Judiciário
A prisão civil avoenga como consequência da imposição de pagamento de dívida alheia

Resumo:
- O dever alimentar é reconhecido como fundamental para uma vida digna e saudável, regido por princípios de solidariedade e reciprocidade familiar.
- A prisão civil é uma medida coercitiva aplicável aos devedores de alimentos, inclusive aos avós, mas questiona-se sua eficácia e justiça, especialmente quando envolve idosos.
- O Projeto de Lei n° 151, de 2012, propôs impedir a prisão civil dos idosos por dívida alimentar, destacando a necessidade de considerar a fragilidade e os direitos fundamentais da pessoa idosa.
Resumo: Dentre os deveres familiares, os anseios de cunho alimentar são talvez os mais importantes, por tudo o que representam, como uma vida digna, minimamente saudável e culta. Decerto, a reciprocidade e a solidariedade familiar possuem uma base significativa na prestação alimentícia, na qual os entes se ajudam conforme a necessidade e a possibilidade de seus membros. Ao se mencionar o dever de alimentos e de ajuda mútua, fala-se em ascendentes, descendentes e colaterais até o 2° grau. Aqui, já é notável que se trata também de uma obrigação dos avós, conhecida como alimentos avoengos. Entre as medidas coercitivas consideradas legalmente eficazes diante do descumprimento da obrigação alimentícia, está a prisão civil. Ela é aplicável até mesmo aos devedores em segundo plano, como os avós, sejam eles idosos ou não. Diante dessa previsão legislativa, surgem dúvidas como: é realmente uma medida justa? É eficaz? É necessária? Afronta direitos fundamentais? E os direitos da pessoa idosa? Em resposta, o artigo adota uma metodologia de pesquisa bibliográfica e jurisprudencial, acompanhada do método de abordagem indutiva e do procedimento analítico-descritivo.
1. INTRODUÇÃO
A solidariedade e a reciprocidade alimentares foram frutos da necessidade de reconhecimento jurídico da prestação de alimentos aos desamparados pela família, pela sociedade e pelo poder público, evidenciando, desde os primórdios, sua importância social.
Garantidor do mínimo existencial, o alimento não poderia ficar de fora das discussões civis, principalmente diante de sua contribuição para uma vida com dignidade. Diante de tantas significações, os alimentos encontram hoje respaldo jurídico, tanto infraconstitucional quanto constitucional, sendo as famílias as principais responsáveis.
Com base no conhecimento sobre responsabilidade, originariamente, os pais são responsáveis pelos filhos e vice-versa, cumprindo-se, assim, os princípios da solidariedade e da reciprocidade alimentares. Posteriormente, a responsabilidade recai sobre os ascendentes e colaterais de segundo grau.
É notável, portanto, a subsidiariedade — ou seja, a responsabilização indireta dos ascendentes e colaterais —, incluindo os avós, que, quando obrigados em segundo plano, conferem à obrigação alimentar a nomenclatura de alimentos avoengos.
Nesse sentido, os avós do alimentado, independentemente da idade, como responsáveis secundários, ficam sujeitos à prisão civil, uma vez que esta é uma das medidas coercitivas viáveis aos devedores de alimentos.
Apesar da essencialidade da prestação alimentícia, a prisão civil dos devedores subsidiários configura-se como uma medida excessiva, pois tende a equivaler à imposição do pagamento de dívida alheia mediante coerção, como se fossem devedores originários.
Irrefutável a importância da prestação alimentícia, o presente artigo não discute o dever de pagar, mas sim a forma de aplicação da pena ao devedor não originário, em especial aos avós idosos. Afinal, é igualmente inegável a essencialidade da proteção da pessoa idosa frente à fragilidade naturalmente decorrente do fator idade, considerando-se que se trata de pessoas com idade igual ou superior a 60 anos.
Expansivamente, evidencia-se que a prisão civil avoenga é uma medida prejudicial e desproporcional ao encargo alimentício, cuja obrigação possui caráter excepcional.
Diante disso, será apresentado o enredo histórico e conceitual do instituto dos alimentos. Em seguida, será feita uma dissertação sobre a pessoa idosa.
Antes da conclusão, aborda-se a possibilidade legal da prisão civil avoenga, ao mesmo tempo em que se expõe a incoerência dessa modalidade de coerção, especialmente quando aplicada à prisão de avós idosos, evidenciando o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça e a proposta de projeto de lei que corrobora com essa mesma linha de pensamento.
