Educação & Cultura
Como o legado de Magda Soares pode ajudar os professores na alfabetização?
Educadora e pesquisadora, e uma das maiores especialistas brasileiras no assunto, criou o importante conceito de alfaletrar
A discussão a respeito de qual é o melhor método para a alfabetização é uma das mais antigas e controversas da Educação, tanto entre pesquisadores quanto entre educadores. Atualmente, já se entende que não existe uma única ou a melhor metodologia, mas sim uma diversidade de estratégias e a adaptação das formas de alfabetizar ao contexto de cada turma.
Essa perspectiva é compartilhada por Magda Soares (1932-2023), uma das grandes referências em alfabetização no Brasil. A pesquisadora defendia que o melhor método de alfabetização é aquele que faz as crianças aprenderem sobre a língua escrita, participando de práticas sociais relacionadas à leitura e à produção de textos.
Magda Soares e o processo de alfabetização
Durante quase todo o século 20, prevaleceu a busca por um método de alfabetização considerado perfeito, mas o cenário foi modificado na década de 1980, quando ganharam força as descobertas das pesquisadoras Emília Ferreiro e Ana Teberosky. Elas propõem que, em vez de olhar para a metodologia, é necessário focar o estudante e como ele aprende.
“A partir dessa discussão, passou-se a crer que, quando se considera o percurso da criança para aprender, não se precisa de método, o que é um equívoco. Não há uma ação pedagógica que não seja orientada por um método”, afirma Maria José Nóbrega, a Mazé, formadora de professores e consultora em metodologia de Língua Portuguesa da NOVA ESCOLA.
Mazé explica que, hoje, se considera que é necessário levar em conta os saberes de cada criança, mas sem abandonar os métodos. Isso significa que uma metodologia não será adotada por si só, mas a partir das necessidades dos estudantes.
A especialista pontua que o professor deve refletir a respeito de algumas questões. Por exemplo, como investigar o que as crianças sabem; quais materiais didáticos selecionar; como dispor o espaço da sala para que ele se transforme em um ambiente alfabetizador; como organizar a turma e quais competências esperar que as crianças desenvolvam. “Todas as respostas a essas perguntas têm por trás um método”, afirma Mazé.
Em entrevista à NOVA ESCOLA em 2020, Magda comentou que não usava nenhum método específico em seu trabalho na rede de Lagoa Santa (MG), onde colocou sua teoria em prática nos 15 últimos anos de sua vida. “Quando falamos em método, falamos o que o professor vai fazer. Sempre implica uma ação do professor, mas o foco é pensar em como a criança aprende e daí definir o que fazer. Nós orientamos a aprendizagem da criança para a alfabetização e o letramento”, afirmou Magda.
Quem foi Magda Soares?
Magda Soares foi uma educadora e pesquisadora brasileira e uma das maiores referências em alfabetização no país. Natural de Belo Horizonte (MG), ela foi professora emérita e uma das fundadoras da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além de autora de diversos livros.
Sua linha de pesquisa sobre alfabetização foca a ideia de que o letramento deve acontecer junto com a alfabetização, apresentando às crianças as funções sociais da língua logo cedo.
Magda colocou suas ideias em prática na cidade de Lagoa Santa (MG). Nos seus últimos 15 anos de vida, ela se dedicou a modificar o currículo da alfabetização na rede de ensino municipal, revolucionando a prática local. Faleceu aos 90 anos, no último dia 1º de janeiro, mas seu legado permanece.
“A gente tem aqui o antes e o depois da Magda”, afirma Janair Cassiano, coordenadora do Núcleo de Alfabetização de Lagoa Santa. “Ela mostrou que é possível fazer uma Educação pública de qualidade. É inquestionável tudo o que ela fez e tudo o que ela deixou para a gente, e isso vai valer por muitas gerações.”
Magda Soares e a BNCC
Magda iniciou seu trabalho em Lagoa Santa em 2007, quando colocou em prática as teorias que vinha estudando na vida acadêmica – e vice-versa, já que a prática na rede também deu origem a novos estudos científicos.
Desde o início do trabalho, o currículo de alfabetização do município passou a focar metas que definem o que as crianças têm direito a aprender em cada fase de desenvolvimento. Inicialmente propostas por Magda, essas metas são debatidas com todos os professores, sempre fazendo as adaptações necessárias de acordo com o que é percebido na prática.
Embora o projeto de alfabetização de Lagoa Santa seja anterior à Base Nacional Comum Curricular (BNCC), já que o documento foi consolidado apenas em 2017, ambos dialogam de diversas formas.
Janair lembra que, quando a rede foi implementar a BNCC, poucas alterações tiveram de ser feitas no currículo da alfabetização. Segundo ela, as metas estabelecidas por Magda eram muito similares às habilidades propostas pela BNCC para os Anos Iniciais do Ensino Fundamental. Às vezes, a nomenclatura era outra, mas a função era a mesma.
“Se você comparar as metas de continuidade que ela criou com as habilidades da BNCC, vai perceber que as metas são mais simples, mais objetivas e mais recortadas”, analisa Mazé. “Do ponto de vista de orientar o trabalho do professor, as metas são mais claras. Quando você as mostra para o professor, ele sabe com mais precisão o que precisa ensinar e com que prioridade. Ao passo que, quando ele vai para a Base, às vezes fica confuso com uma pulverização de conteúdos que estão dentro de uma mesma habilidade”, ressalta. “Ao esmiuçar a BNCC dentro dos currículos, o ideal seria que as redes chegassem a algo próximo das metas propostas por Magda.”
