Educação & Cultura
Efeito Cassandra: ignorando previsões e abraçando ditaduras
O que impede sociedades de ouvir alertas sobre tragédias políticas? O Efeito Cassandra explica como visões claras do futuro são ignoradas, levando nações a ditaduras e crises irreparáveis

Resumo:
- Na mitologia grega, Cassandra era uma profetisa amaldiçoada com o dom da previsão, mas incapaz de convencer os outros de suas visões do futuro.
- Exemplos históricos, como a ascensão do Nazismo na Alemanha e a implantação do regime militar no Brasil, ilustram o “Efeito Cassandra”, onde alertas foram ignorados, levando a tragédias.
- A influência do Mito e a incapacidade de persuasão dos visionários contribuíram para a aceitação de ditadores e regimes autoritários, mostrando como a cegueira mental pode levar a desastres.
Resumo : No mundo grego antigo, além das crenças que depositavam em vários deuses e em como eles interferiam nas questões humanas como no amor, sorte ou azar nas batalhas e até mesmo nos fenômenos da natureza, havia ainda pessoas nas quais acreditavam poder prever o futuro. Esses profetas ou sacerdotes eram consultados por governantes e altos oficias antes de se lançarem a empreitadas que envolviam riscos elevados, como entrar ou não em guerra contra nações inimigas ou selar a paz a fim de evitar perdas de territórios ou mortes de seus cidadãos. Na mitologia grega, a mais famosa profetisa é Cassandra, cujas previsões se mostraram infalíveis, mas tida como louca, davam às suas visões do futuro pouco crédito, culminando em tragédias, por vezes, irreparáveis. Na história da política, mundial e brasileira, temos alguns exemplos bastante claros do que chamaremos de Efeito Cassandra, nos quais algumas tragédias foram anunciadas por personagens dotados de clareza de visão, mas que ainda assim foram ignorados, arrastando nações inteiras à beira de precipícios e a períodos sombrios.
Palavras-chave: Cassandra, Ditadura, Democracia, Mito, Persuasão.
INTRODUÇÃO
Os gregos nos legaram muito de sua cultura, além da rudimentar democracia ateniense, que hoje, mais sofisticada, aparelha os sistemas políticos de muitos países. Além dos aspectos culturais e políticos, suas mitologias também nos ensinam ou servem como instrumentos para compreendermos, alegoricamente, nossas realidades contemporâneas. Dentre os muitos mitos gregos que permeiam escritos como a Ilíada e a Odisseia, legados à posteridade pelo poeta épico Homero, existe o mito de Cassandra, sobre o qual nos debruçaremos no intuito de compreendê-lo e de explica-lo, a fim de entendermos como se relaciona com alguns momentos críticos que se desdobraram em tentativas, deposições de governos e, por vezes, em implantações de regimes totalitários ou ditatoriais.
Para compreendermos como tais situações se deram no decorrer da história e como ainda podem, perigosamente, ocorrer, estudaremos, além de Cassandra, também o Mito como fenômeno que surge em tempos de crises, reais ou fabricadas, como uma espécie de última tábua de salvação sem a qual a sociedade, ardilosamente enganada, acredita que sucumbirá.
Buscaremos entender as dificuldades envolvidas nas identificações nesses cenários que tendem a se repetir de tempos em tempos, propelidos por agitações sociais quase sempre insufladas por poderes que se ocultam nos bastidores e operam suas marionetes como hábeis ventríloquos.
Veremos como no curso da história, alguns personagens, tal como a mítica Cassandra, anteviram tragédias e, mesmo as tendo anunciado aos que poderiam tê-las evitado, foram ignorados por diversos fatores, mas sendo o principal deles, talvez, a inabilidade ou incapacidade de persuadir ou convencer de que vinha tempestade pela frente.
