Educação & Cultura
Fibonacci e o Direito Internacional
Atual sistema internacional padece de uma crise insanável de legitimidade
Aquele que busca o conhecimento da verdade deve buscar em primeiro lugar a verdadeira fonte da verdade – isto é, a Sabedoria Divina, pela qual toda a verdade é iluminada.”
Leonardo de Pisa
A busca de uma estrutura eterna e imutável da realidade é uma constante na história humana. Na Grécia Antiga, Parmênides de Eleia (c. 515 a.C. – c. 450 a.C.) acreditava que a realidade verdadeira era imutável, eterna, atemporal e una. Segundo sua filosofia, o mundo dos sentidos era apenas uma ilusão, enquanto a verdadeira realidade era alcançada somente através da razão. Parmênides acreditava que a única coisa que realmente existia era o Ser Uno, imóvel e eterno, que não pode ser dividido ou mudado. “Não há nascimento nem morte, nem é mutável a aparência, mas é uma única e mesma realidade, que se estende por si própria”, dizia a respeito da unidade e da eternidade do Ser.
Parmênides entendia que toda a mudança se dá dentro de uma estrutura eterna e imutável que com ela se confunde, porque nada pode estar fora do Ser. “O Ser é, e o Não Ser não é”, resumia. Parmênides via a matemática e a geometria como formas de se apreender a imutabilidade do Ser. A matemática e a geometria, para o filósofo pré-socrático, eram disciplinas que lidavam com conceitos e objetos universais e necessários, que eram imutáveis e independentes do espaço e do tempo.
Mais de um milênio e meio teriam de se passar, contudo, até que a matemática humana se desenvolvesse a ponto de dar indícios que justificassem a visão que Parmênides expunha do cosmos. Em 1202, Leonardo de Pisa (c. 1170 d.C. – c. 1240 d.C.), também conhecido como “Fibonacci”, considerado o mais talentoso matemático da Idade Média, publicou o seu famoso Liber Abaci, ou “Livro do Ábaco”, obra seminal que introduziu o sistema numérico indo-arábico na Europa e que apresentou a solução para vários problemas matemáticos que intrigavam os estudiosos. O livro de Fibonacci representou, de fato, uma das maiores revoluções no pensamento ocidental, possibilitando, pela introdução do novo sistema numérico, o desenvolvimento de toda a tecnologia do ocidente até os dias atuais.
Fibonacci era filho de um diplomata, Guglielmo Bonacci, e havia acompanhado o seu pai em um posto em Bugia, na Algéria, onde Guglielmo servira como cônsul de Pisa. Lá, Fibonacci travou contato com Abu Masha’ar, um renomado matemático árabe que lhe apresentou o sistema numérico indo-arábico, para sua total maravilha, ele que, como de resto toda a Europa, conhecia apenas os algarismos romanos, com os quais é incomparavelmente mais difícil de trabalhar. O contato inspirou Fibonacci a viajar por todo o Mediterrâneo buscando conhecimento de matemática e inspirando-o a escrever o Liber Abaci, que acabou chamando à atenção do Imperador Frederico II. Frederico, assim, convidou Fibonacci a vir à corte em Palermo e encomendou outros estudos, como o Liber Quadratorum, que Leonardo dedicou ao Imperador.
Um dos aspectos mais fascinantes da obra de Fibonacci é o problema dos pares de coelhos, cuja solução deu origem à famosa série de números que leva o seu nome. Suponha a leitora que um casal de coelhos comece a se reproduzir no início de um determinado mês e que, a partir do segundo mês, cada par de coelhos gerados produza um novo casal por mês. Os coelhos nunca morrem e a reprodução ocorre sempre no início de cada mês. Quantos casais de coelhos existirão após um ano, ou 12 meses?
Para responder a essa pergunta, Fibonacci criou uma sequência de números em que cada número é a soma dos dois números anteriores na sequência. A sequência começa com 0 e 1, e os primeiros números da sequência são: 0, 1, 1, 2, 3, 5, 8, 13, 21, 34, 55, 89, 144 e assim por diante. Cada termo na sequência representa o número de casais de coelhos no início do mês correspondente.
Assim, sabemos que após 1 mês, haverá 1 casal de coelhos (o par original). Após 2 meses, haverá 1 casal de coelhos novamente, pois o casal original ainda não se reproduziu. Após 3 meses, o casal original terá gerado um novo casal, então haverá 2 casais de coelhos. Após 4 meses, o casal original terá gerado outro casal e o casal de coelhos gerado no mês anterior também terá gerado um novo casal, então haverá 3 casais de coelhos. Continuando com esse padrão, podemos calcular que após 12 meses, haverá 144 casais de coelhos.
