ECONOMIA
A verdade sobre a revogação da INRFB nº 2.219/2024
A Receita Federal impôs uma ampla obrigação de informação financeira. A revogação ocorreu pela reação social contra a falsa taxação do PIX, mas e o sigilo bancário?
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Resumo:
– O governo revogou a Instrução Normativa da Receita Federal devido à veiculação de fake news sobre a taxação do PIX.
– A IN nº 2.219/2024 obrigava instituições financeiras a prestarem informações detalhadas sobre movimentações financeiras, violando o sigilo bancário.
– A revogação da IN ocorreu após reação negativa da população e devido ao perigo de desgaste da imagem do Chefe do Executivo.
A veiculação de fake news sobre a taxação do PIX foi o motivo alegado pelo governo para revogar a Instrução Normativa da Receita Federal em epígrafe.
Concorda com essa motivação o meu preclaro amigo, Everardo Maciel, ex-Secretário da Receita Federal, que veiculou um texto intitulado “Notas sobre uma Pixotada”.
Com a devida vênia, penso que não foi bem assim. Examinemos.
A IN da SRF nº 2.219, de 17 de dezembro de 2024, contém 32 artigos e inúmeros parágrafos, incisos e alíneas, redigidos de forma bastante detalhista e com inusitado sadismo burocrático, muito ao gosto das normas elaboradas pelos burocratas do governo. A título de exemplo, a regulamentação do IBS/CBS pela Lei Complementar nº 135/2025 contém cerca de 1.000 normas, considerando-se os seus 542 artigos e infindáveis parágrafos, incisos e alíneas, que criam um verdadeiro inferno fiscal, implantando o maior imposto incidente sobre o consumo do mundo.
A Instrução Normativa em comento obriga as instituições financeiras em geral e demais pessoas jurídicas — entre elas, aquelas que operam com planos e benefícios de previdência complementar e empresas que tenham como principal ou acessória a atividade de captação e intermediação de recursos financeiros próprios ou de terceiros — a prestar informações de dados bancários (art. 2º).
Essas informações devem ser prestadas à SRF por meio da e-Financeira, dentro do prazo regulamentar, sob pena de pesadas multas previstas no art. 30 da Lei nº 10.637/2002 e nos arts. 35 e 57 da MP nº 2.158-35/2001 (arts. 4º e 5º).
As informações a serem prestadas compreendem a identificação dos titulares das operações financeiras e comitentes finais, devendo incluir:
I – nome, nacionalidade, residência fiscal, endereço e número das contas ou equivalentes, individualizados por conta do contrato na instituição declarante;
II – número do CPF/CNPJ;
III – número de Identificação Fiscal – NIF no exterior, caso tenha sido adotado pelo país de residência fiscal;
IV- nome empresarial;
V – saldos e montantes globais mensalmente movimentados;
VI – moeda utilizada; e
VII – demais informações cadastrais (art. 10 cc art. 12).
As entidades financeiras e outras equiparadas deverão informar as operações financeiras quando o montante global movimentado em cada mês for superior a:
I – R$5.000 (cinco mil reais) se for pessoa física; e
II – R$15.000 (quinze mil reais) em caso de pessoa jurídica (art. 15).
Mas não é só. Não se trata apenas de informar as movimentações de recursos financeiros por meios eletrônicos, como PIX ou cartões de crédito/débito, mas também quando o saldo bancário em cada mês for superior aos limites previstos nos incisos I e II mencionados, isto é, R$ 5.000,00 e R$ 15.000,00, respectivamente, para pessoas físicas e jurídicas.
Trata-se de uma verdadeira devassa generalizada, bisbilhotando indevidamente toda a vida financeira das pessoas sob o pretexto de prevenir fraudes e sonegação de impostos. Com um batalhão de agentes fiscais experientes e competentes na Administração Tributária da União — integrada por servidores efetivos de carreira específica, com recursos prioritários para o desempenho de suas atividades (art. 37, XXIII, da CF) —, certamente haveria outros meios idôneos para prevenir a sonegação fiscal, sem a necessidade de devassar, de forma genérica, a vida financeira de milhões de contribuintes.
Houve reação negativa da população, inclusive de vítimas de golpistas que acenavam com a necessidade de pagar uma suposta taxa do PIX, juntando boleto de pagamento com o sinal da SRF nas mensagens disparadas por meio de aplicativos ou e-mails aos incautos correntistas.
A confusão se instaurou de tal forma que o governo determinou a revogação dessa IN, o que ocorreu em 15 de janeiro de 2025.
Deixando de lado as paixões que dominaram a abordagem desse assunto e os equívocos em torno da suposta taxação do PIX, temos para nós que a IN nº 2.219/2024 violava flagrantemente o sigilo bancário.
Nas “Perguntas e Respostas”, a SRF informava que a determinação contida na IN nº 2.219/2024 tinha amparo na Lei Complementar nº 105, de 10 de janeiro de 2001.
Na verdade, não tinha. Pelo contrário, violava ostensivamente o seu art. 6º, que assim prescreve:
Art. 6º As autoridades e os agentes fiscais tributários da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios somente poderão examinar documentos, livros e registros de instituições financeiras, inclusive os referentes a contas de depósitos e aplicações financeiras, quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Parágrafo único. O resultado dos exames, as informações e os documentos a que se refere este artigo serão conservados em sigilo, observada a legislação tributária.
