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Segurança Pública

GCM ou PM? Eis a questão!

Até que ocorram alterações normativas, devem as Guardas Civis Municipais direcionarem suas atividades na proteção dos bens, serviços e instalações municipais, sob pena de inconstitucionalidade

Este artigo pretende fazer uma breve reflexão sobre a celeuma que se instalou no sistema de segurança pública com a atuação das guardas municipais frente às policias militares.

Para refletirmos sobre tal questão, trouxemos entendimentos doutrinários dos âmbitos tributário, administrativo e constitucional, haja vista que a polícia administrativa é melhor retratada por esses ramos do direito.

Com efeito, regularmente nos deparamos no noticiário com decisões do Superior Tribunal de Justiça que invalidam operações realizadas pela Guarda Civil Metropolitana por usurpação das funções da Polícia Castrense e até mesmo da Polícia Civil[1].

Ora, seria impensável, por exemplo, que com frequência os tribunais superiores julgassem ações que concluíssem que ação penal pública não pode ser movida pela Advocacia Pública (art. 129, inc. I, da CF), ou que a consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo não deve ser exercido pela Defensoria Pública (art. 131 da CF), por serem situações óbvias. Mas, em relação à segurança pública, não é o que ocorre.

Nesse diapasão, a Constituição da República, em seu artigo 144, § 6º, concede às policias militares a tarefa de polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.

Aliás, nem é necessária a utilização da expressão “exclusivamente”, pois mesmo sem essa palavra ninguém discorda, por exemplo, que a representação judicial e a consultoria jurídica dos Estados é exercida por seus procuradores (art. 132 da CF). Por que seria diferente com a Polícia Bélica?

Outrossim, no § 8º do mesmo artigo, a Constituição Federal atribuiu às guardas civis municipais a proteção dos bens, serviços e instalações municipais, conforme dispuser a lei.

Nesse sentido, foi promulgada a Lei Federal nº 13.022 de 8 de agosto de 2014, a qual dispõe sobre o Estatuto Geral das Guardas Municipais.

Outrossim, a despeito do Estatuto estabelecer, em seu artigo 4º, que é competência geral das guardas municipais a proteção de bens, serviços, logradouros públicos municipais e instalações do Município e no artigo 5º prescrever que a competência específica das guardas municipais deverá respeitar as competências dos órgãos federais e estaduais, elencou como princípios mínimos de atuação do órgão o patrulhamento preventivo.

Ocorre que o dispositivo em destaque tem trazido muita balbúrdia à segurança pública, visto que sob seu fundamento o policiamento ostensivo tem sido praticado pela GCM.

Portanto, a primeira questão que se põe é: o patrulhamento preventivo difere no essencial do policiamento ostensivo, ou se trata de um eufemismo?

Nessa senda, conforme definição encontrada no site da Polícia Militar de Minas Gerais, o patrulhamento preventivo é[2]

É o policiamento ostensivo com utilização de viaturas, onde os Policiais Militares realizam patrulhas preventivas, Pontos Bases em locais críticos da cidade, abordagens e atendimentos de ocorrências.

De seu turno, para a Guarda Civil de Varginha-MG, o patrulhamento preventivo destina-se à[3]

Ronda realizada em setores pré-definidos, podendo ser a pé ou motorizado. Construindo conjuntamente com a comunidade medidas preventivas de ações e operações que viabilizem um nível satisfatório de segurança na utilização dos espaços públicos, definindo responsabilidades nos diversos níveis de competência.

Destarte, pelas posições institucionais elencadas, fácil constatar que na prática nenhuma diferença remanesce, se tratando mesmo de um eufemismo[4].

Contudo, de há muito o saudoso Hely Lopes Meirelles já assentava, tratando dos poderes administrativos e do poder de polícia, que[5]

Convém distinguir a polícia administrativa, que nos interessa neste estudo, da polícia judiciária e da polícia de manutenção da ordem pública, estranhas às nossas cogitações. Advirta-se, porém, que a polícia administrativa incide sobre os bens, direitos e atividades, ao passo que as outras atuam sobre as pessoas, individualmente ou indiscriminadamente () Como se depreende do art. 34, III, c/c o art. 35 da CF, ao Município não compete a preservação da ordem pública, sendo esta de competência estadual. (g. n.)

Outrossim, segundo a professora Lícinia Rossi, tratando das características do ato de polícia[6],

Só há uma polícia administrativa, porém diversos os setores de atuação de suas normas: polícia edilícia (ou de construções); polícia sanitária que objetiva proteger a saúde pública; polícia de trânsito e tráfego responsável pela segurança e manutenção da ordem nas estradas; polícia de profissões; polícia do meio ambiente; polícia de caça e pesca cujo principal objetivo é a proteção da fauna terrestre e aquática; polícia de diversões públicas voltada à defesa dos valores sociais; polícia florestal; polícia de pesos e medidas atuante na fiscalização dos pesos e medidas de mercadorias postas ao consumo da população; polícia de água comprometida com a não poluição das águas; polícia da atmosfera preocupa-se em evitar a deterioração do ar; polícia funerária voltada ao transporte e enterro de cadáveres. (g. n.)

