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Educação & Cultura

Cartografia: como aliar ferramentas digitais aos estudos?

A tecnologia pode ser uma aliada dos professores na visualização, interpretação e produção de mapas. Educadores, porém, alertam para a necessidade de propósito pedagógico e sugerem estratégias

Experimente observar duas imagens: de um lado, um mapa de regiões da antiga Mesopotâmia inscrito em argila cozida. De outro, as mesmas localidades, onde hoje é o Iraque, só que vistas na tela de um celular, pelo aplicativo Google Maps. Ao fazer isso, é fácil constatar que, ao longo da história da humanidade, diversos povos e culturas ao redor do mundo registraram suas percepções geográficas com o que tinham à disposição na época, até que a cartografia chegasse às tecnologias atuais. 

Hoje, ao deslizar as pontas dos dedos na tela de um smartphone, é possível viajar por ruas, bairros, cidades, estados e países dos seis continentes e até mesmo ver a Terra como se estivesse em um satélite na órbita do planeta. 

O professor Rodrigo Ferrari Baglini utiliza essas viagens virtuais em suas aulas de Geografia e Educação Digital com alunos dos Anos Finais do Ensino Fundamental na EMEF Espaço Bitita, na região central de São Paulo. Nesta escola, ir além dos limites geográficos é ainda mais interessante. Isso porque cerca de 40% dos estudantes são imigrantes bolivianos, bengalis, sírios, angolanos, paraguaios, indianos e namibianos, o que proporciona um terreno fértil para a utilização de ferramentas digitais com o propósito de alcançar um dos principais objetivos da cartografia, que é a valorização do indivíduo em diferentes territórios. 

Para isso, o professor adotou o Google Earth como ferramenta padrão para o ensino cartográfico, sobretudo nos percursos que podem ser construídos com os alunos e são oferecidos pela própria plataforma. Exemplo disso é fazer com que a classe possa conhecer os diferentes espaços dos territórios dos estudantes imigrantes por meio da navegação pelo aplicativo. 

Muitas vezes, no entanto, por conta das dificuldades de conexão à internet e acesso a equipamentos eletrônicos, Rodrigo também desenvolve atividades a partir de fotos feitas pelo celular, transformando em fotografias de sobreposição. 

“Com isso, é possível compreender o olhar do aluno e utilizar a cartografia como ilustração tangível do território junto às necessidades de vivência de cada ator político que envolve a comunidade escolar”, diz ele, que faz parte do grupo de Innovators da Google, time de educadores que atua na criação de experiências transformadoras utilizando a tecnologia, e do YouTube Edu, plataforma de conteúdos educacionais.  Mas, afinal, o que é a cartografia e por que seu ensino é importante?

Mapas e o cotidiano
“A cartografia é a área do conhecimento responsável pela produção, análise e interpretação dos mapas, que são representações da superfície terrestre e podem apresentar elementos naturais, populacionais, culturais, políticos e econômicos de uma área e em um determinado período”, explica Renata de Medeiros, autora de materiais didáticos de Geografia para o Ensino Fundamental 2 e pesquisadora sobre territorialidades simbólicas e cartografia afetiva. 

Os mapas fazem parte do cotidiano de pessoas de todas as partes do mundo, muito pela facilidade dos digitais, que permitem não só traçar caminhos como prever condições de estradas e saber a que horas um ônibus vai passar em determinado ponto, por exemplo. Mas eles também são representações do vivido, do imaginário e dos projetos futuros de um lugar. “O mapa de um plano diretor pode direcionar a produção do espaço para qualidade de vida, ou gerar a desigualdade social”, observa Sueli Furlan, chefe do departamento de Geografia da Universidade de São Paulo (USP)”. 

As geotecnologias no ambiente escolar

O esperado é que os estudantes concluam a alfabetização cartográfica no Fundamental 2. Isto é, aprendam a ler e produzir mapas para lidar com a sua linguagem e também seus usos, sobretudo para ampliar o entendimento da realidade próxima ou distante, e também como fonte de consulta e possibilidade de registro de dados. Para tanto, é fundamental aprender como os mapas são escritos, ‘o seu alfabeto’, o significado de pontos, linhas, polígonos, cores, formas, letras e topônimos. 

Pesquisadores da didática da cartografia afirmam que ler um mapa é mais do que apreciar o seu sentido aparente, pois ele é todo significado e traz uma construção histórica em determinado momento e lugar e, quase sempre, foi pensado e planejado. Nesse sentido, é fato que a tecnologia pode ser uma forte aliada dos professores, mas como integrar a utilização de ferramentas digitais com propósito pedagógico?

