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Segurança Pública

A aplicação do princípio da igualdade material às mulheres em cumprimento de pena privativa de liberdade

As mulheres presas no Brasil enfrentam injustiças sociais que exigem ações afirmativas e transformativas. Como atender as necessidades desse grupo vulnerável?

Resumo: Pretende-se com este estudo a fundamentação da análise das injustiças sociais observadas nas mulheres encarceradas, partindo das noções doutrinárias de reconhecimento e redistribuição, à luz de Nancy Fraser (2006), que concluem que devem ser adotadas ações afirmativas e transformativas na equalização desta condição em que estão inseridas as presas. Este se trata de um recorte bibliográfico de uma dissertação de mestrado que culmina na intenção de propor estratégias de mitigação das injustiças sociais sofridas pelo grupo em questão, através da concretização dos ideais de dignidade humana relacionados aos direitos à assistência social e à saúde da mulher presa no Brasil. Conclui-se que é urgente a implementação de medidas que possibilitem a transformação da realidade destas mulheres, a fim de promover a igualdade social.

Palavras-chave: Direitos humanos; Igualdade material; Mulheres encarceradas; Políticas públicas.


1. Introdução

O ser humano traz consigo, de forma inata, a capacidade de se indignar, compreender e se posicionar diante de evidentes injustiças, desrespeito e/ou tratamento desigual perante situações que atingem seus semelhantes de forma tão profunda e íntima que ferem a sua própria condição de pessoa. Há cenários que causam, de plano, incômodo, perplexidade e impulso por intervenção naqueles que carregam mínimos valores éticos e bom senso. Daí advém o núcleo da concepção de dignidade humana.

É intuitivo dizer que, em se tratando de conteúdo inerente à pessoa, a ideia de dignidade estará presente nas mais diversas sociedades, épocas e culturas, evidenciando uma consistente carga cultural, social e moral, estritamente ligada aos momentos históricos respectivos. Partindo-se do pressuposto de que, no mundo contemporâneo, as normas são elaboradas por grupos de pessoas e revelam aquilo que estes grupos entendem como essencial a ser protegido, tutelado e elevado a destaque no ordenamento jurídico, o conteúdo dos tratados internacionais, constituições e leis lato sensu, necessariamente, revelará o que a civilização entende por dignidade da pessoa humana.

Nessa mesma linha, o princípio da igualdade é considerado por muitos um dos principais direitos fundamentais do Estado Democrático de Direito e compreender a sua relevância na busca pelos direitos humanos significa alcançar efetivamente a concretização desses direitos. A concepção constitucional moderna de igualdade traz a ideia de que todos têm o direito de ser tratados de forma igual, na medida de sua igualdade, e de forma desigual, naquilo em que se desigualarem. Trata-se de direito, mas, também, de verdadeiro princípio essencial e consectário da democracia.

A respeito da estreita correlação do princípio da igualdade com a própria dignidade da pessoa humana, Sarlet (2011, p. 49) ensina que: “[…] constitui pressuposto essencial para o respeito da dignidade da pessoa humana a garantia da isonomia de todos os seres humanos, que, portanto, não podem ser submetidos a tratamento discriminatório e arbitrário […]”.

Em vista disso, este artigo se trata de um recorte investigativo de cunho bibliográfico que compõe uma dissertação de mestrado em construção, que aborda o fomento à concretização dos ideais de dignidade humana e igualde material relacionados aos direitos fundamentais da mulher presa, especialmente, aqueles ligados à assistência social e à saúde.


2. Igualdade material e ações afirmativas sob a perspectiva das mulheres presas

O princípio da isonomia, conforme lições de Cunha Júnior (2015, p. 554), deve incidir sob dois aspectos primordiais: perante a ordem jurídica – igualdade formal – e perante as oportunidades de acesso aos bens da vida – igualdade material. Segundo o autor: “[…] todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos”, de forma que o mencionado postulado se apresenta como uma decorrência básica da democracia, significando que todos merecem as mesmas oportunidades, sendo defeso qualquer tipo de privilégio e perseguição, mas devendo ser garantida, especificamente em seu aspecto material, conceito este já consolidado na doutrina e na jurisprudência pátrias, a igualdade de oportunidades (Cunha Júnior, 2015).

Sobre esta perspectiva, é possível destacar que, conforme promulgado pela Assembleia das Nações Unidas, não há antagonismo entre as identidades individuais e o direito isonômico da dignidade, devendo-se considerar, pois, a as diferenças para o crivo da igualdade (Sarlet, 2011). Portanto, o direito à igualdade consiste em postulado que pode ser visto sob dois aspectos: formal e material. A igualdade formal abrange a igualdade na lei, que exige que as normas jurídicas não promovam distinções que não estejam previstas na Constituição Federal (CF), e se direciona ao legislador; e a igualdade perante a lei, que impõe que a norma deve ser aplicada a todos, mesmo que crie uma situação de desigualdade, a qual tem como destinatários os aplicadores da norma.

A doutrina ensina que a CF foi além, consagrando, também, a igualdade material:

[…] na medida em que elegeu como objetivo fundamental do estado erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III); como finalidade da ordem econômica assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social (art. 170) e como objetivo da ordem social o bem-estar e a justiça sociais (art. 193). Nesse passo, a Constituição preocupou-se em garantir a todos igualdade de oportunidades, abrindo um especial espaço para a adoção de ações afirmativas, que consistem num conjunto de medidas administrativas e legislativas de política pública que visam compensar desigualdades históricas decorrentes da marginalização social (Cunha Júnior, 2015, p. 554).

Ao se conceber a igualdade sob o aspecto material, não se afastou o seu caráter formal, mas buscou-se uma forma de se corrigir situações de injustiça que não eram solucionadas apenas mediante a garantia de tal direito perante a lei. Ademais, através da igualdade material, objetivou-se inibir arbitrariedades, ou seja, intentou-se inibir a utilização de medidas que violem fundamentalmente os princípios da dignidade humana, garantindo que a igualdade se torne parâmetro preceituado (Sarlet, Marinoni e Mitidiero 2020).

Moraes (2023, p. 48) também contribui com o debate acerca do referido princípio ao informar que a Constituição de 1988 promulgou a igualdade como um direito comum a todo cidadão brasileiro e que a liberdade material reforça a igualdade não apenas na instância legal, mas também no que concerne o social, por meio de políticas públicas e programas de fomento.

Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois, o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência tradicional do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente se tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito […].

O autor faz um alerta a respeito da possibilidade de tratamentos desiguais justificados, pois: “a desigualdade na lei se produz quando a norma distingue de forma não razoável ou arbitrária um tratamento específico a pessoas diversas.” (Moraes, 2023, p. 48). A fim de evitar regulamentárias discriminatórias, é essencial que estas sejam embasadas em argumentos criteriosos, consonantes às sociedades em que estão inseridos e proporcionais em causa e efeito, respeitando os preceitos constitucionais (Moraes, 2023). Portanto, havendo uma finalidade justificada, plausível e proporcional ao fim a que se visa, haverá plena compatibilidade do tratamento normativo diferenciado com a Constituição Federal.

Não é demais destacar que os conceitos de igualdade e de justiça estão entrelaçados de forma tão consistente que, outrossim, passaram a incorporar o constitucionalismo moderno dos Estados tidos como democráticos. Resta evidente que o direito à igualdade está intimamente ligado ao Estado Democrático de Direito, todavia, como bem asseveram Sarlet, Marinoni e Mitidiero (2020, p. 280):

[…] a democracia não se traduz apenas em um conjunto de princípios e regras de cunho organizatório e procedimental, guardando, na sua dimensão material, íntima relação com a dignidade da pessoa humana e com os direitos fundamentais em geral, com destaque para os direitos políticos e os direitos de liberdade (designadamente as liberdades de expressão, reunião e manifestação), para além dos direitos políticos e de nacionalidade. Consoante bem sintetiza Hartmut Maurer, do respeito e proteção da dignidade humana decorre que os seres humanos (portanto, o povo) formam o elemento dominante do (e no) Estado, ao passo que liberdade e igualdade (e os direitos fundamentais correlatos) exigem que todos possam, em condições de igualdade, influir na vida estatal. Assim, também o princípio democrático, na condição de princípio normativo estruturante, apresenta uma dimensão material e uma dimensão organizatória e procedimental, que se conjugam, complementam e retroalimentam assegurando uma legitimidade simultaneamente procedimental e substancial da ordem jurídico-política estatal.

Os doutrinadores, de forma muito pertinente, deixam evidente que não há democracia sem o necessário respeito e concretização da igualdade, especialmente sob o aspecto material. Para isso, o Estado deve não apenas prever mecanismos constitucionais que visem ao princípio da igualdade, mas, também, garantir políticas efetivas de promoção da redução das desigualdades discriminatórias observadas, especialmente, aquelas que configurem claras violações de direitos humanos básicos, como é o caso das mulheres encarceradas no Brasil.

Nesse contexto, podem ser observadas desigualdades vivenciadas entre homens e mulheres no cárcere, que deveriam cuidadosamente observadas pelo Estado. Entretanto, como bem colocam e exemplificam Oliveira e Santos (2012, p. 237), a realidade difere do esperado, quando o estado brasileiro falha em assegurar o acesso a direitos básicos, como: “como à saúde, até ao direito à vida, ou aqueles implicados numa política de reintegração social, como o trabalho, a educação e a preservação de vínculos e relações familiares”.

Outro ponto comumente levantado pelos pesquisadores do assunto é a escassez de políticas públicas voltadas à promoção da saúde da mulher presa e suas especificidades, que vão desde o bem-estar fisiológico ao mental. Em estudo realizado sobre o assunto. Araújo et al. (2020, p. 6) constataram em entrevista de mulheres encarceradas na rede pública que há também a imperícia das necessidades espirituais das apenadas, portanto:

É preciso reforçar que a população prisional feminina, demanda de uma atenção específica, devendo-se levar em consideração as suas singularidades sociais e culturais, estes são fatores determinantes no planejamento das ações que devem ser realizadas. Essa população deve ser assistida de forma integral e fazer parte das ações sistêmicas de atenção em saúde.

Ocorre que, diante desta disparidade, verifica-se que devem ser construídos mecanismos que permitam que esta realidade venha a ser modificada. Este espaço pode ser ocupado pelas chamadas ações afirmativas, no aspecto conceitual jurídico. As políticas de ações afirmativas tiveram origem na jurisprudência norte-americana, a partir da chamada teoria do impacto desproporcional, que surgiu, a princípio, como forma de controle da discriminação racial. Na Europa, por sua vez, a necessidade de implementação das referidas políticas permeou as questões de gênero (Sarlet; Marinoni; Mitidiero, 2020).

Ao tratar das políticas estatais baseadas em discriminações positivas, Moraes (2023, p. 53) afirma que:

[…] serão legítimas quando presentes finalidades razoavelmente proporcionais ao fins visados, devendo conter demonstração empírica de que a neutralidade do ordenamento jurídico produz resultados prejudiciais a determinados grupos de indivíduos, reduzindo-lhes as oportunidades de realização pessoal (viabilidade fática); bem como vantagem jurídica idônea proposta pelo ato normativo para reverter o quadro de exclusão verificado na realidade social, gerando mais consequências positivas do que negativas (viabilidade prática).

O fato é que referidas políticas têm como destinatários grupos reconhecidamente vulneráveis, verdadeiras minorias. Ora, a necessidade de equilibrar a equação se mostra presente em diversas situações, sempre que a igualdade material se mostrar relegada, oportunidade em que, como medida de justiça social, deve-se fomentar a implementação de mecanismos aptos a sanarem a disparidade de condições, seja qual for o aspecto (raça, gênero, classe social etc.).

Dos ensinamentos doutrinários analisados, observa-se que, ao se adentrar no campo da desigualdade social, constata-se haver discriminação inconstitucional a ser combatida. Aliás, a desigualdade de direitos seria uma ideia fundada através do cerceamento dos direitos fundamentada em exclusões culturais, notadamente, raciais e de gênero (Miranda, 2010).