Ademais, o professor Alexandre Mazza, escrevendo sobre as diferenças entre a polícia administrativa e a polícia judiciária, obtemperou que a polícia administrativa[7]

Tem caráter predominantemente preventivo, atuando antes de o crime ocorrer, para evitá-lo, submetendo-se essencialmente às regras do Direito Administrativo. No Brasil, a polícia administrativa é associada ao chamado policiamento ostensivo, sendo realizada pela Polícia Militar. (g. n.)

Da mesma forma, o professor Celso Spitzcovsky afirma que a importância da distinção entre polícia administrativa e polícia judiciária está em que a segunda rege-se na conformidade da legislação processual penal e a primeira pelas normas administrativas.[8]

No ponto, ousamos discordar dos professores, haja vista que a atividade realizada pela Polícia Militar ocorre essencialmente sob as regras do Direito Penal e do Direito Processual Penal, e não sob o Direito Administrativo (salvo, por exemplo, na fiscalização do trânsito), já que incide diretamente sobre pessoas, e não sobre bens, serviços e instalações públicas. Portanto, o conceito supracitado se aplica melhor à atividade da Guarda Metropolitana.

Além disso, a própria Polícia Federal possui funções administrativas, conforme o artigo 144, § 1º, inciso III, da Lei Suprema.

Dessa forma, a classificação de polícia administrativa e polícia judiciária não consta do texto constitucional, sendo mais preciso classificar as polícias como órgãos administrativos, pois integrantes da estrutura do Poder Executivo.

Noutra quadra, a professora Maria Sylvia Zanella Di Pietra salienta, citando Álvaro Lazzarini, que[9]

A linha de diferenciação está na ocorrência ou não de ilícito penal. Com efeito, quando atua na área do ilícito puramente administrativo (preventiva ou repressivamente), a polícia é administrativa. Quando o ilícito penal é praticado, é a polícia judiciária que age.

Igualmente ousamos discordar da nobre professora, pois a Polícia Militar não age exclusivamente sobre ilícitos administrativos, mas sobretudo em infrações penais, e pode ser considerada polícia judiciária quando estiver em jogo a apuração crimes militares praticados por milicianos.

De forma sempre mais lúcida, Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino destacam que as guardas municipais não são corporações policiais; estas têm a prerrogativa exclusiva de promover a segurança pública, competência que não se confunde com o exercício do poder de polícia administrativa.[10]

Nesse sentido, nada obstante a confusão difundida na doutrina administrativa, podemos dizer que atualmente a PM e a GCM são corporações diferentes realizando o mesmo trabalho, o que não parece ser a vontade do constituinte originário.

Nada obstante, a definição de atividade policial realizada pela Guarda Municipal tem sido buscada no artigo 78 do Código Tributário Nacional, norma essa que trata da instituição dos tributos da espécie taxa pelos entes políticos, nada tendo a ver com a segurança pública, porém com o sistema tributário nacional.[11]

Nessa senda, conforme a definição do Procurador de Contas Ricardo Alexandre, a taxa de polícia[12]

Têm por fato gerador o exercício regular do poder de polícia (atividade administrativa), cuja fundamentação é o princípio da supremacia do interesse público sobre o interesse privado, que permeia todo o Direito Público. Assim, o bem comum, o interesse público, o bem-estar geral podem justificar a restrição ou o condicionamento do exercício de direitos individuais. (g. n.)

No mesmo sentido, o professor Eduardo Sabbag assevera que a taxa de polícia[13]

Denominada também de taxa de fiscalização, será exigida em razão de atos de polícia realizados pela Administração Pública, pelos mais variados órgãos ou entidades fiscalizatórias. Pagar-se-á tal taxa em função do exercício regular do poder de polícia administrativa, tendente a limitar direitos ou liberdades individuais em benefício da coletividade. (g. n.)

Por conseguinte, o dispositivo invocado para caracterizar a atividade do órgão municipal como polícia diz respeito ao fato gerador da taxa de polícia exercida por órgãos fiscalizadores administrativos.

De outro vértice, outro ponto que subjaz é que o funcionamento de ambas as instituições é custeado por meio de tributos na modalidade impostos, conforme definição extraída do artigo 16 do Codex Tributário Nacional[14].

Nesse sentido, conforme anotou o Desembargador Federal Leandro Paulsen, o Supremo Tribunal Federal, na ADI 2.424, já havia manifestado o entendimento de que os serviços relacionados à segurança pública só podem ser custeados, indistintamente, pela arrecadação dos impostos[15].

Portanto, os que sustentam a constitucionalidade da atuação da Guarda Metropolitana como polícia ostensiva olvidam que dois impostos são recolhidos para o custeio dessa atividade, um no âmbito local e outro em sede regional, onerado sobremaneira o contribuinte, num bis in idem.

