição desses recursos, permitindo que sejam direcionados a municípios governados por aliados políticos, em detrimento de outros que possuam maior necessidade. Essa prática desequilibra a disputa eleitoral, violando o princípio da igualdade de oportunidades entre os candidatos, e compromete o resultado das eleições, por influenciar de forma ilegítima a vontade do eleitor.

3.1 Liberação de Emendas Parlamentares como Indutor da Reeleição em 2024

Em 2024 a liberação de emendas parlamentares tornou-se um dos instrumentos mais controversos no sistema político brasileiro. Originalmente concebidas como uma ferramenta para viabilizar a execução de demandas locais identificadas por parlamentares, as emendas são frequentemente associadas a estratégias de fortalecimento político e manutenção do poder. No contexto eleitoral, a distribuição e liberação de recursos por meio dessas emendas desempenharam um papel significativo como indutor da reeleição, levantando questionamentos sobre equilíbrio orçamentário, ética, transparência e equidade no processo democrático.

Com efeito, ao direcionar recursos para obras e serviços em suas bases, os parlamentares consolidam seu capital político. Prefeitos e outras lideranças locais, beneficiados por essas verbas, tendem a apoiar ativamente a reeleição do parlamentar, promovendo seu nome entre os eleitores. Demais disso, a materialização de obras e projetos financiados por emendas permite que o parlamentar seja diretamente associado a melhorias tangíveis na vida dos cidadãos. Essa visibilidade reforça a percepção de que o legislador é comprometido com o desenvolvimento local, aumentando suas chances de reeleição.

Por fim, as emendas são utilizadas como instrumento de troca política e de influência eleitoral. Prefeitos e gestores locais, conscientes de sua dependência das verbas parlamentares, são compelidos a apoiar o parlamentar em troca do benefício financeiro, configurando um ciclo de clientelismo que enfraquece a autonomia política local. Embora as emendas parlamentares possam ter uma função legítima no processo orçamentário, sua utilização como ferramenta eleitoral levanta sérias questões éticas. Isso porque, parlamentares em exercício têm acesso a recursos significativos que podem ser usados para beneficiar suas bases eleitorais, criando uma disparidade entre candidatos à reeleição e novos concorrentes.

4. Conclusão

O assistencialismo, manifestado por meio de programas sociais e políticas públicas voltadas para populações vulneráveis, e a distribuição de emendas parlamentares, destinadas ao atendimento de demandas locais, são instrumentos legítimos no Estado democrático. Contudo, quando utilizados com objetivos eleitorais, podem configurar abuso de poder político e econômico.

O problema se agrava em períodos eleitorais, quando o uso indiscriminado de benefícios sociais ou a liberação acelerada de emendas podem ser empregados para angariar apoio político. Isso não apenas prejudica a igualdade de condições entre candidatos, mas também compromete a liberdade do voto, especialmente em contextos de vulnerabilidade social.

Ainda que as emendas parlamentares possam representar uma ferramenta valiosa para atender demandas locais, seu uso estratégico como indutor da reeleição compromete a integridade do processo democrático. A relação entre a liberação de recursos e o fortalecimento de candidaturas reforça desigualdades na competição eleitoral e perpetua práticas clientelistas que enfraquecem a autonomia política das comunidades.

Para promover uma democracia mais justa e transparente, torna-se urgente a revisão tanto da legislação quanto da jurisprudência relacionadas ao assistencialismo no que respeita à utilização de emendas parlamentares. São necessários critérios técnicos e transparentes para a distribuição das emendas, priorizando indicadores socioeconômicos em vez de interesses políticos. Na mesma toada, é preciso uma interpretação das hipóteses de abuso de poder político para incluir práticas relacionadas ao uso eleitoral de emendas parlamentares, o que garantirá respostas mais rápidas e eficazes da Justiça Eleitoral.

Em conclusão, para que a democracia seja fortalecida, é fundamental que o assistencialismo seja visto como um meio de inclusão social e não como uma estratégia política. Assim, dentro de uma prática orçamentária republicana, o desafio para governantes e sociedade civil é garantir que as emendas parlamentares e o assistencialismo contribuam para a construção de um eleitorado consciente, capaz de escolher seus representantes com base em propostas consistentes e alinhadas ao bem coletivo. Numa época em que o equilíbrio orçamentário se revela tema central ao país, entendimento diverso se mostra ainda mais insensível, com duplo equívoco hermenêutico, ao viabilizar que desvios orçamentários praticados a pretexto de ajudar determinada população local justifiquem práticas eleitorais inválidas.

___________________________________________________________

[1]Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/eleicoes/na-mira-do-stf-emendas-parlamentares-turbinaram-reeleicao-de-prefeitos/; Acesso em 26 de dezembro de 2024.

[2]Atualmente, nesse tipo de transferência, o dinheiro chega à conta da prefeitura ou estado sem vinculação com qualquer tipo de gasto relacionado a projetos, embora não possa ser utilizado em despesas de pessoal e 70% dele devam estar ligados a investimentos. Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/1114272-entra-em-vigor-lei-com-novas-regras-para-emendas-parlamentares/; Acesso em 27 de dezembro de 2024.

[3]Disponível em: https://oglobo.globo.com/politica/eleicoes-2024/noticia/2024/10/08/cofres-cheios-cidades-recordistas-em-emendas-pix-registraram-94percent-de-reeleicao-do-prefeito-ou-vitoria-de-sucessor.ghtml; Acesso em 26 de dezembro de 2024.

[4]FAORO, Raymundo. A aventura liberal numa ordem patrimonialista. Revista USP, n. 17, p. 14-29, 1993, p. 16.

[5]DA COSTA, J. G. F. (2011). Assistencialismo eleitoreiro e improbidade administrativa.Boletim Científico Escola Superior do Ministério Público da União, (36), 313-346.

[6]CRFB. Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: (…) VI – a redução da vulnerabilidade socioeconômica de famílias em situação de pobreza ou de extrema pobreza. (Incluído pela Emenda Constitucional nº 114, de 2021)

[7]Lei das Eleições. Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais: VI – nos três meses que antecedem o pleito: a) realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e dos Estados aos Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública;

[8]Lei das Eleições. Art. 73. § 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa. (Incluído pela Lei nº 11.300, de 2006).

[9]Lei das Eleições. Art. 73. § 11. Nos anos eleitorais, os programas sociais de que trata o § 10 não poderão ser executados por entidade nominalmente vinculada a candidato ou por esse mantida.

[10]BRASIL. Tribunal Superior Eleitoral. Recurso Especial Eleitoral 94181/TO, Relator(a) Min. Maria Thereza de Assis Moura, Acórdão de 15/12/2015, Publicado no(a) Diário de Justiça Eletrônico 45, data 07/03/2016, pag. 51.

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