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Educação & Cultura

Projeto escolar muda a visão dos alunos sobre o bairro onde vivem

Professora da Bahia conta como envolveu estudantes em uma iniciativa voltada à construção de pertencimento e participação da comunidade

Sou professora de Intervenção Social no Colégio Estadual Deputado Luís Eduardo Magalhães, uma instituição de educação profissional na cidade baiana de Alagoinhas. Este componente me dá a possibilidade de debater as questões sociais mais urgentes do Brasil, de convidar os alunos a pensar em possíveis soluções e em seus projetos de vida. Por isso, quando preparo as aulas, sempre procuro correlações entre os temas a serem abordados e a realidade dos alunos.

Baixe materiais gratuitos para começar o trabalho com Projetos de Vida

Em 2016, durante uma aula sobre o sistema prisional brasileiro, conversamos sobre o envolvimento dos jovens com a violência e as drogas. Eles falaram muito sobre o próprio lugar onde viviam, e sobre como alguns jovens abandonam a escola por pensarem que o crime pode ser um caminho mais viável, enquanto outros jovens buscam na escola uma oportunidade de ascensão social. A partir dessa discussão, alguns estudantes – principalmente a Adrielle Bispo dos Santos e a Islaine Medeiros – me perguntaram: “Professora, por que a gente não faz uma enquete aqui na escola para conhecer os medos, problemas e anseios dos estudantes?” A ideia inicial era fazer esse levantamento e, a partir dele, criar algumas oficinais para o Dia do Estudante. Naquele momento, eu não imaginava que o projeto iria muito além daquela aula.

Fizemos um questionário, e os resultados revelaram um retrato que desconhecíamos. Uma das perguntas, por exemplo, pedia que os alunos definissem sua principal característica e 70% não conseguiram apontar nada de positivo. Outras perguntas nos mostraram questões diversas, desde os muitos problemas familiares que os alunos enfrentavam até seu grande interesse em aprender algo relacionado à música, dança e teatro. Aliás, muitos estudantes que eram vistos como aqueles que “não tinham jeito” eram justamente os que mais queriam participar.Reuniões iniciais para discutir o projetoAnteriorPróximo

Como planejado, no Dia do Estudante fizemos várias oficinas e dinâmicas, muitas delas voltadas a melhorar a autoestima dos jovens. Procurei profissionais da área de psicologia e eles foram à escola para conversar com os estudantes. Percebemos que havia muito interesse, então decidimos transformar a ideia da aula em um projeto.

O primeiro passo foi estudar: de outubro de 2016 a janeiro de 2017, eu e três alunas nos dedicamos a ler autores como Paulo Freire, Célestin Freinet e Anísio Teixeira, e definir qual era o problema que precisava ser resolvido. Intitulamos o projeto de “Da Escola para o Mundo”, porque nossa ideia era melhorar a autoestima dos alunos para que eles começassem a ter um olhar diferenciado sobre si mesmos e sobre o bairro onde estavam inseridos. Essa questão do bairro era importante, porque a enquete também tinha revelado que muitos estudantes tinham vergonha ou incômodo em dizer que viviam no Barreiro, a região da escola, onde há um alto índice de violência.

O passo seguinte foi procurar parceiros, e encontrei muitos deles na Secretaria Municipal de Assistência Social. Passamos a ter psicólogos, assistentes sociais, artistas e outros profissionais acompanhando o projeto. O primeiro encontro aconteceu em um domingo. Convidamos tanto os alunos quanto os pais a participarem de um dia festivo, de apresentação do projeto. Depois, passamos a utilizar sábados, domingos e feriados para as oficinas. Ou seja, a escola ficava aberta durante os fins de semana para os jovens e toda a comunidade.O projeto tomou uma dimensão que a gente não esperava, porque os estudantes começaram a trazer o amigo, o vizinho.

O projeto tomou uma dimensão que a gente não esperava, porque os estudantes começaram a trazer o amigo, o vizinho. Isso mudou a cara da escola e o modo como ela é vista pela comunidade. Uma mulher de 60 anos, por exemplo, me contou que deixava a novela de lado para ir até a escola participar da oficina de informática junto com seu neto.

Realizamos várias atividades diferentes, sempre baseados no levantamento que tínhamos feito e nos interesses dos alunos. A oficina de informática, por exemplo, foi pensada porque, segundo a pesquisa, a maior parte dos estudantes não tinha noções básicas sobre o tema. Muitas atividades abordavam questões como autoconhecimento, autoimagem, comunicação. Os psicólogos faziam atividades coletivas, mas também iam detectando os estudantes que tinham problemas mais graves, seja familiares ou em relação a si mesmos, para encontros individuais.

Uma das oficinas mais marcantes foi a de violino. Comuniquei à Secretaria Municipal de Assistência Social sobre o grande interesse dos alunos por música, e me disseram que um artista da cidade, o Ulisses, poderia dar aulas quinzenais de violino. Eu achava que este instrumento não era parte da realidade dos alunos, e por isso não chamaria muito a atenção. Mas decidimos tentar. Na primeira oficina, com seis ou oito alunos, o Ulisses levou dez instrumentos – violino, violão, contrabaixo etc. Ele apresentou cada um e só depois começou a propor os exercícios. Os alunos acharam aquilo a coisa mais linda do mundo, e eu também fiquei boba de ver. Porque antes de ensinar a tocar, o Ulisses trazia muita história para os estudantes. Eles entenderam a música e entenderam o instrumento. Isso foi encantador. Depois que filmamos a primeira aula e colocamos o vídeo no Instagram, outros alunos se interessaram. Pouco depois, já tivemos de organizar dois turnos.