A fim de permitir a compreensão do que seriam ações afirmativas, Miranda (2010, p. 29), com base em uma série de autores, elenca algumas definições:

  • As ações afirmativas podem ser entendidas como medidas públicas e privadas, coercitivas ou voluntárias, implementadas na promoção/integração de indivíduos e grupos sociais tradicionalmente discriminados em função de sua origem, raça, sexo, opção sexual, idade, religião, patogenia física/psicológica.
  • As ações afirmativas são, portanto, atos de discriminação lícitos e necessários à ação comunicativa da sociedade. Logo, não devem ser vistas como “esmolas” ou “clientelismo”, mas como um elemento essencial à conformação do Estado Democrático de Direito. São, pois, uma exigência comum a países desenvolvidos como os Estados Unidos e a países subdesenvolvidos como o Brasil (Cruz, 2009, p. 63. apud Miranda, 2010, p. 29).
  • Elas [as ações afirmativas] constituem medidas especiais e temporárias que, buscando remediar um passado discriminatório, objetivam acelerar o processo com o alcance da igualdade substantiva por parte de grupos vulneráveis, como as minorias étnicas e raciais e as mulheres, entre outros grupos (Piovesan, 2005, p. 49. apud Miranda, 2010, p. 29).
  • As chamadas políticas de ação afirmativa são muito recentes na história da ideologia antirracista. Nos países onde já foram implantadas (Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Índia, Alemanha, Austrália, Nova Zelândia e Malásia, entre outros), elas visam oferecer aos grupos discriminados e excluídos um tratamento diferenciado para compensar as desvantagens devidas à sua situação de vítimas do racismo e de outras formas de discriminação. Daí as terminologias de “equal opportunity policies”, ação afirmativa, ação positiva, discriminação positiva ou políticas compensatórias (Munanga, 2003, p. 117. apud Miranda, 2010, p. 29).
  • As ações afirmativas constituem-se em políticas de combate ao racismo e à discriminação racial mediante a promoção ativa da igualdade de oportunidades para todos, criando meios para que as pessoas pertencentes a grupos socialmente discriminados possam competir em mesmas condições na sociedade. […] Essas ações podem ser estabelecidas na educação, na saúde, no mercado de trabalho, nos cargos políticos, entre outros, enfim, nos setores onde a discriminação a ser superada se faz mais evidente e onde é constatado um quadro de desigualdade e de exclusão. A sua implementação carrega uma intenção explícita de mudança nas relações sociais, nos lugares ocupados pelos sujeitos que vivem processos de discriminação no interior da sociedade, na educação e na formação de quadros intelectuais e políticos. As ações afirmativas implicam, também, uma mudança de postura, de concepção e de estratégia (Gomes; Munanga, 2004, p. 186. apud Miranda, 2010, p. 29).
  • Políticas de reparações e de reconhecimento formarão programas de ações afirmativas, isto é, conjuntos de ações políticas dirigidas à correção de desigualdades raciais e sociais, orientadas para a oferta de tratamento diferenciado com vistas a corrigir desvantagens e marginalização criadas e mantidas por estrutura social excludente e discriminatória (Brasil, 2004, p. 12. apud Miranda, 2010, p. 29).

É possível extrair destes conceitos que as referidas ações recaem sobre grupos já sabidamente discriminados e socialmente vulneráveis, de forma que essa posição de inferioridade social não seria passível de alteração sem uma espécie de compensação positiva. Trata-se de verdadeira reparação que visa a modificar desequilíbrios coletivos construídos ao longo da história e que somente podem deixar de existir mediante tratamento desigual de fomento à igualdade material.

Emerge, então, a necessidade de implementação de ações afirmativas como forma de buscar a erradicação de desigualdades históricas, situação na qual se enquadra a política de atendimento à mulher em diversos âmbitos da sociedade atual, ocupando inevitável especificidade o atendimento ofertado às mulheres presas ao serem reconhecidas como grupo vulnerável.

2.1. A necessidade de reconhecimento e redistribuição às mulheres encarceradas

Dentre as orientações específicas direcionadas à garantia de direitos da pessoa presa, merecem destaque “As Regras Mínimas para Tratamento de Presos”, editadas no 1º Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e o Tratamento dos Delinquentes, que ocorreu em 1955, em Genebra, as quais foram aprovadas pelo Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, em 1957 e, recentemente, sofreram modificações, passando a ser chamadas de “Regras de Mandela” (Brasil, 2020, p. 29).

O texto da Política Nacional de Atenção às Pessoas Egressas do Sistema Prisional destaca importantes regras compiladas do mencionado documento:

[…] a regra nº 4 refere que, para a consecução dos fins da prisão, a proteção da sociedade e a redução da reincidência, faz-se necessária a oferta de serviços de educação, formação e preparação para o trabalho, além de outros serviços que respondam às necessidades individuais de cada preso, possibilitando-lhes alternativas para não reincidirem e construírem outros projetos de vida.

A regra nº 88 preocupa-se com a manutenção dos vínculos sociais, advogando que o tratamento dos presos não deve acentuar a sua exclusão da comunidade e sim buscar sua participação nela. O trecho recomenda que os serviços existentes na comunidade devem, sempre que possível, contribuir com os servidores da prisão para a reabilitação dos presos (ONU, 2015 apud Brasil, 2020, p. 29).

As referidas regras mínimas inspiraram, ainda, os Princípios Básicos Relativos ao Tratamento de Reclusos, elencados pela Resolução 45/111, da Assembleia Geral das Nações Unidas em 14 de dezembro de 1990. Conforme consta do documento elaborado pelo CNJ e pelo DEPEN, são onze princípios, dentre os quais merece destaque o nº 5, que dispõe que:

5. Exceto no que se refere às limitações evidentemente necessárias pelo fato da sua prisão, todos os reclusos devem continuar a gozar dos direitos do homem e das liberdades fundamentais, enunciados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e, caso o Estado interessado neles seja parte, no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e no Protocolo Facultativo que o acompanha, bem como de todos os outros direitos enunciados noutros instrumentos das Nações Unidas (Brasil, 2020, p. 30).

Ainda, não se pode deixar de salientar as chamadas “Regras de Bangkok”, que são regras das Nações Unidas para o tratamento de mulheres presas e medidas não privativas de liberdade para mulheres infratoras, que sugere a adoção de medidas que as resguardem da privação de liberdade (Brasil, 2016).

Partindo de tais premissas, na atuação perante a execução penal, é possível verificar a necessidade de adequação dos estabelecimentos prisionais e da forma de execução das penas privativas de liberdade às finalidades da pena e à consecução dos direitos humanos, tal como idealizado nas normas internacionais e pelo legislador pátrio. Diversas são as possibilidades de minorar a ineficiência do referido serviço ofertado pelo Estado atualmente. Contudo, é fato que são encontrados limitadores que não podem ser ignorados, tais como as questões orçamentárias e financeiras, a falta de estrutura e de pessoal capacitado, a superpopulação carcerária, dentre outros.