Nesse itinerário, o conteúdo textual assume cunho argumentativo-descritivo, com método de pesquisa bibliográfica, análise legal e jurisprudencial, utilizando o método de abordagem indutivo e o procedimento analítico-descritivo.
2. DOS ALIMENTOS
Como bem lembrado por Arnaldo Rizzardo, o alimento “(…) cuida-se de um instituto básico no direito de família, considerado de ordem pública e protegido de modo especial pelo Estado, em razão do destaque que ocupa o grupo familiar dentro do ordenamento (…)” (RIZZARDO, 2019, p. 661).
No que diz respeito às relações privadas — nas quais se encontram os principais responsáveis —, há o consenso legal quanto à ajuda mútua, decorrente da reciprocidade e solidariedade entre parentes, previsto há tempos e reforçado pelo Código Civil vigente.
Conforme o artigo 1.694, “podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição social, inclusive para atender às necessidades de sua educação” (BRASIL, 2002).
Isso se aplica “(…) quando quem os pretende não tem bens suficientes, nem pode prover, pelo seu trabalho, à própria mantença, e aquele, de quem se reclamam, pode fornecê-los, sem desfalque do necessário ao seu sustento” (BRASIL, 2002).
A ausência dos ascendentes é suprida pelos descendentes, de modo a preservar a ordem sucessória. Nesse sentido, dispõe o artigo 1.697: “(…) na falta dos ascendentes, cabe a obrigação aos descendentes, guardada a ordem de sucessão e, faltando estes, aos irmãos, assim germanos como unilaterais” (BRASIL, 2002).
Cabe esclarecer que essa é uma obrigação que acompanha a necessidade de quem recebe e a possibilidade de quem paga, além da proporcionalidade da obrigação. O alimentado deve estar, de fato, em situação de carência, preenchendo os requisitos no momento do requerimento dos alimentos. Da mesma forma, o alimentante deve estar em condição de cumprir com a obrigação alimentícia, de forma proporcional e equilibrada.
A solidariedade familiar se manifesta inclusive de forma concorrente, conforme prevê o artigo 1.698, ao dispor sobre a possibilidade de chamamento à lide, quando várias pessoas são obrigadas à prestação de alimentos.
Tal previsão se aplica quando o dever de prestar alimentos por um dos parentes não se mostra viável, em razão da incapacidade de suportar o encargo. Nessa hipótese, é possível chamar à lide os parentes de grau mais próximo, passando todos a concorrer de maneira proporcional.
Insta salientar que a referida solidariedade deve ser compreendida no sentido de uma obrigação concorrente, e não como uma obrigação solidária, uma vez que, neste caso, trata-se de uma obrigação de caráter complementar, que não desvirtua a característica de divisibilidade, tampouco o caráter subsidiário da prestação alimentícia ora em análise.
Por fim, é compreensível a atribuição da responsabilidade de pagar alimentos aos ascendentes, cônjuges ou companheiros, descendentes e irmãos, sejam bilaterais ou unilaterais. Trata-se, portanto, de uma decorrência da formação familiar, a qual, quando negligenciada, pode ensejar a aplicação da prisão civil — inclusive à pessoa idosa — em virtude dos chamados alimentos avoengos.
3. DA PESSOA IDOSA
As pessoas idosas, conforme o Estatuto da Pessoa Idosa, são aquelas com idade igual ou superior a 60 anos, sendo dotadas de todos os direitos inerentes à pessoa humana — e, mais ainda, assim como crianças e adolescentes, são detentoras da prioridade absoluta, constitucionalmente garantida.
O conceito de pessoa idosa, estabelecido pelo Estatuto, manteve o já previsto nas finalidades da Política Nacional do Idoso, de 1994, ao considerar idosa “(…) a pessoa maior de sessenta anos de idade” (BRASIL, 1994).
Antes mesmo da promulgação da Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003 (Estatuto), a Constituição da República Federativa do Brasil, de outubro de 1988, já assegurava proteção à pessoa idosa, assim como a Política Nacional do Idoso, vigente desde 1994.
É perceptível, em todos esses marcos legais, o indiscutível dever da família, do Estado e da comunidade na defesa e garantia dos direitos da pessoa idosa. Esse entendimento é igualmente expresso no artigo 3º do Estatuto:
É obrigação da família, da comunidade, da sociedade e do poder público assegurar à pessoa idosa, com absoluta prioridade, a efetivação do direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à cultura, ao esporte, ao lazer, ao trabalho, à cidadania, à liberdade, à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária (BRASIL, 2003).