Como se verifica, as autoridades administrativas e agentes do fisco somente podem ter acesso a documentos, livros e registros das instituições financeiras quando houver processo administrativo instaurado ou procedimento fiscal em curso, e tais exames sejam considerados indispensáveis pela autoridade administrativa competente.
Esse art. 6º, em que se fundou a IN nº 2.219/2024, pressupõe um caso concreto e individualizado. Sem a existência de processo ou procedimento fiscal contra determinado contribuinte, não é possível acessar seus dados bancários diretamente ou por meio de informações obrigatórias a serem prestadas pelas instituições financeiras.
A interpretação desse artigo pelo STF sofreu oscilações ao longo do tempo. Em 2017, a Corte Suprema, em sede de repercussão geral (Tema 225), fixou a seguinte tese:
O art. 6º da Lei Complementar nº 105/01 não ofende o direito ao sigilo bancário, pois realiza igualdade em relação aos cidadãos, por meio do princípio da capacidade contributiva, bem como estabelece requisitos objetivos e o traslado do dever de sigilo da esfera bancária para a fiscal
(RE nº 601.314/RG-SP, Rel. Min. Edson Fachin, DJe de 16-9-2017).
Duas são as condições impostas pelo STF:
- a) observância de requisitos objetivos; e
- b) transferência do sigilo da instituição bancária para o fisco.
Esse julgado do Pretório Excelso Nacional não autoriza requisições de informações bancárias de forma genérica e abstrata, como fez a malsinada IN revogada, mas exige requisitos objetivos, quais sejam: a existência de processo administrativo ou de procedimento fiscal contra determinado contribuinte-correntista. Ainda assim, essa requisição deve ser considerada indispensável pela autoridade administrativa competente. Quanto ao traslado do sigilo, é difícil evitar o seu rompimento se os dados bancários extraídos forem utilizados em um processo administrativo de natureza pública.
Em que pese o legítimo interesse do fisco em evitar a ocorrência de sonegação de impostos, nada autoriza uma norma subalterna da SRF a requisitar informações bancárias por atacado, ofendendo, às escâncaras, o direito do cidadão assegurado pelo art. 5º, inciso XI, da CF.
Tanto a jurisprudência do STJ quanto a do STF considera o sigilo bancário uma espécie do direito à privacidade, consagrado no referido inciso constitucional.
A revogação desse instrumento normativo da SRF, que tanta confusão gerou no seio da sociedade durante os poucos dias de sua vigência, ocorreu em boa hora.
Cedo ou tarde, essa INRFB nº 2.219/2024 seria contestada no Judiciário.
Entretanto, não foi a eiva de inconstitucionalidade que levou o governo a revogar essa extravagante medida, pois a afronta à Constituição já se incorporou à rotina governamental, muitas vezes com o apoio do Judiciário.
A verdadeira razão foi o perigo de desgaste da impoluta imagem do Chefe do Executivo diante da reação em massa da sociedade leiga, que se deixou levar pela falsa notícia de que o PIX ensejaria cobrança de taxa — algo juridicamente impossível, pois a Constituição só permite a taxação da movimentação financeira por meio do IOF.
O ilustre Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, defensor perpétuo da boa imagem de seu Chefe, saiu apressadamente a campo em busca de um bode expiatório. Encontrou-o na pessoa do ex-presidente Jair Bolsonaro, que seria, com toda certeza, o responsável pela disseminação da falsa notícia sobre a taxação do PIX, como é responsável por tudo de ruim que acontece no país, na ótica do governo. O ex-presidente prometeu processar o Ministro Haddad, que não deu a mínima, pois integra um governo à prova de qualquer investigação.
Ato contínuo, o ilustre Ministro da Fazenda anunciou, em alto e bom som, a edição de uma medida provisória — pasmem os céus! — proibindo a taxação do PIX. Uma medida tão descabida quanto inusitada, que desconhece o secular princípio da tipicidade cerrada, vigente tanto no direito penal quanto no direito tributário: nullum crimen sine lege, nullum tributum sine lege. Não é preciso vedar a criminalização de determinadas condutas, assim como não é necessário proibir a tributação de determinados bens, serviços ou patrimônios. A Constituição já estabelece os casos de imunidade tributária.
O que parecia ser um desabafo do Ministro Haddad acabou se concretizando. O governo federal, em um gesto mais veloz que um raio, editou a Medida Provisória nº 1.288, de 16 de janeiro de 2025, que reforça a proibição de cobrança de qualquer imposto, taxa ou contribuição sobre transações realizadas via PIX. Se amanhã a mídia veicular notícia sobre a taxação da transferência bancária via TED, com certeza, outra medida provisória será baixada para proibir a cobrança de qualquer tributo sobre essa transferência eletrônica.
O Brasil, de fato, é um país singular, e Brasília, uma ilha de fantasias.
Sobre o autor
![Imagem do autor Kiyoshi Harada](https://t.jus.com.br/VHtQbpEsFHLJPwPw3JaoamxGJEc=/80x80/smart/assets.jus.com.br/system/profile_image/1109/93b99cdba42f594d87e74e8e9af6ed74.jpg)
Jurista, com 26 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.