Sob o espectro de tais obstáculos, rotineiramente, os gestores estatais recorrem à arguição da chamada reserva do possível, argumento que “[…] sustenta que a satisfação dos direitos fundamentais é limitada pela capacidade orçamentária do Estado” (Tangerino, 2016). Ocorre que, diante da hipervulnerabilidade de determinado grupo, o núcleo intangível da dignidade humana, previsto na CF e nos Tratados Internacionais firmados pelo Brasil, deve ser garantido. Na problemática observada neste trabalho, referido grupo engloba as mulheres encarceradas.

Nesse contexto, surge a demanda de se atentar para as peculiaridades vivenciadas pelas mulheres inseridas no sistema prisional brasileiro, as quais carregam consigo uma dupla posição de vulnerabilidade, a própria condição de mulher e as consequências inerentes ao cárcere.

Da observação do sistema carcerário brasileiro, é possível observar o quanto a mulher que cumpre pena privativa de liberdade se encontra, mais uma vez, em situação de vulnerabilidade, notadamente, quando comparada ao homem na mesma situação. Isso porque, embora as questões atinentes ao gênero tenham ganhado notoriedade no último século, sendo inseridas no cenário de discussão política, observa-se que permanece escassa a implementação de políticas públicas voltadas a nichos específicos do atendimento à mulher, como é o caso do sistema carcerário feminino. Isso sem contar as comuns violências suportadas por este grupo desde a sua abordagem pela polícia até a saída da unidade prisional e retorno à sociedade.

Importante ressaltar que a CF/1988 assevera que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos do art. 5º, I, mas:

A correta interpretação desse dispositivo torna inaceitável a utilização do discrímen sexo, sempre que ele seja eleito com o propósito de desnivelar materialmente o homem da mulher; aceitando-o, porém, quando a finalidade pretendida for atenuar os desníveis. Consequentemente, além de tratamentos diferenciados entre homens e mulheres previstos pela própria constituição (arts. 7º, XVIII e XIX; 40, § 1º, III; 143, §§ 1º e 2º; 201, § 7º, I), poderá a legislação infraconstitucional pretender atenuar os desníveis de tratamento em razão do sexo (Moraes, 2023, p 51).

Na atuação diária na execução penal, o operador do direito se depara diretamente com a desigualdade ora apontada, verificando que, mesmo diante do aumento significativo do número de mulheres encarceradas, a efetivação de projetos voltados a este público é muito inferior ao que é proporcionado ao público masculino.

É interessante destacar que a própria apresentação da Política Nacional de Atenção às pessoas Egressas do Sistema Prisional, elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça e pelo Departamento Penitenciário Nacional, por exemplo, já reconhece a histórica deficiência do referido sistema, ao aduzir, já em sua apresentação que:

O sistema prisional e o sistema socioeducativo do Brasil sempre foram marcados por problemas estruturais graves, reforçados por responsabilidades difusas e pela ausência de iniciativas articuladas nacionalmente fundadas em evidências e boas práticas (Brasil, 2020, l. 5).

Sobre o assunto, ressai a elaboração da Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Penal (PNAMPE), instituída pela Portaria Interministerial nº 210, de 16 de janeiro de 2014, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) (Brasil, 2014) que, como explicitam Lima, Oliveira e Kritsch (2020) auxilia o fomento de políticas de manutenção dos direitos das mulheres em situação de cárcere, bem como o acúmulo de dados que sustentem tais políticas.

A PNAMPE busca conduzir os gestores estaduais na concretização de ações que visem à garantia dos direitos das mulheres em situação de privação de liberdade no que refere à assistência à gestação e maternidade; assistência material; acesso à saúde, à educação e ao trabalho; assistência jurídica; atendimento psicológico; e incentivo aos programas e projetos de formação continuada de profissionais do sistema prisional feminino (Brasil, 2014).

O encarceramento não apenas priva a mulher do direito de ir e vir, mas traz consigo consequências lógicas deste isolamento. A medida também acarreta, por exemplo, o necessário distanciamento de familiares, especialmente, pais, mães, filhos(as) e companheiros(as), além de romper bruscamente o contato com atividades básicas do cotidiano, como privacidade, higiene, lazer, cuidados com corpo, mente, beleza e saúde em geral; notadamente, em decorrência das péssimas condições da maioria dos presídios brasileiros.

Um exemplo interessante relativo à discriminação estatal no tratamento dado às presas quando em comparação com os presos é apontado por Oliveira e Santos (2012) no que se refere às visitas íntimas, sendo frequentemente negligenciadas. Isso aponta para a segregação da mulher, em especial as encarceradas, que são vítimas de medidas disciplinares punitivas baseadas na discriminação de gênero.

Os autores ainda ressaltam que foram observadas as mais variadas barreiras apresentadas pelos estabelecimentos prisionais no sentido de arrefecer a conservação das relações afetivas e familiares das presas (Oliveira; Santos, 2012), que as afeta mental e fisicamente por dependerem exclusivamente de relacionamentos carcerários para aliviar a solidão.

Outra deficiência relevante foi apontada em estudo realizado a respeito da assistência à saúde de mulheres encarceradas realizado no âmbito da Universidade Regional do Cariri, Crato, no Ceará, Brasil, em 2020, que constatou a precariedade da assistência à saúde na cadeia pública estudada, realidade que não é indiferente ao restante do país.

Segundo os pesquisadores (Araújo et al., 2020), conforme mencionado anteriormente, as deficiências não são apenas referentes às necessidades próprias da pessoa do sexo feminino, mas também de assistência básica pura e simples, como alimentação, roupas, produtos de higiene íntima e geral, remédios etc., além da ausência de atendimento psicológico e espiritual. Não são, portanto, respeitadas as necessidades biológicas, psicológicas, culturais e sociais destas mulheres.

Por circunstâncias como as exemplificadas é que é preciso reforçar as medidas de promoção de políticas públicas voltadas para as especificidades das mulheres presas. Nesse sentido, relevante dar destaque às benesses trazidas pela PNAMPE, na visão do Ministério da Justiça (2014) apud Soldatelli e Weding (2018, l. 5):

Dentre as benesses providenciadas pela PNAMPE tem-se a busca pela humanização das condições do cumprimento da pena, garantindo o direito à saúde, educação, alimentação, trabalho, segurança, proteção à maternidade e à infância, lazer, esportes, assistência jurídica, atendimento psicossocial e demais direitos humanos; fornecer a assistência material, como: alimentação, vestuário e instalações higiênicas, acesso à saúde em consonância com a PNAISP e a PNAISM, observados os princípios e as diretrizes do SUS, bem como a implementação de espaços adequados à efetivação dos direitos das mulheres em situação de prisão, tais como saúde, educação, trabalho.