Esta sequência é conhecida como a Sequência de Fibonacci e, de uma maneira absolutamente fascinante, ela representa um padrão geral da realidade, verificável em praticamente todas as áreas, incluindo biologia, física, finanças e arte. A Sequência de Fibonacci está presente, por exemplo, nas espirais de conchas, nas pétalas das flores, nas folhas das plantas, na estrutura das galáxias e até mesmo no nível microscópico do DNA. Essa regularidade encontrada na natureza pode ser vista como um indício de ordem e estrutura perenes no universo, tal qual ensinava Parmênides no quinto século antes de Cristo.
Se a sequência de Fibonacci apresenta uma estrutura matemática que se repete e que pode ser encontrada em diversas formas na natureza, o campo do Direito, logicamente, não poderia ser uma exceção. Como já bem demonstrado por Hans Kelsen, o Direito é uma estrutura lógico-normativa que serve de estrutura organizacional da sociedade. A Série de Fibonacci indica que há na estrutura da realidade uma medida justa, um senso de proporção correto, do qual o Direito tem de ser necessariamente um elemento derivado e subordinado a ele. Do contrário, o Direto se afasta da estrutura da realidade, tornando-se ou injusto ou letra morta. A “mera folha de papel”, desprovida de poder normativo real, de que falava Ferdinand Lassalle.
Nesse sentido, o papel do jurista, do operador do Direito, está menos no de criar normas para influenciar na evolução da moldura da realidade, para construir “um mundo melhor”, e mais no de descobrir, de desenterrar o Direito, que pré-existe ao homem como estrutura perene e imutável e da qual ele não pode escapar sob pena de cair em desgraça. O labor do jurista está em descortinar, em apresentar o Direito em uma resolução cada vez mais alta, com uma sutileza cada vez mais sofisticada de detalhes, de nuances e, por vezes, de contradições mesmas, que só podem ser sanadas pela aplicação cautelosa e humilde da experiência real do homem no Ser.
A ação jurídica, assim, é tanto mais verdadeira quanto mais próxima da sua acepção clássica, comum tanto para os romanos quanto para os anglo-saxões, de descortinar, de desenterrar uma estrutura normativa anterior. O trabalho do jurista, por conseguinte, é o de descobrir o Direito e encontrar a justa proporção de sua aplicação, o de mensurar a “proporção áurea” – que é um conceito ao qual retornaremos futuramente nesta coluna – exigida pela Justiça à aplicação da norma ao caso concreto.
A revolução napoleônica, assim, a da imposição de um Direito abstrato, racionalista, criado por assembleias legislativas e imposto de cima – o Direito dos códigos – aparece como um erro, como uma revolta do ser humano, do espírito de Caim, contra a estrutura da realidade, recusando-se a buscar o Direito de maneira empírica e com a humildade de quem se reconhece como parte do Ser e não como dono dele. O verdadeiro Direito está escondido nas pedras, no ar, no fundo das águas. Esperando para ser descoberto. Jamais na húbris da vaidade humana.
No âmbito do Direito Internacional, o reconhecimento da existência de uma estrutura regular e perene demonstrada pela Série de Fibonacci é ainda mais importante. Nos últimos dois séculos o Direito das Gentes abandonou a busca pelos seus fundamentos nas relações de proporção matemática que representam a justa medida da estrutura do cosmos para se justificar ou na vontade nua e crua dos Estados ou, no que talvez seja muito pior, na pretensão demoníaca de ser o internacionalista o porta-voz e representante único do Direito Divino, incautamente confundido com o Direito Natural e, por vezes, batizado com a alcunha presunçosa de jus cogens.
O resultado dessa atitude arrogante em face da realidade, cara leitora, foi a maior carnificina da história da humanidade, materializada, principalmente, em duas absurdas guerras mundiais. E a estrutura erigida ao final delas, no pós-guerra, a partir de 1945, como demonstramos em nosso último livro “Centelhas de Tempestade: A Diplomacia em um Mundo em Transformação” (Saraiva), foi o sistema mais irrealista – ainda que ingenuamente batizado de “idealista” – jamais concebido pela mente humana. O atual sistema internacional padece de uma crise insanável de legitimidade que, se não enfrentada a tempo, terminará por condenar a humanidade a uma Terceira Guerra Mundial, com grande probabilidade de se tornar termonuclear. Deus – e não o homem – é a medida de todas as coisas. Omne quippe superbum malum, immiti deorum iudicio stratum est.[1]
[1] Pois todo mal orgulhoso, pela sentença implacável dos deuses, é destruído.