“O professor precisa saber ele mesmo usar as tecnologias. O trabalho com imagens de satélite está muito acessível, mas a maior parte das práticas são de observação e navegação em sites que contêm ferramentas e acervos digitais, como Google Earth e Mapbiomas”, diz Sueli. Para ela, é preciso ir além e os objetivos de aprendizagem podem ajudar na construção de sequências didáticas interessantes para os estudantes, de modo que o professor possa partir de perguntas disparadoras como: por que precisamos aprender a ler os tipos de tempo nos mapas dinâmicos de meteorologia? Qual a função social deste tipo de mapa do tempo? 

Na prática, há várias possibilidades para utilizar ferramentas digitais para trabalhar a cartografia com os alunos. Uma proposta é que professor e estudantes identifiquem situações-problema do seu cotidiano que podem ser lidos espacialmente. Por exemplo, a distribuição de equipamentos sociais na comunidade, na cidade ou bairro, os serviços públicos de transporte ou áreas verdes. Dessa forma, é possível pensar uma cartografia temática desses problemas, usando recursos de imagens de satélite disponíveis para identificar zonas melhor atendidas por serviços públicos ou mais carentes. 

Além disso, podem incluir camadas de informação como distribuição de renda ou tipos de moradias, consultando dados socioambientais oficiais, e propor uma  cartografia que integre informações. “Mapas deste tipo podem ajudar na conscientização geral das comunidades sobre os problemas que vivem. Podem se tornar verdadeiras análises diagnósticas do território”, ressalta Sueli. 

Dicas e pontos de atenção para trabalhar a cartografia com recursos digitais

A especialista Renata de Medeiros dá dicas e chama atenção para pontos que devem ser levados em conta na hora de trabalhar a cartografia com recursos tecnológicos:

1.Atenção ao utilizar mapas digitais sem que os estudantes tenham concluído o processo de alfabetização cartográfica e sem que tenham noções de direção, pontos de vista e proporcionalidade. Isso porque é preciso desenvolver o pensamento espacial para que as atividades sejam produtivas. Caso contrário, corre-se o risco de criar nos estudantes uma dependência tecnológica limitante.

2.O recurso digital fará todo sentido quando os alunos tiverem desenvolvido o pensamento espacial e tenham domínio da linguagem cartográfica. Isso não significa que seja necessário esperar todo o processo de alfabetização na temática para apresentá-los aos mapas digitais, que podem e devem estar presentes nas aulas desde os primeiros anos da escolaridade.

3.O contrário também vale, já que os jovens devem observar e manusear mapas desde cedo. Nesse sentido, é importante manter exemplares impressos nas salas de aula em diferentes posições, lembrando que a mais adequada é no chão ou sobre a mesa. Assim o estudante observa a representação olhando de cima em visão vertical.

4.Combinar os recursos digitais aos atlas ou mapas impressos expostos nas salas de aula é uma forma de oferecer aos alunos a possibilidade de reconhecer a representação cartográfica estática na dinâmica digital.


A cartografia como crítica social

Esse é o objetivo do Quebrada Maps, projeto criado e desenvolvido pelo professor Wellington Fernandes, que leciona Geografia para turmas de 8º e 9º ano na EMEF Brigadeiro Correia de Mello, no bairro Jardim Fernandes, zona leste de São Paulo. O educador define a iniciativa como uma metodologia experimental de construção de mapas de uma perspectiva crítica, criativa e participativa para, sobre e com a periferia. “Mobilizamos temas que são caros para nós, periféricos, a partir da cartografia”, explica o educador que é mestre em Cartografia Crítica e teve a ideia do projeto durante os estudos de mestrado, em 2015. 

“As experiências do Quebrada Maps acontecem não só nas minhas aulas como em parceria com outros professores e, também, instituindo na escola pequenos coletivos de estudantes que querem construir o mapa da sua quebrada. Convido esses jovens a participarem das atividades para, além das experiências em sala, termos grupos que conhecem o território onde a escola está inserida”, conta. 

As ferramentas mais utilizadas pelos estudantes, especialmente por serem mais acessíveis, são as do Google, tais como Google Maps e Google Earth, mas o professor aposta em outros serviços, como o Open Street Maps, inclusive, para diversificar no uso dos recursos digitais e para, segundo ele, que os estudantes desenvolvam um olhar mais crítico sobre as ferramentas disponibilizadas gratuitamente, sabendo quais são os desdobramentos do fornecimento de dados a grandes empresas.  

