Educação & Cultura
Dia das Mães vs. Dia da Família: como promover celebrações mais inclusivas
Diante da diversidade de arranjos familiares, é preciso reavaliar datas que comemoram figuras maternas ou paternas e deixar de lado estereótipos
O formato das famílias brasileiras mudou muito nas últimas décadas. Alterações comportamentais, culturais, socioeconômicas e até nas leis – como a do divórcio e o reconhecimento de uniões estáveis homoafetivas – têm moldado novos modelos nucleares para além da configuração mãe, pai e filhos – representação, aliás, que há 10 anos incluía 58% das famílias e hoje retrata 42,9% delas, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015.
O mesmo estudo mostra que mães solos, isto é, aquelas inteiramente responsáveis pela criação de seus filhos, representam 26% das famílias, enquanto só 3% são formadas por homens e seus filhos. Casais héteros sem filhos por opção somam 19,9% deste universo. Já as chamadas famílias reconstituídas ou recompostas, em que filhos moram com seu pai ou mãe e madrasta ou padrasto, somam 16,4%.
Há ainda o início da inclusão nas estatísticas dos casamentos homoafetivos, que indicam que eles devam representar cerca de 1% das uniões registradas no país atualmente, algo em torno de 9 mil casamentos por ano; chegando a cerca de 58 mil casais. Vale lembrar que esses números são estimados já que, por medo da homofobia, muitos não declaram publicamente ou para os institutos suas relações e o formato de suas famílias.
Diante de tantas mudanças, a escola deve refletir sobre novas práticas pedagógicas para acolher as formas variadas de famílias, inclusive, aquelas marcadas pela ausência do pai e/ou da mãe, seja porque as crianças são órfãs ou porque um dos genitores não é presente. Em movimentos concretos, algumas instituições já substituíram o Dia das Mães e o Dia dos Pais por celebrações mais amplas, com foco nas famílias.
Há cerca de sete anos, a E.E. Alvino Bittencourt, localizada na zona leste de São Paulo (SP), trocou as duas datas tradicionais pelo chamado Dia de Quem Cuida de Mim. Em dois dias do ano, a escola programa atividades voltadas para todos os cuidadores dos alunos, inclusive para aqueles que participam da sua vida mesmo sem possuírem laços de sangue.
“A gente observava que as crianças ficavam muito fragilizadas nessas datas. Víamos a tristeza das que não tinham pai ou mãe nos eventos que deveriam ser de festa”, recorda a diretora Simone Lopes Guidorizzi.
A gestão aproveitou então as mudanças na escola trazidas com o ingresso no Programa Ensino Integral (PEI), que já previa uma série de revisões no currículo, para implementar outra concepção das datas dentro do calendário escolar. “A recepção sempre foi muito boa. Como a escola passou também a se dedicar ao trabalho com habilidades socioemocionais, que é uma das premissas do programa, a aceitação das famílias [sobre o novo formato das celebrações] foi tranquila”, avalia a diretora.
Simone conta que as festas são abertas para todos da comunidade. “Inclusive, se algum familiar não puder vir, outro adulto que estiver presente poderá ‘adotar’ o aluno nas atividades, brincadeiras ou oficinas, por exemplo”, explica.
As celebrações do Dia de Quem Cuida de Mim, que tem até uma música própria na unidade, começam a ser pensadas desde o início do ano letivo, quando a gestão atualiza seu mapeamento com informações sobre as famílias dos estudantes matriculados – quem participa da vida deles, quem está fazendo falta, quais composições existem em casa, etc.
“Desde o começo do ano, aproveitamos para abrir o diálogo com as famílias e alunos sobre como essas festividades são importantes para valorizar a diversidade e a inclusão”, conta Simone. “A representação familiar mudou e nós estamos abraçando as pluralidades que estão aí, que existem”, completa.
Na Escola Municipal Dr. José Tavares, localizada em Campina Grande (PB), o Dia da Família foi implementado há dois anos e passou a concentrar a celebração de várias datas – Dias das Mães, dos Pais e dos Avós. “As famílias toparam o projeto e acharam bem significativo ter uma comemoração com esse formato, porque ninguém fica de fora”, conta a supervisora escolar Cristiane Verônica Marques de Lima.
A festa é grande, com direito à apresentação da orquestra filarmônica da cidade, cantoria e uma feijoada compartilhada com todos da comunidade escolar. No ano passado, foram mais de 700 pessoas presentes, sendo que a unidade atende 282 alunos.
“Recebemos relatos de famílias que buscaram matricular os filhos na nossa escola também pelo novo formato de celebração, por sofrerem muito nessas ocasiões de festas com ausências de pai ou mãe, pelos mais variados motivos”, relata a diretora Aliny Guedes de Andrade.
Entender e refletir a própria comunidade
Segundo Gina Vieira Ponte, especialista em Desenvolvimento Humano, Educação e Inclusão Escolar, que atuou como professora da Educação Básica por mais de 30 anos, no cerne desta revisão está a necessidade de inclusão.
“A pergunta é: a maneira como eu, escola, estou trabalhando essas datas provoca sentimento de pertencimento, de coletividade, ou provoca segregação e estigmatização? Faz com que as crianças se sintam estereotipadas, excluídas e estigmatizadas? Essas reflexões devem orientar a maneira como a escola vai construir esse trabalho”, afirma.
Para ela, quando a escola coloca o foco exclusivamente em uma única configuração familiar pode reforçar a mensagem de que apenas um formato é válido e superior a outros. “Quando, pelo contrário, todas as formas de organização familiar são válidas e importantes”, diz.