SOB A MALDIÇÃO DE CASSANDRA
Inicialmente, precisamos entender quem foi Cassandra e o que a levou ser amaldiçoada pelo deus Apolo. Ela era, segundo consta, a mais bela das filhas do Rei de Tróia, Príamo, com sua esposa, Hécuba e, a tradição grega que chegou até nós através dos poemas épicos de Homero atribui a Cassandra o dom da adivinhação, ou seja, de fazer previsões, muitas vezes de eventos terríveis, sendo considerada, portanto, uma profetiza:
Heleno, filho de Príamo e de Hécuba, irmão gêmeo de Cassandra, ele adquiriu o dom da profecia junto com ela, durante uma noite que passaram no templo de Apolo (HOMERO, pag. 608/609, sec. VIII a. C).
Os textos de Homero, apesar de esclarecer que Cassandra recebera do deus Apolo o dom da profecia, não expõe com a mesma clareza a maldição lançada sobre ela, mas ainda que tenha sido pela tradição oral ou por escritos que se perderam na névoa do tempo, a crença é de que ela teria se recusado a dormir com Apolo, tendo sido por ele amaldiçoada com a incapacidade de convencer a quem quer que fosse acerca de suas visões, senão vejamos:
Por que evocar Apolo com lamentos? – é a pergunta do Coro. Não é uma resposta que vem fácil – já que por muito tempo durante esta cena Cassandra ignora a presença do Coro –, mas que enfim chega. O deus desejou a jovem e, em troca de seus favores amorosos, ofereceu-lhe o dom divinatório. A jovem enganou o deus e, feita adivinha, não cumpriu a sua parte no trato. Como não se pode trapacear os deuses impunemente, o castigo veio certo: adivinhar, mas nunca persuadir (PAOLI, pag. 9, 2019).
Tendo bem compreendido o que encerra o mito de Cassandra – saber o que está por vir, mas ser incapaz de se fazer crível – analisemos doravante como alguns personagens históricos, que nada têm de míticos, parecem terem estado, em certos momentos críticos, sob a nefasta influência do mesmo mal do qual padecia a bela Princesa e filha do Rei Príamo.
Comecemos nossa análise pela maior tragédia humana da história: a ascensão do Nazismo na Alemanha. Naquele cadinho fervilhante de desespero e ideologias contrárias, em cuja chama se nutria das duras sanções impostas aos alemães pelo Tratado de Versalhes, agravado pela crise financeira de 1929, emergia um grupo de radicais: os Nazistas. A então novel ideologia acusava certos grupos pela derrota alemã na Primeira Guerra Mundial e pela aceitação silenciosa dos termos tidos por eles como vis do Tratado de Versalhes, eventos que mergulharam a sociedade alemã numa miséria angustiante. Apesar de todas as mazelas que eram suportadas pelo povo alemão, alguns tiveram clareza de visão e perceberam desde logo que o grupo que ascendia e ganhava cada vez mais adeptos estava longe de ser a melhor opção para solucionar os problemas que enfrentavam. Mas para o desespero daqueles poucos visionários, seus discursos de ódio e habilidade de apontar culpados pelo caos, ao mesmo tempo em que ofereciam soluções simplistas para os males que afligiam a sociedade, rapidamente conquistou corações e mentes.
Alguns daqueles poucos que perceberam que o caminho escolhido pela Alemanha a levaria diretamente a um precipício foram os irmãos Erika e Klaus Mann. Do brilhante trabalho de Raissa Alonso, intitulado Ecos da Resistência ao Nazismo: Movimento dos Alemães Livres e Associação Democrática. São Paulo (1933 – 1950) depreende-se:
Em 1933, os dois irmãos Mann fundaram um cabaré em Munique chamado Die Pfeffermuhle, para o qual Erika escreveu a maior parte do material, cujo conteúdo era explicitamente antifascista. Sua denúncia pela leitura de poemas antibélicos durante este seu tempo em Berlim, culminou com o fechamento do cabaré que funcionou apenas por três meses antes dos nazistas o fecharem (ALONSO, pag. 47, 2019).
E prossegue:
Erika e Klaus Mann escreveram em A Outra Alemanha um manifesto em defesa da existência de uma Alemanha não subjugada por Hitler. A primeira parte do livro se dedica a uma análise das causas políticas que teriam levado à queda da República de Weimar, bem como uma defesa dessa democracia imperfeita. (ALONSO, pag. 49, 2019).