O que torna a situação ainda mais delicada é o elevado aumento do número de mulheres encarceradas nos últimos 20 (vinte) anos. Por exemplo, entre os anos de 2000 e 2016, a população carcerária feminina aumentou cerca de 656%, conforme dados publicados pelo Ministério da Justiça e pelo Departamento Penitenciário Nacional (Brasil, 2017).

Segundo os dados mais recentes do Departamento Penitenciário Nacional, o total da população feminina privada de liberdade no Brasil é de 27.375 (vinte e sete mil, trezentos e setenta e cinco), excluídas as que estão em prisão domiciliar, as que estão sob custódia das Polícias judiciárias, Batalhões de Polícias e Bombeiros Militares (outras prisões). Mesmo com a redução da população de 2016 para os dias atuais, permanece sendo um número muito expressivo (Brasil, 2023, p. 62).

Desses mesmos dados, é possível extrair que a maioria dessas mulheres é preta ou parda. E ainda, dos dados extraídos do Estado de Rondônia, é possível extrair que a maioria das mulheres é preta ou parda. Os dados do Estado de Rondônia exemplificam essa situação, onde, de um total de 9.026 da população, sendo 89,23% com informação sobre a temática, 15,04% das mulheres nessa condição são pretas, 66,05% são pardas, somadas a 0,53% dessa população declarada como sendo amarelas, e 0,52% indígenas, totalizando 82,15% da população com informação; em contraposição a uma população de 17,85% de mulheres brancas. (Brasil, 2023).

Tamara Amoroso Gonçalves (2013, p. 50) explica como se buscou compreender cenários desiguais desta espécie, pois a construção das identidades sociais está imbricada no jogo de poder, que reforça ou embota as vivências à medida em que estão inseridas nas relações político-culturais.

A autora faz pertinente referência a Avtar Brah (apud Gonçalves, p. 50):

Nosso gênero é constituído e representado de maneira diferente segundo nossa localização dentro das relações globais de poder. Nossa inserção nessas relações globais de poder se realiza através de uma miríade de processos econômicos, políticos e ideológicos. Dentro dessas estruturas de relações sociais não existimos simplesmente como mulheres, mas como categorias diferenciadas, tais como ‘mulheres da classe trabalhadora’, ‘mulheres camponesas’ ou ‘mulheres imigrantes’. Cada descrição está referida a uma condição social específica. Vidas reais são forjadas partir de articulações complexas dessas dimensões. É agora axiomático na teoria e prática feministas que ‘mulher’ não é uma categoria unitária. Mas isso não significa que a própria categoria careça de sentido. O signo ‘mulher’ tem sua própria especificidade constituída dentro e através de configurações historicamente específicas de relações de gênero. Seu fluxo semiótico assume significados específicos em discursos de diferentes ‘feminilidades’ onde vem a simbolizar trajetórias, circunstâncias materiais e experiências culturais históricas particulares. Diferença nesse sentido é uma diferença de condições sociais.

Em estudo recente realizado no âmbito da Universidade Federal de Rondônia, Haruo Mizusaki analisou com mais especificidade a população carcerária da cidade de Ji-Paraná, Rondônia, Brasil, trazendo dados muito interessantes a respeito da clara vulnerabilidade do grupo formado pelas mulheres presas.

A respeito da origem das mulheres presas estudadas, Mizusaki (2019, p. 59) concluiu:

Os dados apontam que 62% das mulheres encarceradas nasceram em Rondônia e 38% são nativas de outros Estados. Isso significa, de acordo com nossas análises, que o estado está falhando na implementação de políticas públicas, como por exemplo, projetos voltados à educação, ao trabalho e renda, dentre outros, que possam proporcionar condições plenas de vida com dignidade para as mulheres que aqui nascem.

No que diz respeito à configuração familiar em que estão inseridas, o autor obteve a constatação de que o sistema familiar de grande parte das presas abordadas foge da estrutura convencionada socialmente, pai e mãe biológicos, ficando demonstrado que: “A carência afetiva paterna ou materna é evidente, bem como o ódio sustentado contra algum deles, parente, ou estranho ao seio familiar por serem elas vítimas de violência, de abusos sexuais, desprezo e abandono por essas pessoas” (Mizusaki, 2019, p. 61). Ainda nesse aspecto, o pesquisador constatou que no momento das entrevistas, as mulheres evitavam ou mesmo zombavam do tema familiar.

Não há dúvidas, portanto, de que as mulheres privadas de liberdade participantes do sistema carcerário brasileiro formam grupo vulnerável, o que já decorreria pura e simplesmente do fato de serem mulheres e, na sua maioria, pretas e pardas, o que justifica que recebam tratamento diferenciado para equalização da situação discriminatória por elas suportada.

É evidente a necessidade de ações afirmativas passíveis de minorar as desigualdades apontadas, mediante, por exemplo, a inserção em programas profissionais de ressocialização, promoção de visitas, acompanhamento psicossocial, atenção às peculiaridades da condição de mulher no tocante aos produtos de higiene íntima, atendimento especializado à presa gestante e puérpera, assistência social aos dependentes, dentre outros.

Nesse contexto, destaca-se que o não reconhecimento é um aspecto fundamental na perpetuação do processo de subordinação social de determinados grupos sociais, por exemplo, no caso da imagem negativa ou depreciativa que as mulheres foram induzidas a ter de si mesmas no interior de sociedades patriarcais.

Como parte desse processo de ausência de reconhecimento da sua identidade, as mulheres internalizaram uma visão da sua suposta inferioridade e esta imagem depreciada tem um papel fundamental na preservação da subordinação da mulher nas sociedades contemporâneas, impossibilitando sua emancipação efetiva, ainda que os obstáculos objetivos de sua emancipação deixassem de existir. Por óbvio, o devido reconhecimento não é uma mera cortesia que deve ser concedida às pessoas, mas uma necessidade humana vital.