“Alfaletrar” de Magda Soares: unindo alfabetização e letramento
Uma ideia defendida por Magda era a de permitir que os alunos, já na Educação Infantil, desenvolvessem habilidades que serão usadas futuramente no processo de alfabetização, o que também aparece na BNCC. “Não é uma questão de alfabetizar na Educação Infantil, mas de ter um trabalho direcionado e intencional que leve as crianças para o mundo letrado”, explica Janair. “A consciência fonológica [identificar sons individuais, separar palavras em sílabas, identificar semelhanças sonoras entre palavras e manipular sílabas e sons, como fazer rimas] é importantíssima de ser trabalhada nessa etapa, porque dá uma base realmente bem refinada para as crianças já no 1º ano.”
Nessa etapa de ensino, as modificações de currículo em Lagoa Santa foram um pouco maiores do que aquelas feitas no currículo do Ensino Fundamental. Isso porque a Base traz a proposta dos campos de experiência, não abordados por Magda, que precisaram ser incorporados no documento.
Outra similaridade entre o trabalho de Magda e a BNCC é a ideia de unir alfabetização e letramento – o alfaletrar, um dos conceitos mais importantes deixados pela educadora. “O que a Base faz é assumir que precisa das duas coisas, do letramento literário e de um trabalho com a consciência fonológica. Então, a Base integra, como orientação final, esses dois aspectos”, afirma Sônia Madi, especialista em alfabetização, leitura e escrita.
Embora os aprendizados exijam processos cognitivos diferentes, o que Magda defendia é que eles devem ser trabalhados simultaneamente, já que se ajudam de forma mútua.
“As crianças de lares letrados, que convivem em ambientes culturais onde a escrita tem sentido, conseguem se alfabetizar com maior facilidade. A ideia de letramento, transformada no ensino, é uma imersão na literatura”, pontua Sônia.
Ciclo de alfabetização e letramento
Conheça cada uma das etapas desse processo
Fase pré-fonológica
As crianças desenvolvem suas primeiras reflexões sobre o sistema de escrita alfabética. Elas ainda não sabem que as letras representam sons nem que a escrita das palavras são a notação gráfica de sua sequência sonora.
Consciência silábica
Nesta etapa, as crianças começam a se dar conta de que as palavras são formadas por partes, e algumas já conseguem pronunciar as sílabas pausadamente. Por estarem em hipótese silábica, podem considerar que cada sílaba pronunciada corresponde a uma letra.
Consciência grafofonêmica
Indo além da consciência silábica, as crianças começam a perceber que existem sílabas formadas por mais de um som, e passam a usar mais de uma letra para representar esses sons, ou seja, os fonemas. Além disso, começam a compreender a relação entre grafemas (as letras) e fonemas (os sons).
Conhecimento das letras
As crianças começam a conhecer as letras, passando por variadas hipóteses de escrita (pré-silábica, silábica sem valor sonoro e silábico com valor sonoro).
Conhecimento das relações fonema-grafema
Os alunos passam a relacionar os sons às suas respectivas letras, passando pelas hipóteses de escrita silábico-alfabética, alfabética e ortográfica.
Veja também esse especial multimídia baseado na proposta de Magda Soares de alfabetizar letrando.
Magda Soares: o papel central das bibliotecas na alfabetização
Segundo Sônia, Magda Soares faz com que o lugar de brilho dentro de cada escola seja a biblioteca. “Ela investiu muito em um currículo no qual a biblioteca tem um lugar central. Se as crianças são de lares não letrados, elas precisam conviver com livros e leitores na escola.”
A ideia proposta, portanto, é inserir o contato com os livros no dia a dia das crianças mesmo antes de elas saberem ler. Em paralelo a isso, o processo de alfabetização é executado, permitindo que elas avancem em ambas as vertentes ao mesmo tempo.
Sônia salienta que levar o legado de Magda para a prática passa por três aspectos: proporcionar às crianças momentos de leitura e escrita com significado social; utilizar jogos de alfabetização e interagir com os alunos, sempre dialogando, respeitando o processo de cada um e intervindo da melhor forma possível.
“A gente tem, aqui em Lagoa Santa, o antes e o depois da Magda”, afirma Janair. “Depois dela, os professores já sabem o que fazer, como fazer, por que fazer e como desenvolver isso tudo naturalmente com os alunos”, completa.
Miniglossário
Conheça alguns termos importantes para entender a teoria
Alfabetização
Processo pelo qual os sujeitos se apropriam do sistema de escrita alfabética e das convenções gráficas, manipulando-os a fim de ler e escrever com autonomia.
Letramento
Diz respeito à introdução das crianças às práticas sociais da língua escrita. Compreende o desenvolvimento das habilidades que permitem ler e escrever de forma adequada e eficiente, nas diversas situações sociais relacionadas a diferentes gêneros e tipos de textos.
Fonema
Unidade mínima do sistema fonológico. A substituição de um som por outro capaz de estabelecer contraste de significado entre palavras de contexto idêntico é o teste usado pelos linguistas para identificar os fonemas de uma língua. Por exemplo, o /m/ de “mata” e o /d/ de “data” são fonemas em português; assim como /g/, /p/ e /t/: “grata” “prata” “trata”. Por convenção, usam-se barras inclinadas à direita // para representar os fonemas.
Grafema
Unidade mínima de um sistema de escrita. Pode representar um fonema nas escritas alfabéticas (como a escrita da Língua Portuguesa), uma sílaba nas escritas silábicas ou ainda uma ideia nas escritas que usam ideogramas.
Consultoria pedagógica: Mazé Nóbrega, consultora de Língua Portuguesa e professora de pós-graduação do Instituto Vera Cruz, em São Paulo (SP)
Fonte: Nova Escola