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Judiciário

A ‘travessia do Bojador’

Desafios da regulamentação do trabalho escravo para garantia da efetividade da norma

Até o século XV, época em que foi registrado o primeiro leilão de cativos africanos em Portugal, existia uma barreira psicológica, que impedia a travessia dos portugueses ao Cabo do Bojador. Situado na costa do Saara Ocidental, no Oceano Atlântico. Era também conhecido como o Cabo do Medo. Relatos de desaparecimentos de embarcações, existências de monstros, acontecimentos sobrenaturais e outros estigmas eram os principais impeditivos de se ultrapassar esse marco.

Em 1434, portanto, o mistério foi esclarecido e a barreira foi ultrapassada. O português Gil Eanes foi o primeiro a atravessar e retornar salvo, pois compreendeu o segredo das correntes, que nada tinha a ver com a esfinge que tanto postergou esse feito.

Essa conquista foi fundamental para a navegação portuguesa e possibilitou a navegação por mares desconhecidos, abrindo as portas para os descobrimentos. Além disso, o feito passou a representar a superação dos limites do homem e mereceu a famosa homenagem, 500 anos depois, com a publicação do poema “Mar Português”, de Fernando Pessoa, em 1.934.

Compreender a história e reconhecer que o mercado escravo foi por muito tempo a base do crescimento das principais nações e dos principais setores econômicos nacionais, desde a época do descobrimento do Brasil, nos engenhos de açúcar (que iniciou em Pernambuco) e nas minas (que teve Minas Gerais como base de sustentação), quando da busca pelos metais, é essencial para entendermos de onde viemos, onde estamos e qual a meta queremos atingir, quando está em jogo o combate às práticas arcaicas nas relações de trabalho e seus mecanismos legais de proteção.

A mercancia humana foi um dos principais itens das relações de comércio exterior, desde o início de sua prática, ininterruptamente, e compreendeu um período importante do século XIX. A abolição da Escravidão se deu em um processo de conquistas constantes e graduais, como a Revolta dos Malês (importante insurreição africana, ocorrida no Brasil em 1.835); a Lei do Ventre Livre, que em 1871 garantiu a libertação dos filhos de escravos; a Lei dos Sexagenários, que em 1.885 garantiu a liberdade dos escravos com 60 anos de idade ou mais; até a promulgação da Lei Áurea, que em 1.888, ao menos formalmente, concedeu a liberdade aos escravos brasileiros. Em outros países a escravidão perdurou até o Século XX, como na Etiópia (1.942), Marrocos (1.956), Arábia Saudita (1.962).

Na Mauritânia a escravidão foi permitida até o século XXI, tendo sido extinta apenas em 2007.

Sobre esse tema – ESCRAVIDÃO – é vasta a literatura, mas, aos interessados, recomendamos a leitura do primeiro livro já lançado (“Escravidão – Volume I – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares”) da trilogia anunciada por Laurentino Gomes. Certo é que, as conquistas e avanços não foram entregues por benevolência, mas arrancadas graças a um processo de revoltas, perseverança, coragem e lutas. Com a evolução da humanidade e, consequentemente, das relações de trabalho, é pacífico o entendimento de que a escravidão moderna não se dá mais pelos mesmos métodos do passado, mas necessariamente mantém a mesma linha mestra abominável: a “coisificação” da pessoa.

Passadas as considerações iniciais, é hora de atacarmos o problema: ao equipararmos o trabalho escravo com o trabalho degradante, de forma simplória e desconectada da realidade de cada caso concreto, estamos contribuindo para o combate ao trabalho escravo ou estamos criando brechas para o verdadeiro escravagista (praticante da escravidão dos novos tempos)? Acreditamos na segunda opção e trazemos para reflexão duas máximas conhecidas:

1) quem sublinha todo texto não destaca nenhum trecho; 2) se o problema da criminalidade fosse resolvido com o tamanho das penas, bastava adotar a pena máxima para todos os crimes como solução. Entendemos ser esse dilema o “Cabo do Bojador” que devemos atravessar. E, que fique claro: tanto uma conduta (redução da pessoa à condição análoga de escravo) quanto outra (submissão da pessoa ao trabalho degradante) são condenáveis e a boa regulamentação permitirá a atribuição de responsabilidades às pessoas físicas e jurídicas que insistirem nesses caminhos.

