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Educação & Cultura

O que é e como construir um currículo decolonial?

Documento ajuda na implementação de uma educação antirracista e norteia práticas pedagógicas que levam em conta as diversidades históricas e culturais

A respeito da realidade histórica brasileira, configurou-se, por volta do século XV, na modernidade, um pensamento centrado na ideia de que os diferentes povos formadores da sociedade eram percebidos por suas diferenças raciais e por elas eram hierarquizados, bem como seus saberes e práticas culturais. Assim, aprendemos a valorizar a cultura europeia e, mais recentemente, a cultura estadunidense como ideal a ser seguido nos padrões culturais, estéticos, econômicos, políticos, filosóficos, dentre outros. Dessa forma, marginalizamos, muitas vezes sem perceber, as culturas africana, afro-brasileira e dos povos indígenas.

Diante disso, como fazer para que aprendamos com a diversidade? Como construir um currículo decolonial, que se torne dispositivo de superação dos valores da colonialidade, promovendo uma Educação Antirracista? Primeiramente, caros colegas, precisamos entender o que é a colonialidade. Você conhece o termo ou já pensou sobre ele nas suas práticas? 

A história brasileira está atrelada ao processo de colonização portuguesa, mas hoje em dia não somos mais colônia de Portugal. Entretanto, se nosso comportamento e cultura ainda carregarem os valores da época, chamamos essa situação de colonialidade. Ao experienciarmos o racismo, estamos vivenciando um valor da colonialidade, por exemplo. O fato de insistirmos em refletir pela lógica do colonizador, nos faz ter uma postura colonial. Ter um posicionamento decolonial, por sua vez, significa estar contra essas lógicas e valores.

Colegas educadores, pensando nos currículos escolares com os quais já trabalharam, conseguem observar essa lógica colonial? Não é difícil, não é? Afinal, os currículos ainda trazem o pensamento cultural/civilizador europeu como exemplo universal para a humanidade que, na verdade, é muito diversa e não pode ser explicada unicamente pela história de experiência europeia.

Contudo, as interpretações feitas ao longo da história da humanidade racializaram o pensamento europeu enquanto racional/científico/contribuidor e dos outros povos como inferiores e sem possibilidades de contribuição. Diante disso, o elemento racial branco foi interpretado como o “eu” ideal a ser seguido, enquanto os demais grupos e seus saberes não foram valorizados na lógica binária moderna como contribuidores da diversidade.

Um currículo que atende às práticas ocidentais de escolarização, acaba sendo um dispositivo da racionalidade moderna, ou seja, mantém saberes e conteúdos identificados com a história e a memória do ocidente epistemológico europeu com seus atributos coloniais.

Estereótipos e história única

Exemplos curiosos são evidenciados quando nos referimos à história política da antiguidade egípcia e falamos dos faraós com dificuldade de imaginá-los como pessoas negras. Ou quando falamos da história do progresso e apenas identificamos prosperidade econômica no continente europeu, ou ainda quando fica difícil imaginar filosofia africana quando aprendemos, erroneamente diga-se de passagem, que a filosofia nasceu na Grécia.

Pela experiência que trago da sala de aula, é muito comum observar impressões negativas ou estereotipadas sobre a África. Quando pergunto aos meus alunos o que eles conhecem sobre o continente africano, percebo nas falas a demarcação de um senso comum que imagina uma África marcada pela pobreza, pelo atraso econômico e  por guerras. Essa é uma versão restrita, que deixa de lado as contribuições dos povos africanos para a humanidade. Seria o que a escritora Chimamanda Adichie falou sobre “o perigo da história única”, que é quando se conhece um dado histórico e ele é colocado como única forma de conhecer algo, ou seja, quando se universaliza um determinado conhecimento.

Para ilustrar o que estou contando aqui, trago uma experiência com minhas turmas e você já vai entender. Certa vez, queria iniciar o conteúdo sobre a temática Povos Africanos, então apresentei imagens atuais de algumas cidades do continente africano sem revelar quais eram. Escolhi imagens de cidades belíssimas que mostravam uma paisagem urbana muito moderna. Então, perguntei de que continente poderiam ser aquelas cidades e, facilmente, mais da metade da turma respondeu: europeu. Quando eu contei que todas ficavam no continente africano, os alunos ficaram boquiabertos e se perguntaram como poderia ser, porque na imaginação deles – mas não só deles -, a África foi inferiorizada. Veja as imagens abaixo e experimente fazer o mesmo com seus alunos!

