Educação & Cultura
De Malasartes a Chico Rei: explore a cultura popular brasileira nas aulas de Língua Portuguesa
A literatura popular traz marcas da oralidade, é dinâmica e provoca inquietações sobre a realidade; veja sugestões de práticas e ferramentas para utilizar na sala de aula
“Ao lado da literatura, do pensamento intelectual letrado, correm as águas paralelas, solitárias e poderosas da memória e da imaginação popular“. Não poderíamos começar nossa conversa sem citarmos Câmara Cascudo, afinal, já desaguaram em nosso imaginário poderosas memórias convertidas pela tradição popular.
Essas memórias, caminham em paralelo à erudição, aos formalismos, mas também tocam nossa essência, materializam o mundo do outro, suas vivências, suas crenças, seus valores. É a captura de uma geração inteira, seja pela vivacidade de um pícaro como João Grilo, pelos versos de sorte e trovas, ou pelas famosas histórias da carochinha.
Observar a vida pela janela e poetizar sincronias de tempos e espaços é dar a devida importância ao processo de formação cultural. Mesmo sem ter uma autoria definida, a literatura popular, em sua essência, traz marcas da oralidade, é dinâmica e permite fazer e refazer o cotidiano, provoca inquietações sobre a dura realidade, dá o leve tom aos fatos históricos.
Assim, ao incorporar traços coletivos, a espontaneidade garante a visibilidade necessária de uma história que persiste na crença popular. As figuras mitológicas são, simbolicamente, mediadoras entre o fato, as vivências e a permanência. Afinal, uma narrativa que procura dar sentido ao mundo e às relações entre os seres encontra na constância e na aceitação popular o significado para permanecer e construir tantos ensinamentos.
E por que não abrir as portas da sala de aula para as artimanhas do Pedro Malasartes, para a fé do congadeiro, para as fórmulas de adivinha, para os lemas de para-choques, para as lições dos provérbios, e também dos improvérbios, e para as cirandas? Enfim, um espaço plural por onde circulam saberes do povo e para o povo.
O ressoar popular na sala de aula
Em nosso trabalho com a literatura de origem popular, podemos desmistificar a ideia de que o falar popular é um erro, fruto da ignorância e da incapacidade de bem pensar. O sincretismo, linguístico ou cultural, é o que estrutura a nossa história, buscamos na tradição elementos que revelam a nossa identidade.
“Do tal Pedro Malasartes, você já ouviu falar?/ Pois prepare sua risada que estou pronto pra contar.” Se não ouviu ainda, uma sugestão é o trabalho com o livro Malasaventuras – Safadezas do Malasartes, de Pedro Bandeira, episódios hilários que apresentam as aventuras de Malasartes e que nos permitem recapitular os conceitos de narrativa e o reconhecimento das variantes linguísticas.
Professora e professor, vocês podem propor um estudo sobre o caráter narrativo presente mesmo nos textos em verso, identificando as etapas de organização do enredo, de forma a distinguir o enunciado (história) e a enunciação (narrador). Discuta sobre as diferenças entre a conversação face a face e o texto escrito, considerando a linguagem empregada, a relação título e texto, o conteúdo, o perfil do protagonista e do narrador.
Provoque sua turma e peça para que eles conversem com os familiares e ouçam histórias curiosas e registrem para compartilhar com os colegas; oriente para que expliquem em que situação a história fora contada – a exemplo de encontros familiares em sítios e fazendas em noites enluaradas, com direito à luz da chapada e tantos outros fantasmas pertinentes ao imaginário popular.
Depois de analisar as curiosidades trazidas de casa, sugiro que apresente aos alunos trechos do audiolivro Patativa do Assaré, o poeta e o jornalista que registra conversas entre o cearense Patativa do Assaré e o paraibano Assis Ângelo. Apresente este recurso aos alunos, já que pode ser desconhecido pela maioria deles, é uma estratégia para que possam reconhecer a expressão oral de quem canta o sofrimento, a dor e a peleja do sertão; além de apontar o caráter narrativo de suas histórias.
Tomamos, assim, a língua falada como ponto de partida para reflexões que integram produção oral e escrita, leitura e compreensão, pensando sempre que a literatura popular traduz o imaginário coletivo, caracteriza-se pela simplicidade, apresenta traços que se repetem em diferentes histórias de diferentes épocas e lugares.
Desdobramentos literários
O trabalho com a literatura popular propõe um diálogo entre a realidade de nossos alunos, suas histórias – imbuídas da cultura local, de pessoas, de tradições e de valores -, destacando o fato de sermos seres sociais e de nossa identidade formar-se na relação com nossos semelhantes.
Infinitas são as possibilidades de reconhecermos os recursos de linguagem empregados para manter a curiosidade do leitor, como ocorre na narrativa de Graciliano Ramos, quando o contador de casos Alexandre confirma a veracidade de suas histórias com sua mulher, Cesária.
Reunidas no livro Histórias de Alexandre, narrativas como o Olho torto de Alexandre e as aventuras de como ele conseguiu comprar um papagaio advogado, permitem o aprimoramento das aulas e a utilização de mídias digitais como prática mediadora para o incentivo à leitura.
A exemplo do audiolivro, um recurso que pode ser explorado é a leitura das aventuras de Alexandre em um ebook. As narrativas podem ser lidas, relidas, questionadas e transformadas em cordel. Desperte a curiosidade, assim como faz Graciliano Ramos, e peça aos alunos que registrem as ocorrências de verossimilhança, de ações que perpassam a esfera do maravilhoso, do sobrenatural, dos costumes e modos de convivência.
Faça de sua aula um laboratório de criação, reúna as histórias reescritas por eles em um formato online. Com esse software é possível criar uma estante virtual e interativa que pode ser facilmente manuseada e compartilhada e apresenta um efeito de virada de página. Um espaço ideal para explorar a criatividade dos alunos.
Para além das historietas, também é possível reinventar as figuras lendárias da história do Brasil colônia, de congo a congada, o mito é sempre renovado, entre senhor e escravo, a astúcia de Chico Rei está na obra A História de Chico Rei, de Béatrice Tanaka. O livro dialoga com a letra de um samba-enredo do Salgueiro e um trecho de Cecília Meireles no poema Romanceiro da Inconfidência.
De fácil leitura, conta a história de um rei africano que esconde em seus cabelos pó de ouro para comprar sua liberdade e, depois de sua alforria, construiu a Igreja de Santa Efigênia do Alto da Cruz, configurando-se como símbolo da liberdade e está relacionada à religiosidade e às festas populares, como o congado. O xique-xique dos chocalhos já anunciava um pedido de misericórdia à santa pelos negros que louvavam e cantavam. Com os guizos amarrados nos calcanhares, dançavam e rezavam, um pedido de perdão para aqueles que escravizavam os negros. O mito foi passado e não importa versão, todos viram canção.
Quer seja pelo batuque do tamborim, quer seja pelo fole da sanfona, reescreva a tradição. É no saber popular que coroamos nossa história, quem somos e quem podemos ser.
Ana Cláudia
Seguimos confiantes, um abraço e até breve!
Ana Cláudia Santos é professora de Língua Portuguesa na educação básica na rede estadual de ensino há 20 anos, mestranda em Educação Profissional e Tecnológica. Foi vencedora do Prêmio Educador Nota 10, nas edições de 2014 e de 2018, promovido pela Fundação Victor Civita, com os trabalhos O Povo Conta e O (ser)tão de cada um. Recebeu a medalha Ordem do Mérito Educacional (MEC) – Grau de Cavaleiro e o troféu Capitão-Médico João Guimarães Rosa da Academia de Letras da PMMG.