Como sabemos hoje, os avisos dos irmãos Mann e de outros que tentaram alertar a sociedade alemã sobre os riscos oferecidos pelas doutrinas nazistas não foram ouvidos. O povo já havia se deixado encantar pelo mito de salvador da pátria encarnado por Adolf Hitler com apoio massivo da propaganda e de grande parcela dos industriais alemães que o apoiaram tendo em vistas promessas de contratos com o regime vindouro.
Sem mais atalhos, penetremos diretamente no estômago na fera e passemos a analisar o que o próprio Adolf Hitler escreveu, como se profetizasse o futuro da Alemanha, em sua obra Mein Kampf (Minha Luta). Antissemita convicto, Hitler depositava nos ombros dos judeus seu ódio e desprezo por aquele povo, além de culpa-los pelo caos no qual o país mergulhara:
Esperava-se conquistar as simpatias desses pestilentos através de lisonjas, do reconhecimento do “valor” da imprensa, de sua “significação”, da sua “missão educadora” e outras imbecilidades. Os judeus, porém, recebiam essas demonstrações com um sorriso de raposa e retribuíam com um astucioso agradecimento. A razão para essa ignominiosa renúncia do Governo não estava no desconhecimento do perigo, mas em uma covardia que gritava aos céus e na indecisão que, em consequência disso, caracterizava todas as resoluções tomadas. Ninguém tinha a coragem de empregar meios radicais, ao contrário disso, todos porfiavam em prescrever receitas homeopáticas e, em vez de dar-se um golpe certeiro na víbora, aumentava-se a sua capacidade de envenenar (HITLER, pag. 231, 1925).
Hoje é fácil entender o que Hitler pretendeu expressar com “golpe certeiro na víbora” (como se referia ao povo judeu), mas à época a mensagem não pareceu clara o suficiente, ou, caso tenha sido, o povo alemão ignorou os avisos, afinal, Mein Kampf , quando lido detidamente, revela-nos os planos de governo, de guerra, retomadas de territórios perdidos no Tratado de Versalhes, rearmamento das Forças Armadas, enfim, é quase um guia que foi seguido metodicamente pelos nazistas durante seu regime de terror. Nesse sentido, podemos concluir que Hitler, em certa medida, sofria do Efeito Cassandra, pois mesmo tendo exposto seus planos tão às claras em sua obra, foi ignorado. Mas sejamos justos, ninguém que tivesse lido Mein Kampf antes de 1933 o teria levado a sério, pois soava como delírios emergidos da frustração e do ódio, afinal de contas, fora escrito na prisão de Landsberg, presídio militar onde Hitler cumpria pena após malfada tentativa de tomada do poder, todavia, os eventos imprevisíveis da história convergiram para possibilitar que todos aqueles delírios aparentemente impossíveis acabassem se concretizando.
Analisadas as circunstâncias havidas na Alemanha nazista, abordaremos algumas situações nas quais a maldição de Cassandra parece ter agido no Brasil.
Na década de 1950, o cenário político brasileiro era turbulento, tendo se agravado com o suicídio de Getúlio Vargas em 24 de agosto de 1954, abrindo uma disputa insana pela presidência, como se observa:
Eleito em 3 de outubro de 1955, com 35% dos votos, Juscelino Kubitschek não teve vida fácil até a data de sua posse, marcada para o último dia de janeiro do ano seguinte. A UDN, cujo candidato Juarez Távora ficou em segundo lugar na disputa, questionou a eleição de JK e, mais uma vez, tentou na justiça barrar a posse do presidente eleito. Os Udenistas chegaram a pregar um golpe militar, para impedir a posse de JK. E coube justamente a um militar, o marechal Henrique Teixeira Lott, as ações que garantiram a manutenção da legalidade e o respeito às regras. Tendo João Goulart como vice-presidente eleito, o governo de JK ficou marcado pelo desenvolvimento do país em diversos setores (CARLOS e HERÉDIA, 2024).
Dentre os personagens desse enredo o que nos interessa aqui é o Marechal Henrique Teixeira Lott (1894 – 1984), a que o escritor Wagner William chamou de O Soldado Absoluto em sua obra de mesmo nome.