Esta atividade também me ajudou a mapear os alunos que já tocavam instrumentos na igreja ou em suas comunidades. Organizamos uma apresentação de fim de ano para a comunidade e, naquele dia, vi pais chorando dentro da escola. Pais emocionados em ver seus filhos ali, tocando.Percebi que envolver as famílias no projeto foi uma decisão muito acertada, pois os pais começaram a ver a escola como uma possibilidade de melhorar a relação com seus filhos

Uma outra ocasião marcante foi quando fizemos um dia de ação social na escola. Tinha gente cortando cabelo, fazendo cadastramento para o Bolsa Família e carteira de identidade, oferecendo apoio jurídico e psicológico. Neste dia, cheguei às 7h e saí às 18h. Quem chegava, via o que estava acontecendo e ia chamar o filho, o vizinho. Percebi que envolver as famílias no projeto foi uma decisão muito acertada, pois os pais começaram a ver a escola como uma possibilidade de melhorar a relação com seus filhos. E muitas relações de fato melhoraram.

As ações foram transformadoras para vários alunos e para a construção de seus projetos de vida, principalmente no sentido de descobrirem talentos e se sentirem mais capazes. Os estudantes que lideraram a iniciativa hoje estão na universidade e todos dizem que antes do projeto, não tinham a noção de que a universidade era um espaço para eles.

Mesmo formados, estes alunos continuam participando do projeto. Atualmente, temos feito reuniões virtuais a cada quinze dias para discutir os anseios e medos dos jovens durante a pandemia. A suspensão das atividades presenciais dificulta, mas parte dos professores criou uma gincana online na qual os alunos ganham pontos se conseguissem realizar determinadas tarefas no tempo certo. Essas tarefas incluíram, por exemplo, produzir um vídeo sobre o trabalho dos garis na pandemia e criar um pôster para melhorar a autoestima dos jovens que estão desanimados por causa do fechamento das escolas.

O projeto Da Escola para o Mundo ganhou vários prêmios, inclusive o Desafio Criativos na Escola de 2017. Mas não o criamos porque queríamos ganhar prêmios, e sim porque queríamos resolver um problema. E o projeto nasceu dos alunos – meu papel foi dar suporte para tornar a ideia mais sólida. Acho que precisamos pensar cada vez mais sobre o protagonismo dos estudantes e sobre a importância de a escola olhar para seus talentos, que muitas vezes estão encobertos pelos problemas que enfrentam. A escola precisa trabalhar todo tipo de conhecimento. Falamos muito sobre múltiplas inteligências, mas às vezes nos esquecemos de colocar esse discurso em prática. Se exercitarmos essas múltiplas inteligências, os alunos aprendem a disciplina que quiserem.Tenho colegas que questionam se o que eu faço é mesmo uma aula, ou que dizem que minha aula é barulhenta, porque saio da sala, vou para rua

Muitos educadores ainda estão presos a um modelo cartesiano de educação, no qual dar “aula” é entrar na sala, reproduzir conhecimento e passar atividade para o aluno. Tenho colegas que questionam se o que eu faço é mesmo uma aula, ou que dizem que minha aula é barulhenta, porque saio da sala, vou para rua. O novo assusta, mas, com esse trabalho, tirei de mim a crença de que só ensino quando reproduzo conhecimento. Hoje, acredito que a gente aprende por vários caminhos, e me sinto como uma agente que está aqui para ajudar o outro a pensar diferente e a encontrar respostas.

Venho de uma formação de caixinha, mas o trabalho com projetos tira a gente da caixinha. Este projeto me levou a uma pedagogia na qual me sinto mais livre – e que também é libertadora para o estudante, que passa a ter mais autonomia, mais escolhas, a sentir que pode tomar diferentes caminhos.

Esse projeto mexeu muito comigo. Fez com que eu me sentisse mais perto dos alunos e que me tornasse uma profissional melhor, com um olhar mais humano. Não me tornei “mãezona” dos alunos, como alguns me disseram. O que me tornei foi uma professora mais atenta. Os estudantes passaram a confiar em mim e isso me serviu de estímulo.

Minha sugestão para professores que querem trabalhar com projetos e habilidades socioemocionais é: ouçam seus alunos. Percebam o que eles anseiam, quais suas dificuldades e seus medos, e trabalhem a partir daí. Todo mundo tem sonhos, mas às vezes eles são cortados pelas dificuldades. O professor pode ajudar ouvindo o estudante e provocando-o a falar. Mas para isso, precisa planejar a partir da escuta, nunca antes de ouvir o estudante.

O trabalho nesse projeto me fez ter orgulho de mim mesma. Fico feliz de ter me dado essa chance, e de sentir que a comunidade tem um olhar diferente para mim, e que eu tenho um olhar diferente para a comunidade. Um dos maiores presentes foi a questão do bairro: muitos daqueles mesmos estudantes que tinham vergonha do lugar onde viviam, hoje dizem com orgulho que estudam no Barreiro. Conseguimos construir identidade, pertencimento. Este ganho ninguém tira e salário nenhum paga.

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