Pela norma-princípio constitucional da absoluta prioridade — também destacada no artigo supracitado —, entende-se que os interesses e direitos da pessoa idosa possuem, como o próprio nome indica, prioridade frente aos demais, estando ao lado dos direitos da criança e do adolescente.
Não faz sentido que essa proteção se restrinja à teoria ou ao plano abstrato da legislação; a doutrina da proteção integral deve ser concretizada, de modo a garantir eficácia plena e imediata.
Como medida de eficácia, a lei estabelece que “nenhuma pessoa idosa será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência, crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na forma da lei” (BRASIL, 2003).
Vinculada ao direito à vida, a proteção da pessoa idosa é um direito social e, por isso, necessita — e deve — ser acompanhada de políticas públicas que viabilizem um envelhecimento saudável e em condições dignas.
Do contrário, “assim não sendo, deixa-se de visualizar a proteção integral para se constatar uma proteção parcial, como outra qualquer, desrespeitando-se o princípio ora comentado e, acima de tudo, a Constituição e a lei ordinária” (NUCCI, 2021, p. 25).
Desde 1994, a família, a sociedade e o Estado já eram responsabilizados pelo bem-estar da pessoa idosa, conforme estabelecido no inciso I do artigo 3º da Política Nacional do Idoso, que permanece vigente e cada vez mais reforçado: “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar ao idoso todos os direitos da cidadania, garantindo sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade, bem-estar e o direito à vida” (BRASIL, 1994).
Antes mesmo da Política Nacional do Idoso, o texto constitucional, em seu artigo 230, já trazia a devida referência ao afirmar, de forma semelhante, que “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida” (BRASIL, 1988).
Embora tantos direitos já fossem previstos e integrassem o ordenamento jurídico antes mesmo do Estatuto específico, sua efetividade era limitada — e, mesmo nos dias atuais, ainda se observa considerável insegurança jurídica.
O mundo dos fatos, mesmo após a promulgação do Estatuto da Pessoa Idosa, continua apresentando falhas em diversas áreas e enfrenta divergências doutrinárias diante de lacunas normativas e diferentes interpretações jurídicas, o que coloca a pessoa idosa em situações indignas, como a possibilidade de prisão civil por alimentos avoengos.
Nesse sentido, torna-se indispensável a discussão sobre a (im)possibilidade da prisão civil da pessoa idosa, à luz do contexto legal de proteção, da prioridade absoluta, da liberdade, da dignidade e de tantos outros direitos fundamentais e sociais amplamente reconhecidos.
4. DA (IM)POSSIBILIDADE DA PRISÃO CIVIL AVOENGA
Estando os alimentos em um patamar superior à simples ideia de comer e beber, dada sua importância para a vida humana, eles são legalmente garantidos. Afinal, representam um direito fundamental, voltado à preservação da dignidade e do mínimo existencial da pessoa:
(…) estão relacionados com o sagrado direito à vida e representam um dever de amparo dos parentes, cônjuges e conviventes, uns em relação aos outros, para suprir as necessidades e as adversidades da vida daqueles em situação social e econômica desfavorável (MADALENO, 2022, p. 1003).
Não por menos, justificam-se as características atribuídas aos alimentos, quais sejam: irrenunciabilidade, intransmissibilidade, incompensabilidade e impenhorabilidade.
Os alimentos “são considerados direitos indisponíveis, vedando-se ao seu titular renunciá-los, ainda que seja capaz, por se tratar de necessidade vital do ser humano, carregando em seu bojo o imprescindível sustento à vida da pessoa (…)” (CARVALHO, 2023, p. 287).
Por se tratar de um direito pessoal do alimentado, ele “é intransferível ou incessível, pois o crédito não pode ser cedido a outrem, restringindo-se entre o titular e o devedor, em face do caráter personalíssimo da obrigação (art. 1.707, parte final, do CC)” (CARVALHO, 2023, p. 291).
Quanto à incompensabilidade, entende-se que “a obrigação alimentar é incompensável, posto que destinada à subsistência. O devedor não pode compensar dívida do alimentado, sob pena de comprometer seus meios de sobrevivência (arts. 373, II, e 1.707, parte final, do CC) (…)” (CARVALHO, 2023, p. 292).