A partir da análise dos ensinamentos de Nancy Fraser apud Santos (2022) no cenário observado na vivência das mulheres inseridas no sistema prisional brasileiro, cabe compreender o conceito de redistribuição e reconhecimento para a autora ora utilizada como parâmetro de investigação da situação sob estudo.

Sobre o ponto, esclarece-se que diversos são os autores estudiosos das teorias da justiça e as posições por eles defendidas acerca de ser(em) necessário(s) redistribuição e/ou reconhecimento para a concretização do ideal de justiça social, e o debate trazido por Nancy Fraser e Axel Honeth no livro “Redistribuição ou Reconhecimento? Uma controvérsia político-filosófica, de 2003” ocupa relevante espaço como norte destes estudos, embora não se negue que os temas já tivessem sido abordados anteriormente por outros teóricos.

A respeito das terminologias utilizadas em seus estudos Fraser apud Santos (2022, p. 9) afirma:

Os termos “redistribuição” e “reconhecimento”, tal como os utilizo aqui, têm uma referência filosófica e política. Filosoficamente, referem-se a paradigmas normativos desenvolvidos por teóricos políticos e filósofos morais. Politicamente, referem-se a uma série de reivindicações levantadas por atores políticos e movimentos sociais na esfera pública. Cada uma destas referências merece algum esclarecimento. Como termos filosóficos, “redistribuição e “reconhecimento” têm proveniências divergentes. “Redistribuição” vem da tradição liberal, especialmente de seu ramo anglo-americano do final do século XX. Nas décadas de 1970 e 80, essa tradição foi amplamente ampliada ao passo que filósofos “analíticos” como John Rawls e Ronald Dworkin desenvolviam teorias sofisticadas de justiça distributiva. Procurando sintetizar a ênfase liberal tradicional na liberdade individual com o igualitarismo da social-democracia, eles propuseram novas concepções de justiça que poderiam justificar a redistribuição socioeconômica.

E continua, a autora:

O termo “reconhecimento”, em contraste, vem da filosofia hegeliana, especificamente da fenomenologia da consciência. Nesta tradição, o reconhecimento designa uma relação recíproca ideal entre sujeitos, na qual cada um vê o outro como seu igual e também como separado dele. Esta relação é considerada constitutiva da subjetividade; alguém se torna um sujeito individual apenas em virtude de reconhecer e ser reconhecido por outro sujeito. […] Além disso, ao contrário da redistribuição, o reconhecimento é geralmente visto como pertencente à “ética” em oposição à “moralidade”, isto é, como promotor de fins substantivos de auto-realização e de boa vida, em oposição à “correção” da justiça processual. Ricamente elaborada por pensadores existencialistas em meados do século, a teoria do reconhecimento está atualmente passando por um renascimento, à medida que filósofos neo-hegelianos como Charles Taylor e Axel Honneth estão a torná-la a peça central das filosofias sociais normativas destinadas a reivindicar “a política da diferença” (Fraser, apud Santos, grifos do autor, 2022, p. 10).

Fraser é adepta da chamada teoria crítica, identificando seu pensamento com base na Escola de Frankfurt, linha de análise e pensamento filosófico e sociológico que surgiu na Universidade de Frankfurt, Alemanha, que investiga as relações do mundo pós-socialista com as novas dinâmicas econômicas e culturais, estabelecendo um paradigma contemporâneo de análise social a partir de uma reformulação do marxismo.

Nos estudos mencionados, há a categorização em duas espécies de injustiças e para as quais haveria uma solução ou tratamento específico a ser adotado. A primeira delas seria a injustiça econômica, que, segundo a autora: “que se radica na estrutura econômico-política da sociedade. Seus exemplos incluem a exploração […], a marginalização econômica […] e a privação” (Fraser, 2006, p. 231). Por outro lado, elenca, ainda, as ditas injustiças culturais ou simbólicas, decorrentes do domínio cultural por outra, o ocultamento identitário e cultural e desqualificação das próprias representações (Fraser, 2006).

A respeito das formas de remediar a injustiça simbólica e as lutas por redistribuição, direcionadas a reparar a injustiça econômica, Fraser (2006) questiona como se relacionam o reconhecimento cultural, na especificidade de corrigir o preconceito cultural e suas consequências, e a redistribuição econômica. A autora pondera ainda quais as consequências do tensionamento de ambas as estratégias simultaneamente.

A autora explica a problemática levantada:

Existem boas razões para se preocupar com essas interferências mútuas. Lutas de reconhecimento assumem com frequência a forma de chamar a atenção para a presumida especificidade de algum grupo – ou mesmo de criá-la performativamente – e, portanto, afirmar seu valor. Desse modo, elas tendem a promover a diferenciação do grupo. Lutas de redistribuição, em contraste, buscam com frequência abolir os arranjos econômicos que embasam a especificidade do grupo (um exemplo seriam as demandas feministas para abolir a divisão do trabalho segundo o gênero). Desse modo, elas tendem a promover a desdiferenciação do grupo. O resultado é que a política do reconhecimento e a política da redistribuição parecem ter com frequência objetivos mutuamente contraditórios. Enquanto a primeira tende a promover a diferenciação do grupo, a segunda tende a desestabilizá-la. Desse modo, os dois tipos de luta estão em tensão; um pode interferir no outro, ou mesmo agir contra o outro. (Fraser, 2006, p. 382).

O estudo mencionado aponta que as injustiças econômicas devem ser tratadas mediante redistribuição de rendas e oportunidades, enquanto as injustiças culturais ou simbólicas, devem ser remediadas com o reconhecimento. Mas o objetivo maior de Fraser (2006, p. 382) é “ligar duas problemáticas políticas atualmente dissociadas; pois é somente integrando reconhecimento e redistribuição que chegaremos a um quadro conceitual adequado às demandas de nossa era”.

Para a estudiosa, hoje, é necessária uma teoria crítica do reconhecimento, a fim de que a questão econômica, a própria situação de pobreza, retorne ao debate em compasso com o reconhecimento das identidades sociais das minorias.

Isso porque, reconhecimento e redistribuição costumam ser colocados pelos estudiosos do tema em extremos opostos, como demandas necessariamente dissociadas, em decorrência dos atritos que estas percepções poderiam gerar concretamente. Fraser (2006), entretanto, afirma que a justiça atual exige tanto redistribuição como reconhecimento, propondo que seja analisada a correlação entre ambos.