Lott foi um militar legalista e Ministro da Guerra de 1955 à 1959. Ele não apenas garantiu a posse de Juscelino Kubitschek e de seu vice, João Goulart, como também sugeriu ao presidente recém-empossado a exoneração de alguns militares, a fim de evitar tentativa de golpe no futuro, contudo, seus clamores não surtiram efeito. Lott, além de muito experiente, era conhecedor dos perfis de diversos Oficiais que tinham sido seus alunos durante os anos de formação militar. Lott conhecia, em particular, Humberto Castello Branco, que era visto pelo Marechal como alguém vaidoso em demasia e intelectualmente pretencioso, características que usava para encobertar, na visão de Lott, seu complexo de inferioridade. Pois bem, a análise de Lott não poderia ter sido mais acurada, visto que menos de uma década depois do Marechal ter impedido o golpe, Castello Branco viria se torar o primeiro presidente militar do regime que perdurou por mais de vinte anos.
A fim de não tornar este trabalho demasiado extenso e enfadonho com uma infinidade de exemplos, como os alertas dos irmãos Mann e os delírios contidos no Mein Kampf sobre a ascensão do nazismo na Alemanha, bem como os avisos ignorados do Marechal Lott acerca da existência de militares com tendências golpistas nas cúpulas das Forças Armadas brasileiras que fatalmente culminaria na implantação de um regime militar no Brasil, ficaremos limitados somente aos apresentados até aqui, visto que o objetivo não é o estudo amiudado desses períodos, pois disso os historiadores já se encarregaram de fazer e fizeram muito bem. Nosso objetivo aqui é o de compreender como, no curso da história, parece haver pessoas com visões claras de tragédias vindouras, mas que mesmo se esforçando para emitir alertas dos riscos, são solenemente ignoradas, até que se torne tarde demais. Essas pessoas parecem sofrer o Efeito Cassandra, pois mesmo que cenários catastróficos se desenhem nitidamente em suas mentes de formas lógicas e em perfeitos alinhamentos de eventos concatenados, não são capazes de fazer com que os demais enxerguem os acontecimentos que se avizinham como eles enxergam, ou seja, como cadeias de pequenos eventos, aparentemente sem relação uns com os outros e insignificantes, mas que, quando somados, tornam-se trágicos e, por vezes, fatais. Em outras palavras, têm o dom da previsão, mas são desprovidos do dom da persuasão.
SOB A INFLUÊNCIA DO MITO
Não nos assustemos, pois não se pretende aqui afirmar que alguém posa prever o futuro ou que de fato pese sobre quem quer que seja algum tipo de maldição de alguma deidade da mitologia grega que possa remover a capacidade de convencimento. Não é disso que se trata. O Efeito Cassandra aqui é apenas simbólico e ilustrativo, tendo o condão somente de explicar eventos históricos nos quais, caso determinadas pessoas tivessem sido ouvidas e seus prognósticos tivessem recebido devida atenção, vários males poderiam ter sido evitados.
Dito isso, devemos então nos perguntar o que, afinal de contas, impede-nos de enxergar as coisas como são e de fazermos projeções dos desdobramentos nefastos a que certas escolhas podem conduzir. Um dos principais fatores que promove essa cegueira mental, por assim dizer, é a influência do Mito, ou seja, é a crença de que alguém ou algum grupo em particular seja dotado dos predicados necessários para nos tirar de situações indesejadas ou, pelo menos, punir os responsáveis por nossas mazelas.
Ocorre, entretanto, que essa ideia de Mito, na verdade, é sempre fabricada, embalada e vendida bem ao gosto da sociedade. Isso requer que expliquemos que aquelas pessoas que enxergam os Mitos como de fato são, ou seja, produtos dos nossos anseios, mas que em nada podem nos ajudar, na verdade não estão sempre sob o Efeito Cassandra, ao passo que os demais é que se acham tão imersos na imagem e nas frases de impacto proferidas pelo Mito, que não conseguem ouvir o que pessoas sensatas tentam lhes dizer, não importando o quão alto possam gritar; nunca se farão ouvir.