Por fim, “pelo mesmo fundamento, destinando-se a prover a mantença do alimentado, a prestação alimentar não responde por suas dívidas, sendo, portanto, impenhorável (art. 1.707, parte final, do CC)” (CARVALHO, 2023, p. 292).
Resumidamente, no que se refere à prisão do alimentante, após o trânsito em julgado da decisão na ação de alimentos e não havendo o cumprimento da obrigação, a prisão civil do devedor é lícita. Trata-se do único caso permitido de prisão por dívida, autorizado pela Constituição Federal, no inciso LXVII do artigo 5º.
Cabe lembrar que, mesmo após o cumprimento integral da pena, o devedor não se exime das dívidas alimentícias, sejam elas vencidas ou vincendas, conforme previsto no § 1º do artigo 19 da Lei de Alimentos e no § 5º do artigo 528 do Código de Processo Civil.
Alguns doutrinadores destacam a prisão civil como o método mais eficaz para o cumprimento da prestação de alimentos. Nesse contexto, os doutrinadores Gagliano e Pamplona observam que
a prisão civil decorrente de inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentar, em face da importância do interesse em tela (subsistências do alimentando), é, em nosso entendimento, medida das mais salutares, pois a experiência nos mostra que boa parte dos réus só cumpre a sua obrigação quando ameaçada pela ordem de prisão. (GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2018, p. 1.422)
Cumprida a ordem de prisão, resta claro no § 4º do artigo 528 do Código de Processo Civil que “a prisão será cumprida em regime fechado, devendo o preso ficar separado dos presos comuns” (BRASIL, 2015), afinal, não se trata de prática criminal, mas sim de prisão civil por inadimplemento.
A prisão civil somente não será decretada em caso de comprovada impossibilidade absoluta do devedor. Se “(…) a justificativa apresentada não for aceita, o juiz, além de mandar protestar o pronunciamento judicial na forma do § 1º, decretar-lhe-á a prisão pelo prazo de 1 (um) a 3 (três) meses” (BRASIL, 2015).
Ainda sobre a prisão civil, esta não é autorizada por qualquer dívida alimentar isolada. Conforme estabelece a Súmula 309 do Superior Tribunal de Justiça, “o débito alimentar que autoriza a prisão civil do alimentante é o que compreende as três prestações anteriores ao ajuizamento da execução e as que se vencerem no curso do processo” (BRASIL, STJ).
Todavia, a prisão civil do devedor não é a única medida cabível para a efetivação da cobrança da dívida alimentar. A leitura do artigo 523 do CPC revela a possibilidade de penhora, medida igualmente eficaz, pois permite que o bem seja utilizado para o pagamento da dívida.
Além disso, existem outras medidas de cunho patrimonial, como o desconto em folha de pagamento, o protesto judicial da dívida e a inclusão do nome do devedor em cadastros de inadimplentes.
Ao se tratar da prisão civil por dívida alimentar, é comum presumir que os principais sujeitos alcançáveis por essa medida sejam os pais da criança ou do adolescente, visto que são os primeiros obrigados à prestação de alimentos, conforme estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente.
Ademais, é o que prevê, de forma expressa, o já citado artigo 1.696 do Código Civil: “o direito à prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos (…)” (BRASIL, 2002).
Contudo, na impossibilidade de cumprimento da obrigação por parte do alimentante — mesmo sendo os pais ou um deles —, conforme previsto na segunda parte do referido artigo, a responsabilidade recai sobre os ascendentes. É nesse contexto que se institui a obrigação alimentar avoenga, também conhecida como alimentos avoengos, doutrinariamente pacificada com base nos princípios da dignidade da pessoa humana, do melhor interesse da criança e do adolescente, bem como da solidariedade e reciprocidade familiar.
Em síntese, conclui-se pela licitude da prisão civil da pessoa idosa por dívida alimentícia, sendo-lhe aplicáveis os mesmos critérios exigidos dos pais do alimentado. Isso porque a Constituição da República não isenta expressamente a pessoa idosa da prisão civil por alimentos, ao prever a medida de forma genérica, sem exceções. Da mesma forma, tal isenção não é prevista na legislação ordinária, tampouco no Estatuto da Pessoa Idosa.
Nesse contexto, a prisão civil decorrente do inadimplemento da obrigação alimentar avoenga possui amparo legal. Por outro lado, a não aplicação da medida é apontada por parte da doutrina como geradora de insegurança jurídica, pois a matéria ainda não se encontra plenamente pacificada na jurisprudência.