Segundo a própria autora, seu debate se inicia com o argumento de que nem a redistribuição e nem o reconhecimento, por si, bastam, atualmente, para superar a injustiça, de sorte que exigem, de alguma maneira, a conciliação e cominação de ambos. Além disso, na sequência, a autora traz levantamentos acerca de questões da filosofia moral e da teoria social que surgem quando se contempla a integração da redistribuição e do reconhecimento em uma única explicação abrangente da justiça social.

Na sua concepção, Bressiani (2011, p. 332) ao se debruçar sobre os postulados de Fraser considera alguns problemas políticos que surgem quando se procura institucionalizar este sistema integrado, nas reformas destinadas a remediar as situações de injustiça. Extrai-se dos seus estudos:

O surgimento do que optamos por chamar aqui de debate sobre redistribuição e reconhecimento tem, dessa forma, como pano de fundo o diagnóstico de Fraser de um cenário de polarização política e intelectual marcado por um quase abandono de reivindicações por redistribuição igualitária e por um aumento significativo de mobilizações sociais em torno de questões culturais ligadas ao reconhecimento e à diferença.

Há de se considerar que uma vez que os problemas sociais podem ser atribuídos a, pelo menos, duas origens, o cultural e o econômico, a solução para tais problemas deve, também, ser multifacetada, transformando tanto a representatividade cultural quanto a redistribuição econômica (Bressiani, 2011). Empregando os ensinamentos de Fraser às violações vivenciadas pelas mulheres privadas de liberdade, exsurge a necessidade de que estas pessoas sejam reconhecidas como pessoas vulneráveis, sujeitas de direitos especialmente relevantes e passíveis de tutela específica, mas que lhes seja dada a devida redistribuição, promovendo-se a justiça nos aspectos econômico, cultural e social.

Se o indivíduo passa a ser sujeito quando reconhecido por outro, indicando um ideal de reciprocidade subjetiva, somente será concretizado quando as pessoas forem vistas como iguais, mas, ao mesmo tempo, como diferentes, atrelando-se, justamente, ao conceito de igualdade material já estudado.

É importante pontuar, conforme delineado por Santos (2021, p. 48), “[…] que as desigualdades não têm sua origem apenas na ordem cultural que valoriza algumas formas de trabalho e desvaloriza outras”. Ao tratar do gênero, por exemplo, como modo bivalente de coletividade, Fraser destaca

O gênero é, em suma, um modo bivalente de coletividade. Ele contém uma face de economia política, que o insere no âmbito da redistribuição. Mas também uma face cultural-valorativa, que simultaneamente o insere no âmbito do reconhecimento. Naturalmente, as duas faces não são claramente separadas uma da outra. Elas se entrelaçam para se reforçarem entre si dialeticamente porque as normas culturais sexistas e androcêntricas estão institucionalizadas no Estado e na economia e a desvantagem econômica das mulheres restringe a “voz” das mulheres, impedindo a participação igualitária na formação da cultura, nas esferas públicas e na vida cotidiana. O resultado é um círculo vicioso de subordinação cultural e econômica. Para compensar a injustiça de gênero, portanto, é preciso mudar a economia política e a cultura (Fraser, 2006, p. 234).

A autora faz apontamentos a respeito do dilema decorrente desta circunstância, uma vez que as mulheres são injustiçadas duplamente e, portanto, devem ser duplamente resguardadas nas esferas da redistribuição e reconhecimento, mesmo que distantes conceitualmente.

Enquanto a lógica da redistribuição é acabar com esse negócio de gênero, a lógica do reconhecimento é valorizar a especificidade de gênero. Eis, então, a versão feminista do dilema da redistribuição-reconhecimento: como as feministas podem lutar ao mesmo tempo para abolir a diferenciação de gênero e para valorizar a especificidade de gênero? (Fraser, 2006, p. 235).

Igual dilema ocorre nas lutas contra o racismo, que, tal como o gênero, apresenta-se como um “[…] modo bivalente de coletividade com uma face econômico-política e uma face cultural-valorativa” (Fraser, 2006, p. 236).

É por essa compatibilização tão necessária que Fraser revela que redistribuição e reconhecimento podem caminhar paralelamente, não havendo polarização entre tais políticas. A autora ressalta que determinados grupos enfrentam problemas bidimensionais, de forma que a reparação dessa desigualdade só será possível se promovidos ambos os paradigmas (reconhecimento e redistribuição). O caso posto neste estudo é um grande exemplo disso.

Nesse sentido, pertinente a leitura que Santos faz dos estudos de Fraser:

Na interpretação de Fraser (2007), nem os teóricos da distribuição nem os do reconhecimento conseguiram êxito em juntar de forma coerente as soluções para a má distribuição com as soluções para o reconhecimento negado. Isso ocorre, para Fraser (2007), porque esses teóricos não concebem distribuição e o reconhecimento como distintos pontos de vista sobre a justiça. Portanto, conclui-se que, a seu ver, o combate aos males causados pela exploração econômica e opressão cultural deve considerar redistribuição e reconhecimento como diferentes perspectivas de justiça. E, dessa forma, é possível reunir reconhecimento e redistribuição no mesmo paradigma de justiça, sem, com isso, reduzir um a outro (Santos, 2022, p. 12).

É essencial tratar da carência das mulheres presas mediante a redistribuição, que está mais relacionada à própria luta social de classes, mas também mediante o reconhecimento. Se a maioria da população carcerária é formada por mulheres pobres e pretas/pardas, é lógico e intuitivo que as políticas públicas precisam se atentar para esse contexto. Denota-se, segundo o raciocínio construído por Fraser, que a injustiça racial, aliás, “traz em si as duas espécies de injustiça, a má distribuição e a falta de reconhecimento” (Santos, 2022, p. 331). O que dizer, então, da mulher, pobre, encarcerada, negra/parda?

Fraser (2006) propõe, portanto, duas novas perspectivas de tratamento para corrigir estas situações de injustiça que seriam separadas pelo dilema redistribuição-reconhecimento, as quais chama de afirmação e transformação, respectivamente.

Em sua proposta, a autora define os remédios mencionados

Por remédios afirmativos para a injustiça, entendo os remédios voltados para corrigir efeitos desiguais de arranjos sociais sem abalar a estrutura subjacente que os engendra. Por remédios transformativos, em contraste, entendo os remédios voltados para corrigir efeitos desiguais precisamente por meio da remodelação da estrutura gerativa subjacente. O ponto crucial do contraste é efeitos terminais vs. processos que os produzem – e não mudança gradual vs. mudança apocalíptica (Fraser, 2006, p. 237).