Assim começam nossos flertes com ditaduras e figuras autoritárias, uma combinação de condições sociais instáveis e pessoas sedentas por assumir o poder. Isso pode ser descrito como uma tempestade perfeita, na qual todas as condições climáticas convergem para a formação de um sistema que só pode resultar em tragédia:
Muitos antropólogos afirmaram que o mito é, no final das contas, um fenômeno muito simples – para o qual se dispensam complicadas explicações psicológicas ou filosóficas. O mito é a própria simplicidade; nada mais é que a sancta simplicitas da raça humana. Não é produto de reflexão ou pensamento nem podemos considerar satisfatório descrevê-lo como produto da imaginação humana. A imaginação, por si só, não basta para produzir todas as incoerências, todos os fantásticos e bizarros elementos que o adornam. Será antes a ingenuidade primitiva do homem a responsável por esses absurdos e contradições. Sem essa ingenuidade ou “estupidez primeva” não existiria mito (CASSIRER, pag. 21, 1946).
Infere-se do fragmento acima que para uma figura mítica ou messiânica ter espaço para surgir e se desenvolver, as condições de instabilidade e descontentamento já mencionadas precisam se fazer presentes, além, é claro, é preciso certa dose de ingenuidade do receptor e de simplicidade do emissor, visto que ideias simplistas embutidas em frases prontas tendem a se alastrar pelas massas como fogo em mato seco. Essa percepção foi capturada por ninguém menos que o próprio Hitler, que confiou nessa triste tendência das massas para a construção de seu Mito de líder supremo do povo alemão, conforme confirmado em sua obra:
Releva notar ainda que as massas humanas são naturalmente preguiçosas, e, por isso, inclinadas a conservar os seus antigos hábitos. Raramente, por impulso próprio, procuram ler qualquer coisa que não corresponda às idéias que já possuem ou que não encerre aquilo que esperam encontrar. Assim sendo, um escrito que visa um determinado fim, na maioria dos casos, só é lido por aqueles que já possuem a mesma orientação do autor. Mais eficiente é um boletim ou um folheto. Justamente por serem curtos, de leitura fácil, podem despertar a atenção do antagonista, durante um momento. Grandes possibilidades possui a imagem sob todas as suas formas, desde as mais simples até ao cinema. Nesse caso, os indivíduos não são obrigados a um trabalho mental (HITLER, pag. 435, 1925).
O poder que pode ser exercido pelo Mito criado é incalculável e atua em diversos níveis, desde seu circulo mais interno de seguidores até o mais simples dos homens. Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda de Hitler, enxergou essa condição de forma cristalina, e não vacilou em fazer uso dela com sombria maestria, senão vejamos:
Na realidade, semelhante declaração pessoal de lealdade por parte de dirigentes importantes nada tinha de excepcional depois da refundação do NSDAP; Hitler, afinal de contas, concebera a organização como um “partido do Führer”, e seu séquito muito se empenhava em criar um verdadeiro “mito do Führer” em torno de sua pessoa (LONGERICH, pag. 80, 2010).
E prossegue:
Quanto mais Goebbels admirava Hitler e a ele se sujeitava, tanto mais sua dependência pessoal o transformava no ponto de referência central da sua ação política: apenas num momento relativamente tardio, e de maneira hesitante e com sucesso duvidoso, foi que ele impôs o “culto do Führer” à propaganda nazista, sendo que o fez tendo em conta principalmente considerações táticas. Só nas condições da ditadura, no sistema fechado de uma opinião pública controlada, conseguiu estabelecer com solidez o mito do Führer, a ideia de uma fusão substancial do povo com o líder popular como elemento central da propaganda. (LONGERICH, pag. 212. / 213, 2010).
Depreende-se disso que, em matéria de política, o Efeito Cassandra se manifesta como uma derivação ou consequência da influência do Mito. É inegável que nos exemplos abordados aqui, quais sejam, a ascensão do nazismo na Alemanha dos anos 1930 e a aceitação do regime militar no Brasil por grande parcela da sociedade em 1964 se deram, dentre outros fatores particulares de cada nação, pelo antissemitismo e pela aversão ao comunismo, além da crença produzida no imaginário popular de que os regimes à época empossados nos poderes detinham todas as respostas e soluções para os problemas de ambos os países analisados.