Quanto à (im)possibilidade da prisão ora em debate, a jurisprudência revela-se ampla, com decisões favoráveis e contrárias à medida. Em alguns casos, determina-se o cumprimento em regime fechado; em outros, a prisão é convertida em regime domiciliar ou substituída por outras medidas coercitivas.
4.1. Entendimento do Superior Tribunal de Justiça
A maioria dos tribunais admite a prisão civil, seja em regime fechado ou domiciliar. Em sentido diverso, o próprio Superior Tribunal de Justiça, ao julgar pedidos de habeas corpus, manifesta preferência por outros meios coercitivos, considerados igualmente eficazes à prisão civil dos avós. A ponderação recai sobre a natureza complementar e subsidiária da obrigação alimentar avoenga, a qual não se mostra compatível com a mesma técnica de coerção aplicada aos devedores originários e solidários, como é o caso dos pais.
Além disso, tal decisão respeita importantes princípios processuais, entre eles o da menor onerosidade e o da máxima utilidade da execução. Leva-se em conta, inclusive, casos concretos em que os avós são pessoas idosas, destacando-se os riscos que o encarceramento pode lhes causar.
Dessa forma, no referido habeas corpus, admitiu-se a conversão da prisão para o rito da penhora e da expropriação, por se tratar de medida que “(…) a um só tempo, respeita os princípios da menor onerosidade e da máxima utilidade da execução, sobretudo diante dos riscos causados pelo encarceramento de pessoas idosas (…)” (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2017).
No âmbito da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa, observa-se que o Superior Tribunal de Justiça tem se mostrado cada vez mais claro ao reforçar a natureza complementar e subsidiária da obrigação alimentar dos avós, conforme dispõe a Súmula 596 do próprio tribunal.
Segundo essa súmula: “a obrigação alimentar dos avós tem natureza complementar e subsidiária, somente se configurando no caso de impossibilidade total ou parcial de seu cumprimento pelos pais” (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça).
Importante destacar o uso da expressão “avós” — e não “avós idosos” — o que evidencia que a natureza da obrigação independe da idade dos avós. Tal obrigação decorre da base sucessória da família e do papel familiar exercido por cada um de seus membros, não cabendo substituições hierárquicas quanto à importância, obrigações, direitos e deveres.
Maria Berenice Dias corrobora e acrescenta que:
Os avós são chamados a atender a obrigação própria decorrente do vínculo de parentesco, tratando-se de obrigação sucessiva, subsidiária e complementar. Em face da irrepetibilidade dos alimentos, é necessária a prova da incapacidade, ou da reduzida capacidade do genitor de cumprir com a obrigação em relação à prole. O reiterado inadimplemento autoriza à propositura de ação de alimentos contra os avós, mas não é possível cobrar deles o débito dos alimentos. Não cabe intentar contra os avós execução dos alimentos não pagos pelo genitor, o que seria impor a terceiro o pagamento de dívida alheia (grifo nosso) (DIAS, 2015, p. 588).
Nesse sentido, é compreensível a lógica de distinção entre os encargos alimentares e, consequentemente, entre os modos de cumprimento e os meios coercitivos aplicáveis — que, idealmente, também deveriam ser distintos.
Como bem pontua a Ministra Nancy Andrighi, relatora da jurisprudência mencionada do Superior Tribunal de Justiça, a execução da dívida alimentar dos avós não deve “(…) obrigatoriamente seguir o mesmo rito e as mesmas técnicas coercitivas que seriam observadas para a cobrança de dívida alimentar pelos pais, que são os responsáveis originários pelos alimentos (…)” (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2017), especialmente quando os avós assumem “(…) espontaneamente o custeio (…)” (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça, 2017).
De forma acertada, a Ministra destaca as claras distinções entre os devedores: os pais são devedores originários e solidários, enquanto os avós — independentemente da idade — são devedores subsidiários e indiretos. Ou seja, sua responsabilidade surge por exclusão, conforme explica Luz: “(…) para configurar a responsabilidade dos avós, é necessário comprovar a incapacidade dos pais de cumprirem a obrigação” (LUZ, 2009, p. 300).