De forma mais detalhada, Fraser (2006, p. 237) explica os institutos

Pode-se aplicar essa distinção, primeiramente, aos remédios para a injustiça cultural. Remédios afirmativos para tais injustiças são presentemente associados ao que vou chamar “multiculturalismo mainstream”. Essa espécie de multiculturalismo propõe compensar o desrespeito por meio da revalorização das identidades grupais injustamente desvalorizadas, enquanto deixa intactos os conteúdos dessas identidades e as diferenciações grupais subjacentes a elas. Remédios transformativos, em contraste, são presentemente associados à desconstrução. Eles compensariam o desrespeito por meio da transformação da estrutura cultural-valorativa subjacente. Desestabilizando as identidades e diferenciações grupais existentes, esses remédios não somente elevariam a autoestima dos membros de grupos presentemente desrespeitados; eles transformariam o sentido do eu de todos.

Axel Honeth, de certa forma, contrapõe algumas destas ideias, defendendo um monismo social, que se fundamenta em analisar as injustiças apenas a partir do conceito de reconhecimento. Bressiani (2011, p. 346) sintetiza, de forma pertinente, o núcleo do posicionamento do autor:

[…] Honneth propõe uma teoria social específica que, diferentemente daquela elaborada por Fraser, não é dualista. Embora assuma, em determinados momentos, que a economia e a burocracia estatal funcionem de modo relativamente inquestionado, Honneth sustenta que ambas dependem de que as normas sociais nas quais se baseiam sejam imbuídas de legitimidade pelos concernidos. Além disso, em diversos momentos, Honneth defende uma versão ainda mais forte de seu monismo social, segundo a qual o capitalismo não apenas dependeria do consentimento tácito dos concernidos, mas seria também regido por diferentes princípios de reconhecimento. Nessa versão, que consiste no principal alvo das críticas de Fraser, Honneth defende que, atualmente, a divisão do trabalho e o funcionamento da economia teriam deixado de ser diretamente regulados pelo princípio da honra e teriam passado a ser regulados pelo princípio meritocrático da “produção individual”, ou pelo princípio democrático do “respeito igual”.

Bressiani (2011, p. 348) conclui, demonstrando a dicotomia de posicionamento entre os autores:

Para Honneth, então, a economia e seus mecanismos estão subordinados à interação social, motivo pelo qual eles não precisariam ser compreendidos em suas especificidades. Para Fraser, contudo, não é isso o que acontece. De acordo com ela, o funcionamento do sistema não depende diretamente de expectativas normativas, mas opera de maneira relativamente impessoal através de processos que priorizam a maximização do lucro. Nesse sentido, para Fraser, a tentativa de Honneth de entender a divisão social do trabalho e a diferença na distribuição de recursos por meio do conceito de reconhecimento fecha os olhos para a existência desses mecanismos e, por isso, não dá conta de analisar adequadamente a sociedade capitalista atual.

O impasse existente entre as ideias de Fraser e Honneth acerca da redistribuição e do reconhecimento traz a problemática acerca de ser possível afirmar, ou não, que o desenvolvimento social está inteiramente sujeito às relações de reconhecimento, ou se é necessário distinguir, ainda que de forma relativa, a economia de outras esferas sociais que são diretamente reguladas por normas.

Apesar dos pontos de discordância, ambos os autores, por mais que ofereçam respostas diferentes a essa questão, rejeitam a ideia de que as injustiças possam ser plenamente compreendidas apenas pela tese de colonização do mundo da vida pelo sistema, destacando a importância de considerar também as interações sociais na análise das relações de poder existentes. Além disso, tanto Fraser quanto Honneth, seguindo abordagens distintas, argumentam que o sistema não é neutro nem terminantemente autônomo. Ocorre que, para os fins almejados por este trabalho, é nos estudos de Fraser que o ideal de justiça correspondente à realidade contemporânea encontra respaldo.

5. Conclusão

Extrai-se das lições apresentadas ao longo desta investigação que apenas a aplicação de ações afirmativas, nos casos de injustiças bivalentes, como demonstrado, não será suficiente para corrigir a complexidade e a profundidade destas situações a longo prazo. Muitas vezes, tratar-se-ão de medidas paliativas, sendo necessário, também, o tratamento por meio de ações transformativas, que visem a efetivamente modificar a estrutura cultural-valorativa que permeia as injustiças encontradas.

A regulamentação e a implementação de políticas de ações afirmativas e transformativas, à luz do que pontuou Fraser, portanto, ainda que meramente da forma como já prevista e positivada nas normas internas, tratados internacionais e documentos norteadores da atenção à mulher presa, possibilitam que estas duas necessidades, reconhecimento e redistribuição, sejam acolhidas e, ao menos, fomentadas, de forma a promover às mulheres encarceradas a efetividade da igualdade prevista nos tratados internacionais de direitos humanos e na própria Constituição Federal.

Partindo da premissa de que os Tratados Internacionais de Direitos Humanos Firmados pelo Brasil, a Constituição Federal e a Lei de Execuções Penais preveem que devem ser garantidos às pessoas presas os direitos humanos e fundamentais, especialmente o núcleo duro da dignidade humana, exsurge a necessidade de que sejam adotadas medidas à promoção daqueles direitos e garantias necessários a concretização destas previsões.

Embora a Lei de Execuções Penais preveja como principais finalidades da execução penal a efetivação da condenação criminal e a oferta de condições para a harmônica integração social da condenada e da internada, disciplinando, ainda, que será oferecida assistência social e à saúde, esta não é a realidade atual da maior parte do sistema carcerário brasileiro. Essa triste realidade foi constatada por meio das informações constantes das estatísticas coletadas pelo Departamento Nacional Penitenciário.

Conforme demonstrado, a prestação dos serviços de atendimento à saúde psíquica e às necessidades sociais às presas abordadas para esta pesquisa não vem ocorrendo de forma adequada às especificidades características deste grupo vulnerável, demandando a implementação de medidas aptas a minorarem esta condição. Através de uma compreensão das concepções de redistribuição e reconhecimento, foi observada a necessidade de adoção de ações afirmativas e transformativas que possibilitem alterar o cenário de injustiça contra a mulher encarcerada.

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