Mas, geralmente, os trabalhos começam pelo Google Maps que, para Wellington, é uma ferramenta interessante para dialogar sobre o território dos estudantes, além de ser simples e fazer parte do dia a dia deles. 
Atualmente, o professor tem trabalhado a maneira como o bairro Jardim Fernandes aparece no aplicativo e, com isso, levanta alguns questionamentos com a turma. Ao perceber que algumas referências espaciais dos alunos não constam no Google, o professor questiona sobre quais as possibilidades para editar esse mapa e adicionar, por exemplo, um lugar até então ausente. 

“Com isso, discutimos sobre os limites de mexer com uma base de dados cartográficos proprietários, e podemos dialogar sobre a ausência de neutralidade dos mapas, já que há exemplos diversos de vezes em que grandes empresas foram questionadas sobre como representavam favelas mundo afora ou quais favelas escolhem representar ou não”, pontua. 

Outro recurso bastante utilizado no Quebrada Maps é o Google My Maps, no qual os alunos podem ser autores dos mapas. “Aqui, é possível construir um mapa multimídia sobre o território a partir de um tema, por exemplo: lazer. Assim, criamos uma discussão sobre espaços de lazer dentro do bairro. Os alunos podem desenvolver um guia de rolês e de espaços culturais e, nesse processo, vão localizar esses pontos, investigar o território, realizando entrevistas, fotografias, vídeos, produzindo tudo isso e alimentando esse mapa multimídia no Google”, explica.

Google Street View é mais uma ferramenta utilizada por Wellington para explorar outros territórios e propor algumas provocações. “Gosto de usá-lo com a turma, como um todo, para fazer um movimento de explorar o continente africano e enxergar as proximidades com paisagens brasileiras que vamos encontrar lá e romper estereótipos a partir do campo virtual, algo que dá para fazer com milhares de temas”, garante. 

Para Wellington, mais importante do que o resultado do mapa final, é o processo de chegar até lá. “As discussões sobre os temas a partir de uma perspectiva espacializada é a riqueza da coisa e a geotecnologia facilita essa possibilidade, com imagens de satélite e serviços de mapa, porque a gente consegue se aproximar do território com a espacialização da cartografia e também ser autor de histórias, narrativas e análises sobre o nosso território, ou seja, se aproxima do que está no dia a dia”, reforça o professor. 

Apesar de usar diversos recursos tecnológicos para trabalhar a cartografia com os estudantes, Wellington enfatiza que adota ainda práticas mais simples, como mapas impressos, desenhos, relatos da comunidade e fotografias que, usadas com intencionalidade pedagógica, também são possibilidades cartográficas. 

Já o professor Rodrigo, da EMEF Espaço de Bitita, explica que a cartografia é utilizada em suas aulas a partir das ferramentas digitais de duas maneiras: uma com a utilização do Google Earth e a construção de percursos personalizados, de modo a proporcionar ao estudante o protagonismo e reconhecimento crítico de diferentes espaços. E a outra, com o uso de fotografias dos diferentes marcos presentes no caminho da escola até a residência de cada estudante. As fotografias são dispostas no Padlet (plataforma online que permite a criação de murais colaborativos) e, posteriormente, utilizadas para uma discussão sobre como o olhar de cada indivíduo pode cartografar o seu espaço.

As ferramentas digitais também ajudam os alunos da EMEF Espaço de Bitita a mapear e reconhecer de forma crítica o local onde moram.

Desafios no ensino da cartografia

Para Rodrigo, o principal desafio em relação ao ensino da cartografia é entender essa ciência enquanto ferramenta de transformação do espaço. “A cartografia é um espaço territorial, um espaço de construção de narrativas. A partir do momento em que você estabelece a cartografia como meio para traçar isso, você transforma o estudante em agente político”, reforça. 

Já na visão do professor Wellington, outro desafio é não olhar a geotecnologia como algo que vai resolver todos os problemas ou até mesmo esquecer de ter um olhar crítico sobre as tecnologias como um todo. Ainda mais porque muitas escolas públicas enfrentam diversas dificuldades de acesso à internet e a equipamentos eletrônicos. 

Neste sentido, a especialista Renata de Medeiros frisa que o fato dos recursos digitais serem tão atrativos aos jovens estudantes não pode e não deve ser a razão de escolha por parte dos educadores, uma vez que há assuntos que não requerem o uso de mapas de nenhum tipo e, em outros, o mapa será de grande valor na leitura da realidade, na ampliação da visão dos estudantes e no entendimento do que está sendo estudado. 

Mapas impressos

Confira a seguir uma sugestão de atividade elaborada por Renata de Medeiros, para trabalhar a cartografia com alunos do 7º ano que não requer o uso de tecnologias. 

BAIXE O MATERIAL AQUI

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