Dessa forma, um segundo questionamento que se impõe é: deveria haver a extinção de um desses órgãos públicos?

Com certeza, a extinção ou unificação desses órgãos em um só traria maiores benefícios para a sociedade, além de concentrar seu custeio em um único ente político.

Por outro lado, não podemos olvidar que o crescimento das guardas civis se deve principalmente ao fato de que o efetivo militar não tem logrado sucesso no policiamento preventivo, especialmente no Estado de São Paulo, tendo o Estado falido, ou pelo menos, entrado em recuperação judicial no tema da seguridade pública.

Consequentemente, podemos arrematar que o ideal seria a afluência do policiamento ostensivo no âmbito municipal, com aporte maior de recursos do Estado ao município, seja por meio do aumento da repartição do produto do ICMS ou do IPVA, seja pela criação de fundos próprios, promovendo-se a alteração na repartição das receitas tributárias.

Como decorrência dessa alteração, os Estados poderiam abundar esforços na manutenção e modernização da Polícia Judiciária, ávida por subsídios para possibilitar uma proficiente investigação criminal e diminuição da vitimização secundária e das cifras negras, principalmente após a Lei Federal nº 12.850 de 2 de agosto de 2013, a qual instituiu contemporâneos meios de investigação e obtenção de provas.

Concluindo, a temática da atuação da GCM e da PM demanda um profundo remodelamento ou delineamento, para evitarmos maior insegurança jurídica no sistema de persecução penal, sendo que o policiamento fardado poderia restar focado nos municípios, enquanto os Estados moveriam esforços para tornar eficiente a investigação e a repressão penal.

Entretanto, até que isso aconteça, devem as Guardas Civis Municipais direcionarem suas atividades na proteção dos bens, serviços e instalações municipais, sob pena de inconstitucionalidade.

Infelizmente, o argumento de que a instituição de segurança municipal tem prestado um bom serviço à população não é suficiente para alterar nossa Lei Maior, visto ser esse um dever de todos os agentes públicos, conforme o artigo 37, caput, da Carta Magna.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALEXANDRE, Ricardo. Direito Tributário. 15ª Ed. – Salvador: Juspodivm, 2021.

ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado. 29ª ed. – Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021.

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 33ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.

MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 11ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021.

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 44ª ed. – São Paulo: Malheiros, 2020.

PAULSEN, Leandro. Curso de direito tributário completo. 11ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

ROSSI, Lícinia. Manual de direito administrativo. 6ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020.

SABBAG Eduardo. Direito tributário essencial. 7ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2020.

SPITZCOVSKY, Celso. Direito Administrativo. 2ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019.


[1] Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-ago-18/stj-veda-atuacao-guarda-forca-policial-limita-busca-pessoal/c/1 Acesso em: 19/8/2022.

[2] Disponível em: https://www.policiamilitar.mg.gov.br/portal-pm/16bpm/conteudo.action?conteudo=216565&tipoConteudo=noticia Acesso em: 19/8/2022.

[3] Disponível em: https://www.gcm.varginha.mg.gov.br/p/patrulhamento-preventivo.html Acesso em: 19/8/2022.

[4] Eufemismo: palavra, locução ou acepção mais agradável, de que se lança mão para suavizar ou minimizar o peso conotador de outra palavra, locução ou acepção menos agradável, mais grosseira ou mesmo tabuística.

[5] Direito Administrativo Brasileiro. 44ª ed. – São Paulo: Malheiros, 2020, pág. 136/137.

[6] Manual de direito administrativo. 6ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020, pág. 219.

[7] Manual de direito administrativo. 11ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2021, pág. 648.

[8] Direito Administrativo. 2ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2019, pág. 251.

[9] Direito Administrativo. 33ª ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020, pág. 325.

[10] Direito Administrativo Descomplicado. 29ª ed. – Rio de Janeiro: Forense; Método, 2021, pág. 254.

[11] CTN, art. 77. As taxas cobradas pela União, pelos Estados, pelo Distrito Federal ou pelos Municípios, no âmbito de suas respectivas atribuições, têm como fato gerador o exercício regular do poder de polícia, ou a utilização, efetiva ou potencial, de serviço público específico e divisível, prestado ao contribuinte ou posto à sua disposição.

[12] Direito Tributário. 15ª Ed. – Salvador: Juspodivm, 2021, pág. 62.

[13] Direito tributário essencial. 7ª Ed. – Rio de Janeiro: Forense, São Paulo: Método, 2020, pág. 129.

[14] Imposto é o tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal específica, relativa ao contribuinte.

[15] Curso de direito tributário completo. 11ª ed. – São Paulo: Saraiva Educação, 2020, pág. 73.

Sobre o autor

Celso Bruno Tormena

Graduando em Criminologia. Especialista em Direito Público, Segurança Pública e Processo Penal; Ex Analista Judiciário do TJ/MS. Atualmente Procurador Municipal em SP.

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