Judiciário
Imunidade do IPTU aos templos de qualquer culto
Confirmações e inovações da EC 116/22
Sendo ópio do povo, porque a realidade seria insuportável sem alguma crença, ou não sendo esse paliativo aos problemas sociais e individuais, a consciência e a crença são direitos fundamentais garantidos expressamente no inciso VI, do artigo 5º da Constituição Federal: “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias”.
Um dos mecanismos de garantia do exercício de direitos é a limitação à competência de instituir impostos, como faz o artigo 150, VI, “b”, da Constituição ao determinar a não incidência sobre templos de qualquer culto.
Foi nesse contexto que no último dia 17 de fevereiro foi promulgada a Emenda Constitucional nº 116, que incorporou o §1º-A ao texto do artigo 156, da Constituição Federal, com a seguinte redação:
“O imposto previsto no inciso I do caput deste artigo não incide sobre templos de qualquer culto, ainda que as entidades abrangidas pela imunidade de que trata a alínea “b” do inciso VI do caput do art. 150 desta Constituição sejam apenas locatárias do bem imóvel”.
Resumida e literalmente, o novo dispositivo inclui no rol de templos de qualquer culto imunes ao IPTU, para além dos templos de qualquer culto que forem proprietários, também aqueles que forem locatários de imóveis destinados às suas atividades essenciais.
Contudo, há diversas figuras jurídicas afetadas por essa inovação textual constitucional, que nos levam a analisá-la como uma confirmação do alcance normativo da imunidade, do ponto de vista semântico, ou seja, de interpretação do conjunto normativo; e como potencialmente inovador do ponto de vista pragmático, do real impacto da tributação sobre os templos de qualquer culto.
A primeira dessas figuras afetadas é a própria hipótese de incidência do IPTU.
Se por um lado a Constituição Federal, em seu artigo 156, I, utiliza a expressão “propriedade” ao atribuir competência de instituição do IPTU aos municípios, por outro lado o Código Tributário Nacional seleciona mais duas expressões, a de “domínio útil” e de “posse”, no sentido ampliativo da hipótese de incidência do IPTU, ao nosso ver, de maneira inconstitucional.
É que quando a Constituição identifica a propriedade como uma das matrizes de tributação, pretende identificar um estado de fato jurídico e a capacidade contributiva que esse signo revela. Como já dizia Alfredo Augusto Becker[1], o tributo incidente sobre a propriedade só pode ser incidente sobre o “estado de fato jurídico”, sobre o gênero propriedade, e não sobre o “estado de fato material” das suas espécies/atributos. Ademais, o estado de fato jurídico da titularidade da propriedade revela capacidade contributiva que o estado de fato material de seus atributos não tanto ou não necessariamente conseguem demonstrar.
Portanto, do ponto de vista semântico, o inciso I do artigo 156 torna possível a incidência do IPTU sobre o gênero propriedade e não sobre suas espécies. Essas espécies ou atributos, como por exemplo a posse e o domínio útil, portanto, não podem compor o núcleo da hipótese de incidência do IPTU.
Nesse sentido a EC 116/2022 confirma a não incidência do IPTU sobre a posse, no caso da imunidade: o imposto “não incide(…) ainda que as entidades (…) sejam apenas locatárias” — porque o IPTU não incide sobre a posse. Frente ao inciso I do artigo 156 é que se compreende a não incidência sobre qualquer posse, e não apenas daquela relativa imunidade dos templos de qualquer culto.
A segunda figura jurídica afetada pela EC 116/2022 é o elemento de identificação da imunidade de templos de qualquer culto. É que ainda que de maneira tímida tenha mencionado apenas a situação da locação, a EC confirma que a não incidência do IPTU se dá em razão da destinação do imóvel, e não em razão de quem é seu proprietário, afinal, ele “não incide sobre templos de qualquer culto”.
Noutras palavras, a não-incidência constitucional do IPTU recai sobre o local de exercício da liberdade de consciência e crença[2], e não sobre a propriedade, tampouco sobre o sujeito passivo da relação jurídica tributária, embora possa ser constatada pela identificação desse sujeito.
Portanto, independentemente de quem seja seu proprietário, qualquer imóvel destinado às atividades essenciais dos templos de qualquer culto e que, portanto, materializa o exercício da liberdade de consciência e de crença, deve ser imune à incidência IPTU para que se garanta a inviolabilidade desse direito fundamental.
A consequência da timidez do novo dispositivo constitucional que menciona apenas a locação é a possível série de novas demandas que deverão questionar se as situações, como as de comodato, por exemplo, também serão abarcadas pela imunidade, o que, ao nosso ver, sob o objetivo constitucional de proteção e garantia da liberdade de consciência e de crença por meio da imunidade do local de seu exercício, deverá receber a resposta positiva da Corte Suprema.
Outro aspecto relevante resultante da EC 116, é que ela se configura como uma resposta à situação pragmática de templos de qualquer culto que, em não sendo titulares da propriedade do imóvel, não eram abarcados pela proteção constitucional ao local de culto e liturgias, onde se exerce a liberdade de consciência e de crença — garantias essas esculpidas no artigo 5º, inciso VI, da Constituição.
Esse afastamento da garantia constitucional decorria, inclusive, da interpretação dos tribunais superiores que resultou na Súmula Vinculante nº 52[3], do STF e na Súmula 614, do STJ[4]. A primeira afastava o templo de qualquer culto locatário de bem imóvel da imunidade. Ou seja, aqueles que não detivessem a titularidade da propriedade do bem imóvel, não recebiam a imunidade. A segunda, afastava tais sujeitos da legitimidade ativa de eventual discussão administrativa e judicial sobre o imposto.
Esses entendimentos, portanto, precisarão ser novamente enfrentados pelos tribunais superiores e modificados em prol da integração do novo dispositivo à sistemática de interpretação constitucional das cortes. Isso porque em sendo a imunidade uma garantia que recai sobre a destinação do imóvel, pouco importa se é o gênero ou alguma das espécies da propriedade que o templo de qualquer culto detém, ele poderá figurar como sujeito passivo da relação jurídica processual. A imunidade deverá abarcar todo e qualquer imóvel onde se desenvolvam suas atividades essenciais.
Temos, por fim, no novo dispositivo constitucional, o reforço da pretensão de garantia daquele mesmo conteúdo semântico já conferido anteriormente pela Constituição: o IPTU incide sobre o estado de fato jurídico da propriedade; a imunidade incide sobre o local de culto e liturgias. Como resultado, pretende-se afastar o absurdo pragmático de se ver templos religiosos, por vezes detentores de pouca capacidade contributiva, que porque não serem proprietários, em virtude do contrato entre particulares, viam-se obrigados ao pagamento desse imposto, em evidente violação à garantia constitucional de proteção aos locais de culto.
[1] Teoria Geral do Direito Tributário. 7ª ed. São Paulo: Noeses, 2018.
[2] Art. 5º, inciso VI, da CF.
[3] “Ainda quando alugado a terceiros, permanece imune ao IPTU o imóvel pertencente a qualquer das entidades referidas pelo art. 150, VI, “c”, da Constituição Federal, desde que o valor dos aluguéis seja aplicado nas atividades para as quais tais entidades foram constituídas”.
[4] “O locatário não possui legitimidade ativa para discutir a relação jurídico-tributária de IPTU e de taxas referentes ao imóvel alugado nem para repetir indébito desses tributos”.