Pois bem, em razão da complexidade e importância, o tema é tratado em mais de um regulamento e envolve várias disciplinas do direito. Assim, o avanço se faz necessário a partir de uma análise do Código Penal; das Portarias que enunciaram e enunciam regras sobre o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo; e da Instrução Normativa, do Ministério do Trabalho e Emprego, que dispõe sobre a fiscalização para a erradicação do trabalho em condição análoga à de escravo.

No campo penal, o Decreto – Lei nº 2.848, de 07 de dezembro de 1940, definiu o crime como “Redução a condição análoga à de escravo”, estabelecendo a pena de 2 a 8 anos. Tal regramento foi alterado em 2003 e, desde então, o trabalho degradante foi incluído no caput do artigo 149 e foi mantida a mesma pena privativa de liberdade anteriormente prevista, aos dois crimes, ambas condutas integrantes do mesmo artigo e que compõem a caracterização do trabalho escravo enquanto fato típico criminal.

No campo das relações de trabalho, em 2003, o então vigente Ministério do Trabalho e Emprego, por meio da Portaria nº 1.234, estabeleceu procedimentos para encaminhamentos de informações sobre inspeções do trabalho a órgãos, relacionadas a empregadores que submetem trabalhadores a formas degradantes de trabalho ou os mantêm em condições análogas à de trabalho escravo. A norma diferenciou uma conduta da outra, embora tenha mantido a mesma consequência a quem os praticasse: o encaminhamento de informações sobre inspeções do trabalho. Nascia assim a famigerada lista suja do trabalho escravo.

Em 2004, a Portaria de 2003, foi substituída pela Portaria nº 540, emitida pelo mesmo órgão – MTE, porém com uma diferença substancial: a expressão trabalho degradante foi excluída dessa nova portaria. Como não existem letras mortas em normas, a manutenção do cadastro do empregador que submeter empregado à condição análoga de escravo foi reafirmada com o novo texto. Lado outro, a inclusão em lista de empregadores que submeterem empregados a trabalho degradante foi rechaçada. Afirmar isso não é e nem pode ser transformado em tabu, é conseqüência prática da opção normativa, conforme aprendemos no primeiro semestre da faculdade de direito.

Em 2011, nova portaria foi editada, essa assinada por dois órgãos, além do MTE, também foi signatária a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Diferentemente da opção regulamentar da primeira portaria que criou a lista, porém em consonância com a segunda, o trabalho degradante não autorizava a inclusão em lista. Todavia, em 31-03-2015, por novo ato interministerial, a Portaria nº 2 (MTE/SDH) revogou a portaria anterior, num esforço válido, ao que nos parece, para aperfeiçoar os critérios de inclusão no Cadastro, além de delimitar temporalmente seu alcance.

Em 11-05-2016, nova Portaria Interministerial foi editada, a MTPS/MMIRDH nº 4, que estabeleceu regras para o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo, confirmou mais uma vez o interesse de punir de forma mais gravosa, os empregadores que praticassem a infração administrativa máxima (trabalho escravo) no âmbito da relação de trabalho (além do possível cometimento do crime e suas responsabilizações na seara penal).

Em 13 de outubro de 2017, o Ministério do Trabalho e Emprego editou a Portaria 1.129/2017. Por meio dessa norma, o Executivo apresentou conceitos de Trabalho Forçado, Jornada Exaustiva, Condições Degradantes, Condição Análoga de Escravo. Com essa Portaria, somente os empregadores que submetessem os trabalhadores a condições análogas à de escravo seriam incluídos no Cadastro de Empregadores, ou seja, a referida Norma além de diferenciar as condutas, restringiu a hipótese de inclusão em lista somente dos processos administrativos que concluíssem pela existência de trabalho escravo.