A natureza complementar da obrigação avoenga evidencia-se quando, por exemplo, “(…) necessitando o alimentando de R$ 500,00 para sua mantença e podendo o pai somente contribuir com R$ 250,00, poderá o alimentando voltar-se contra os avós para buscar a complementação dos R$ 250,00 faltantes” (LUZ, 2009, p. 299). Trata-se, portanto, de obrigação distinta, já que os pais, em um primeiro momento, respondem pela integralidade da prestação.
Essas desigualdades entre os encargos demonstram, de forma suficiente, a inadequação da aplicação do mesmo rito executivo. Não é adequado, tampouco justo, aplicar o mesmo procedimento coercitivo a obrigações tão distintas. A prisão civil dos avós — em especial dos avós idosos — configura-se como uma medida prejudicial e desproporcional a uma obrigação cujo caráter é claramente excepcional.
4.2. Projeto de Lei do Senado n° 151, de 2012
Em complemento às decisões do Superior Tribunal de Justiça, que vêm sendo acolhidas por tribunais estaduais, foi proposto um Projeto de Lei visando impedir a prisão civil por obrigação avoenga.
Com tramitação já encerrada, o Projeto de Lei do Senado n° 151, de 2012, de autoria do senador Paulo Paim (PT-RS), buscava acrescentar o inciso VIII ao § 1º do artigo 10 do Estatuto da Pessoa Idosa, bem como o § 4º ao artigo 19 da Lei de Alimentos, com o objetivo de vedar a prisão do idoso devedor de alimentos.
Com justificação sucinta, porém assertiva, o projeto expõe que:
por causa da inadimplência do filho, o avô idoso acaba sendo preso para o pagamento de alimentos ao neto. A verdade é que muitos idosos são presos civilmente por causa da irresponsabilidade alheia. Não é certo que pessoas de saúde frágil, com grandes gastos com medicamentos, médicos e hospitais, sejam submetidas a esse tipo de humilhação, ainda mais nesta fase da vida (BRASIL, 2012).
O Projeto de Lei reconhece a legitimidade da cobrança de alimentos aos ascendentes, porém não apoia o constrangimento da pessoa idosa por meio da ameaça de prisão em decorrência de obrigação civil.
Embora o Plenário do Senado Federal tenha arquivado definitivamente a proposição ao final da legislatura, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa chegou a votar pela aprovação do Projeto de Lei do Senado n° 151, de 2012, por meio de uma emenda substitutiva.
O texto substitutivo tratou da técnica legislativa do projeto, reorganizando os dispositivos a serem inseridos. Quanto ao conteúdo, buscou deixar clara a vedação da decretação da prisão civil do idoso, quando fundamentada em obrigação alimentar de natureza subsidiária. Segundo o relatório apresentado pelo senador Humberto Costa, há casos em que os próprios avós atuam como criadores desde a infância, sendo reconhecidos como pais afetivos e, assim, passando de devedores indiretos a principais responsáveis pela obrigação.
Considerando o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça e a proposta legislativa em questão — ambos voltados especificamente aos avós idosos —, torna-se evidente a colisão entre princípios e direitos fundamentais. A começar pela Constituição Federal, que garante proteção diferenciada à pessoa idosa, em razão da fragilidade decorrente do tempo de vida, exigindo cuidados especiais não apenas da família e da sociedade, mas também do Estado.
A prisão civil do idoso por alimentos avoengos configura, claramente, uma afronta ao princípio da proteção integral da pessoa idosa, sendo medida excessiva, primeiro, pela já mencionada natureza subsidiária, sucessiva e complementar da obrigação (independentemente da idade) e, depois, pelos prejuízos concretos que tal medida pode provocar. Ressalte-se, ainda, que existem outros meios coercitivos capazes de garantir o cumprimento da obrigação, o que torna a prisão civil desnecessária.
A prática fere, ainda, os princípios da liberdade e da dignidade da pessoa humana — ambos cruciais para a efetivação do direito à vida e a garantia do mínimo existencial.
Se a restrição da liberdade da pessoa idosa é ponderada com cautela em situações penais, por qual motivo não deveria sê-lo também no âmbito cível?
Como direito fundamental, a dignidade da pessoa humana é o princípio que sustenta a própria existência da prisão civil por dívida alimentícia. Embora seja inegável a essencialidade da prestação alimentar para a subsistência, o princípio da dignidade da pessoa humana também deve ser respeitado como critério de análise para a decretação dessa medida extrema.
Restringir a liberdade da pessoa idosa compromete a aplicação do princípio da proteção integral, cujos efeitos passam a ser parciais. Tal medida perde sua razão de ser e representa, em conjunto, um retrocesso social.