Na avaliação da educadora, para romper com a visão engessada dessas celebrações, a escola precisa se guiar por princípios pedagógicos orientados a partir da diversidade e trabalhados sempre em diálogo com o perfil daquela comunidade. “Não existe abordagem pedagógica sem conexão com o território, com a identidade local, e com a história de cada estudante”, resume.
É esse diálogo que possibilita à escola trabalhar a diversidade de forma mais orgânica e fluida, rompendo com o que chama de “pedagogia de eventos” e trazendo intencionalidade pedagógica para esse novo olhar sobre a celebração de quem cuida do aluno.
“No lugar de partir da categoria ‘mãe abstrata’, suspensa no ar, que tem um sentido cristalizado na cultura, que tal trabalhar o sentido de cuidados que as crianças enxergam? Que tal fazer uma roda de conversa com os estudantes para falarem sobre as suas relações familiares? Sobre quem cuida deles, quem está presente no dia a dia, quem mora na mesma casa?”, indica.
Oportunidade para integrar as famílias à escola
Na EMEI Pérola Ellis Byington, localizada na zona norte de São Paulo (SP), a elaboração das atividades do Dia da Família não é imposta aos alunos, mas co-construída ao longo do ano.
“Os temas não são impostos de cima para baixo. As turmas vão construindo o que pode culminar em oficinas ou atividades que vão ser feitas nesses dias. A ideia é promover uma integração das famílias com a rotina escolar”, explica a diretora Fabíola Matte Bergamin.
A unidade segue o calendário oficial municipal paulistano, que recomenda dois dias letivos para atividades relacionadas ao Dia da Família. “Está no calendário, mas é abrangente e leva em conta a autonomia das escolas para organizar da melhor forma, entender o que é mais relevante para aquela comunidade”, pontua.
Organizada em salas multietárias, com crianças de 4 a 6 anos, totalizando 230 estudantes matriculados, a escola conta com muita área verde, o que já possibilitou celebrar os dois dias dedicados à família com atividades na horta e de pintura nos pátios ao ar livre.
“Normalmente, são tarefas que as crianças já vêm trabalhando cotidianamente na escola, que elas comentam em casa, e que são então compartilhadas com as famílias nessa experiência dentro da escola”, conta. “É diferente de fazer uma atividade imposta, muito descolada das atividades que estão sendo trabalhadas na rotina e que a criança pode até não entender.”
Desconstruindo estereótipos
No Brasil, o Dia das Mães foi criado por decreto presidencial na década de 1930. Mais adiante, na década de 1950, foi a vez do Dia dos Pais, surgido de uma ação publicitária.
Apropriadas pelo comércio e desenhadas segundo os valores desses períodos, as duas datas passaram a retratar uma idealização das figuras maternas e paternas, fixadas até hoje no imaginário coletivo, com a mãe dedicada ao cuidado da família e o pai provedor financeiro do lar.
“No lugar de reverberar esses discursos que reforçam estereótipos de gêneros, a escola poderia falar sobre a importância das famílias como o lugar onde o estudante constrói seu pertencimento e identidade, onde acessa a própria história”, avalia a educadora Gina Vieira Ponte.
Para Mariana Braga, oficial de programa do setor de Educação na UNESCO no Brasil, não adianta apenas excluir as datas tradicionais do calendário e substituí-las pelo Dia da Família sem fazer essa discussão sobre estereótipos e papéis sociais.
“A escola tem um papel importante na desconstrução de estereótipos e de práticas, inclusive pedagógicas, que podem ser revistas e atualizadas de acordo com a realidade”, diz. “Não celebrar o Dia das Mães não significa não reconhecer o papel da mãe, mas discutir pedagogicamente o papel da mãe, da cuidadora ou do responsável pelo cuidado daquele estudante”, complementa.
A especialista recorda que a temática da diversidade já foi destacada, em 2010, pela Unesco quando estabeleceu os quatro pilares da educação – aprender a aprender, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. “Aprender a conviver significa entender os contextos familiares em que essa escola está inserida, entender que tem vários arranjos de família, mães solos, mãe em casais homoafetivos, entre outros”, avalia.
Esse processo, no entanto, requer tempo. “Não é de uma hora para outra que ações envolvendo diversidade serão recebidas de forma pacífica. São muitos conteúdos envolvidos, de ordem emocional, de ordem religiosa, de ordem cultural”, alerta Edna Bittelbrunn, psicóloga, professora adjunta de Psicologia da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e doutora pelo Programa de Pós-graduação em Educação e Contemporaneidade na mesma instituição.
Para a especialista, um caminho para as escolas discutirem o tema em comunidades que se mostram resistentes à mudança nas celebrações é convocar todos os cuidadores para o diálogo e mostrar como todos os arranjos das famílias são diversos, em muitos aspectos.
“A escola deve ter conteúdos vivos e não irreais. Se a escola costuma fazer uma revisão de conteúdos, de tecnologia, nas formas de se comunicar, ela também deveria pensar que a realidade latente é de famílias diversas. Inclusive, muitos professores provêm desses núcleos diversos: foram criados somente por mães, avós, nem sempre tiveram a família nuclear”, aponta.
Além disso, a participação das famílias na vida escolar dos filhos não pode estar circunscrita a essas datas. “[A família] precisa ser uma constante no processo pedagógico de ensino-aprendizagem. De que forma essa escola se preocupa em dialogar com a comunidade? De que forma as famílias se comunicam sobre o conteúdo que está sendo praticado na escola? Essa relação precisa ser muito efetiva para garantir o direito à educação dessas crianças e desses adolescentes, em todos os níveis”, afirma Mariana.