A Ministra do Supremo Tribunal Federal, Rosa Weber, compreendeu que a Portaria atenuou o alcance das políticas de repressão, prevenção e de reparação às vítimas do trabalho em condições análogas à de escravo e suspendeu a Norma. Porém, em 28 de dezembro de 2017, a Portaria 1.293 apresentou nova regulamentação, em substituição a que foi suspensa pelo STF.

O novo texto, portanto, classificou a condição análoga à de escravo, relacionando o instituto com as situações em que o trabalhador seja submetido, de forma isolada ou conjuntamente, a trabalho forçado; jornada exaustiva; condição degradante de trabalho; restrição, por qualquer meio, de locomoção em razão de dívida contraída com empregador ou preposto, no momento da contratação ou no curso do contrato de trabalho; retenção no local de trabalho.

Como visto, de outubro de 2017 para dezembro de 2017, o Poder Executivo deu uma guinada na definição normativa. Em outubro, classificou de forma diferente as diversas condutas e restringiu a hipótese de inclusão no cadastro (Lista Suja do Trabalho Escravo), somente quando configurada a prática de trabalho escravo; e, em dezembro, equiparou as diferentes condutas e estendeu as hipóteses de inclusão na Lista a todas elas.

Por fim, em 14 de setembro de 2020, o STF julgou constitucional a Lista Suja do Trabalho Escravo, em decisão proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 509. A referida ação sustentava a inconstitucionalidade do cadastro sob outro aspecto: a ofensa ao princípio da reserva legal, ou seja, a criação de um cadastro de caráter sancionatório só poderia se dar por meio de lei.

Todavia, o STF entendeu que a lista simplesmente dá efetividade à Lei de Acesso à Informação, sendo que a divulgação dos resultados das inspeções é o reflexo do interesse coletivo, sem natureza punitiva.

Com todas as vênias devidas, difícil não compreender como uma punição a inclusão em uma lista que a própria alcunha já a qualifica como “suja”, sobretudo quando as consequências de tal inclusão, ainda que operadas por terceiros, são gravíssimas para os arrolados.

Repita-se: o tema merece toda a força coercitiva do Estado, e a defesa que se pretende é justamente o fortalecimento da opressão a qualquer empregador que submeta ou tenha submetido trabalhadores à condição análoga à de escravo. Para tanto, é preciso punir, e se é preciso punir, necessário dar à lista a força de lei.  Nesse cenário, por ora, a lista é meramente informativa e constitucional por não punir. Fica claro que ainda não atravessamos o bojador!

Diante dessa análise histórica, não restam dúvidas de que o tema é extremamente complexo, sobretudo pelas conseqüências das interpretações. No campo penal, compreendemos como o maior problema a opção legislativa de caracterizar ações distintas – submeter alguém a trabalho escravo ou degradante – como se fossem fatos típicos únicos com as mesmas penas aplicáveis. Não o são! E daí o imbróglio quando o fato repercute em consequências para as relações de trabalho. A necessidade de modular as penas de acordo com a gravidade dos delitos não é uma concepção nova no direito penal.

Ainda no Século XVIII, precisamente no ano de 1.764, rompendo a concepção de que a pena constituiria uma espécie de vingança coletiva, Cesare Beccaria publicou o tratado “Dos Delitos e Das Penas”, que se tornou um clássico da literatura criminal. Em seus estudos, Beccaria defendeu que a pena deveria se dar na medida da previsão legal, não podendo ser mais severa para não se tornar injusta. Partindo da premissa de que submeter alguém a condição análoga à de escravo é medida que merece maior reprimenda estatal do que submeter alguém a um trabalho degradante, concluímos que é falho o nosso Código Penal: ou um tem a pena maior que deveria ou o outro tem a pena menor do que deveria, mas foge da lógica jurídica, as mesmas penas para fatos de diferente gravidade.

Além disso, a falha é ainda maior, porque a conceituação dos institutos é vaga, cabendo ao Judiciário a árdua missão de prestar a jurisdição de acordo com a concepção do julgador competente em cada caso concreto, o que leva à insegurança jurídica e ao fracasso da eficácia dos institutos.