CONCLUSÃO
O esforço despendido nesse trabalho buscou compreender os motivos de tanta gente, nações inteiras, desprezar alertas que parecem tão evidentes sobre indivíduos ou grupos de notório caráter ditatorial.
O Efeito Cassandra, por si apenas, não parece dar conta de tanta tragédia, pois mesmo que pessoas de visão acurada enxerguem os cenários vindouros com total clareza, tendo condições de projetar eventos futuros, esses visionários, ainda que desprovidos do dom da oratória para produzir discursos capazes de persuadir os demais acerca de suas acertadas previsões, é quase inconcebível que outras pessoas não o fizessem em seus lugares, emprestando a eles suas vozes no intuito de evitar que mal lance seus tentáculos sobre os povos e sobre a humanidade, como nos funestos eventos abordados neste trabalho.
Disso concluímos que eventos como a ascensão do nazismo na Alemanha e a implantação do regime militar no Brasil apenas se tornam possíveis pela soma desses dois fatores: o Efeito Cassandra, caracterizado pela incapacidade de persuasão daqueles que, mesmo em tempo hábil, tenham se dado conta do fatídico porvir, em concurso com a cuidadosa construção do Mito por parte daqueles que anseiam o poder a qualquer custo, promovendo, sobretudo por meio da propaganda de massa, desinformação, que por seu turno conduz à cegueira mental parcela significativa da sociedade, eliminando qualquer chance de articulação de resistência ao regime emergente, até que reagir se torne perigoso demais.
REFERÊNCIAS
. ALONSO Raissa. Ecos da Resistência ao Nazismo: Movimento dos Alemães Livres e Associação Democrática. São Paulo (1933 – 1950), 2019, disponível em:
. CAMPOS, Alexandre e HERÉDIA Leila. Episódio 15 – A crise política após o suicídio de Vargas e o governo JK, Senado Federal, 2024, disponível em:
. CASSIRER Ernst. O mito do Estado. Tradução de Tomás Rosa Bueno, Editora F-QM Editores Associados, 2001, ISBN 85-7594-014-7;
. HITLER, Adolf. Mein Kampf. Versão digital InLivros.net, 1925, disponível em:
https://ia600804.us.archive.org/15/items/meinkampf_minha_luta/por.pdf
. HOMERO. Ilíada e Odisseia. Tradução de Carlos Alberto Nunes, Editora Nova Fronteira, ISBN 9788520924075, 2015;
. LONGERICH Peter. Joseph Goebbels: uma biografia. Editora Objetiva LTDA, 2010 ISBN 978-85-390-0570-3;
. PAOLI, Beatriz. Cassandra em três tempos: bela, adivinha, trágica. RÓNAI: Revista de Estudos Clássicos e Tradutórios – 2019 V.7 N.1 – pp. 4-17 – UFJF – JUIZ DE FORA;
. WILLIAM, Wagner. O Soldado Absoluto – Uma biografia do marechal Henrique Lott. Editora Record, 2005, ISBN 978-85-01-06781-4.
Cassandra Effect: Ignoring Predictions and Embracing Dictatorships
ABSTRACT: In the ancient Greek world, in addition to the beliefs they had in various gods and how they interfered in human affairs, such as love, good or bad luck in battles, and even natural phenomena, there were also people who believed they could predict the future. These prophets or priests were consulted by rulers and high-ranking officials before embarking on ventures that involved high risks, such as whether or not to go to war with enemy nations or to make peace in order to avoid the loss of territories or the deaths of their citizens. In Greek mythology, the most famous prophetess is Cassandra, whose predictions proved to be infallible, but who was considered crazy and gave little credit to her visions of the future, culminating in sometimes irreparable tragedies. In the history of politics, both globally and in Brazil, we have some very clear examples of what we will call the Cassandra Effect, in which some tragedies were announced by characters with clear vision, but who were still ignored, dragging entire nations to the brink of precipices and into dark periods.