Como se sabe, “é verdadeira a afirmação consoante a qual o envelhecimento é o tempo da vida humana em que o organismo sofre consideráveis mutações de declínio na sua força, disposição e aparência (…)” (RAMOS, 2014, p. 34).
Considerando os declínios físicos e psicológicos, “(…) a velhice é uma etapa da vida de faculdades diminuídas e uma etapa de espera. Também é verdadeira a ideia de que a velhice fragiliza” (RAMOS, 2014, p. 34).
Tais vulnerabilidades se agravam com o encarceramento, ainda que este ocorra em regime separado dos presos comuns. O fato é que a restrição de liberdade, seja domiciliar ou institucional, atinge o indivíduo em diversos âmbitos, como os da dignidade, moralidade e integridade emocional, sendo, ademais, uma experiência vexatória e constrangedora.
Quando a restrição de liberdade se dá por meio do encarceramento, o sujeito é privado do essencial, especialmente diante da realidade do sistema prisional: ausência de higiene, nutrição adequada, salubridade e segurança, além da constante exposição à violência. Soma-se a isso o abalo emocional causado por tal ambiente.
Imagine, então, os impactos dessa experiência em pessoas com idade igual ou superior a sessenta anos. Nesses casos, é inegável que a simples restrição de liberdade constitui medida desproporcional e excessiva.
Medidas coercitivas como a penhora, o desconto em folha de pagamento e o protesto judicial são mais brandas e, ao mesmo tempo, eficazes na garantia dos direitos do alimentado. Essas alternativas apresentam-se como legais e suficientes para a satisfação da dívida, sem afrontarem os princípios e direitos fundamentais do ordenamento jurídico, da sociedade e, especialmente, da pessoa idosa.
Portanto, é imperiosa a ponderação na aplicação das normas, de modo a evitar desequilíbrios que possam prejudicar as partes envolvidas, especialmente quando há alternativas mais efetivas, menos onerosas e igualmente úteis à execução.
Diante de todo o exposto, conclui-se que a adoção de medidas coercitivas diversas da prisão é a forma mais adequada, justa e razoável. Ao mesmo tempo em que impossibilita o encarceramento, resguarda não apenas os direitos da criança e do adolescente, mas também da pessoa idosa, igualmente protegida pela doutrina da proteção integral e pelo princípio da prioridade absoluta.
5. CONCLUSÃO
Diante da relevância do direito à alimentação e, consequentemente, da sua concessão, o presente texto não se propôs a discutir o dever de pagar os alimentos, mas sim a forma coercitiva utilizada para sua garantia, especialmente no caso de devedores subsidiários.
Sabendo-se que o alimento possui cunho moral, social e educacional, é indiscutível o dever alimentar, previsto legalmente e sustentado por importantes princípios que regem as relações familiares, como os da solidariedade e da reciprocidade entre parentes.
Tais princípios, como já evidenciado ao longo do texto, contribuem para a efetividade da obrigação alimentar, abrangendo não apenas a subsistência, mas também aspectos relacionados ao lazer e à educação.
Embora seja um dever também social e estatal, a responsabilidade recai, prioritariamente, sobre o núcleo familiar, dos parentes mais próximos aos mais remotos, conforme a possibilidade de quem paga e a necessidade de quem recebe.
Nesse sentido, é compreensível que o alimento seja protegido pelo poder público, sendo considerado um instituto de ordem pública. São os chamados alimentos legais, previstos em lei, que autorizam, inclusive, a responsabilização do devedor mediante prisão civil — seja ele idoso ou não —, pois a legislação não faz ressalvas quanto à idade do alimentante.
Todavia, embora caiba responsabilização civil ao devedor, deve-se observar o caráter coercitivo de acordo com a natureza da obrigação assumida: se solidária ou subsidiária.
Considerando as diferenças de encargos e tipos de responsabilidade, não se pode aplicar com igual intensidade os meios de coerção. Assim, reforça-se que a decretação da prisão civil nos casos de alimentos avoengos representa uma transgressão, ao impor medida extrema a quem responde por exclusão.
Fica evidente, portanto, que a prisão civil avoenga configura-se como uma medida legalmente excessiva, sobretudo diante da existência de outros meios coercitivos justos e eficazes. Tais alternativas evitam a transferência injustificada da dívida a terceiros, como se solidários fossem.
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