Essas lacunas são sempre prejudiciais, porém, no campo penal, são inadmissíveis! Não nos enganemos por interpretações momentâneas que possam coincidir com o nosso desejo acalorado de uma justiça instantânea, pois a falta de regulamentação, além de abrir a porta para a compreensão de que todos os atos sejam tidos como criminosos, também é a mesma chave que permite a compreensão de que nenhum ato será tido como crime. Mais uma vez reiteramos: não queremos dizer que ambas as condutas não devam ser reprimidas, mas não podemos conceber que a Escravidão, que tantas cicatrizes deixou em nossa história, possa ser banalizada.

Precisamos atravessar o Bojador: quais fatos na relação de trabalho, hoje, importam na coisificação do ser humano, e quais fatos importam em violação à sua moral sem torná-lo, necessariamente, um objeto precificado? Equiparar os fatos de forma indistinta nos parece enfraquecer o combate ao mal maior.

No campo da responsabilização empresarial, em tempos em que as boas práticas corporativas são cada vez mais exigidas, não apenas pelo Estado, mas, sobretudo, pela sociedade, que municiada de informações que circulam de forma cada vez mais célere e difundida, em razão dos avanços tecnológicos, não podemos estimular a veiculação de listas não sustentadas em critérios objetivos de exposição ou arrolamento de pessoas, sejam elas físicas ou jurídicas. Não se pode negativar o consumidor adimplente, nem tampouco sujar o empregador produtor de riquezas lícitas.

Ora, a denominada Lista Suja do Trabalho Escravo provoca danos muito além da mancha do nome do empregador e da grave e irreparável desvalorização da sua imagem, porque o empregador inscrito na lista pode ser impedido de celebrar contrato de empréstimo, convênios envolvendo recursos públicos, e outras restrições que, necessariamente, inviabilizam a perpetuação do seu negócio. Aqueles que se valem do trabalho escravo para obter lucros, ofendem não só a dignidade humana, mas também a livre concorrência daqueles que competem o seu mercado – decorrendo daí a necessária punição exemplar e inibitória. Todavia, a negativação injusta e precária é pena de morte sem possibilidade de clemência.

Nesse sentido é que defender a diferenciação das condutas, a responsabilização na medida da gravidade de cada uma delas, após a tramitação de procedimento administrativo, em que a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal sejam respeitados, não pode ser compreendido como ato de defesa do trabalho escravo ou de valorização do mal empregador, pelo contrário, a manutenção da continuidade das atividades dos bons empregadores é fundamental para a garantia dos avanços econômicos e sociais de qualquer nação.

Mas, além disso, defender a clareza das normas materiais e exigir a aplicação das normas processuais, é garantia do Estado Democrático de Direito. O cidadão tem o direito de saber quais são os limites de seus atos, não podendo ficar a mercê de decisões variadas em situações idênticas, pois como já bem afirmou John Locke: “o abuso começa onde a lei acaba“.

Inclusive, a dose do remédio é o que o diferencia do veneno. Nesse sentido, regulamentações de um tema com tamanha importância, relevância e complexidade jurídica por meio de Portarias envenenam e não curam o paciente. Portarias não nos parecem ser os instrumentos legislativos adequados para regulamentar tema de tamanha complexidade. O monstro precisa ser enfrentado e o mistério somente será desmistificado com uma embarcação forte, sólida e pétrea.

A regulamentação é necessária, maus empregadores deverão ser punidos, mas, somente com medidas justas evitaremos a supressão de direitos e retrocessos. Não regulamentar, de forma eficiente e segura, ou não separar o joio do trigo, é aceitar que a base de sustentação de direitos tão importantes permaneçam sobre solos argilosos. Esse é o Cabo do Bojador que propomos a travessia e que, sem dúvidas (assim como no poema), valerá a pena!

GABRIEL GUIMARÃES DE ANDRADE – Advogado, sócio fundador do escritório Andrade, Antunes e Henriques Sociedade de Advogados.
RAFAEL ANTUNES FREDERICO – Advogados, sócios fundadores do escritório Andrade, Antunes e Henriques Sociedade de Advogados.

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