Luanda, Angola.
Lagos, Nigéria.

Currículo como dispositivo de tomada de decisão

Diante desses exemplos, diagnosticamos um currículo fechado ao diálogo com a diversidade, pois, por mais que se queira afirmar a diversidade, ainda falamos de uma educação que estimula um caráter universal nas relações, em que todos são entendidos como iguais, apesar de não serem tão iguais e tampouco o são tratados como tal.

Gosto de citar a tese do professor Gustavo Gomes, de 2019, quando ele diz que o currículo é um recurso oficial no campo educacional que define um projeto educativo, ou seja, é um documento que seleciona e organiza conteúdos, produz diretrizes pedagógicas tendo portanto como função a formação dos sujeitos e, nesse sentido, podemos dizer que é um dispositivo de tomada de decisões pedagógicas. Por isso, é importante construir um documento pensando sobre essas questões.

Imagine o seguinte: um currículo escolar sobre a historiografia afro-brasileira, em que o professor de História recebe a seleção de conteúdos a serem trabalhados em sala de aula. Contudo, esse professor insiste em utilizar como fonte para suas aulas materiais que reforçam estereótipos ou romantizam versões da história afro-brasileira, sem considerar a compreensão e a problematização dos valores, dos saberes e dos fazeres de diferentes grupos sociais e raciais. Imaginou? Esse professor acaba mantendo um currículo etnocêntrico evidenciando valor apenas na história e cultura dos povos europeus.

Um bom exemplo disso seria a abordagem da História da Escravização Negra na América, que é um processo histórico, mas não contempla toda a herança dos negros em diáspora. Quando um professor apenas constata a escravidão nas Américas, ele não está desenvolvendo um currículo decolonial. Para isso, ele precisaria falar das estratégias de superação que os próprios negros adotaram para conquistar a liberdade do sistema escravista, por exemplo. 

Trata-se de não contar apenas a história da escravidão afro-brasileira pelos vieses da dor dos negros, pois isso reforça o poder dos europeus colonizadores, inibe no aluno negro a vontade de querer pertencer de alguma forma a uma narrativa que reforça o sofrimento, além de criar uma representatividade de pessoa-objeto a serviço dos brancos. É fundamental evidenciar as histórias de lutas e resistências que apresentam o protagonismo negro e também dos povos originários.

Currículo decolonial e educação antirracista

Um currículo decolonial combate a visão de mundo hegemônica, excludente, que impede a aprendizagem sobre a diversidade das histórias e culturas dos diferentes povos.

Um currículo decolonial busca superar um hiato narrativo em histórias e culturas que são negadas ou sofrem tentativas de apagamento, pois com o documento se quer criar não apenas noção da diversidade de conteúdos, mas noção da existência em si, ou seja, noção das diferentes existências dos grupos humanos e suas subjetividades.

Para tanto, é importante construir um documento expansivo que oportunize a inserção de reflexões sociais, raciais e culturais diversas, questionando a postura de neutralidade preservada nos currículos tradicionais. 

Ao planejar suas aulas, o professor deve ter atenção quanto ao conteúdo a ser estudado, observando se ele refere-se a uma visão de mundo hegemônica, excludente, que impede a aprendizagem sobre a diversidade das histórias e culturas dos diferentes povos. Para isso precisamos:

  • reconhecer o racismo enquanto um problema social;
  • refletir sobre o racismo e as interseccionalidades que o cerca;
  • ter um comportamento antirracista o tempo todo;
  • repudiar qualquer atitude racista no espaço escolar;
  • ter o cuidado nas relações entre diferentes grupos raciais;
  • reconhecer os saberes de diferentes culturas e ensinar histórias de resistência, promovendo o olhar crítico e consciente da história dos diferentes povos que compõem a sociedade brasileira.

Seguindo as orientações anteriores, percebemos que para um currículo decolonial ser possível é preciso que haja interesse, empatia e posicionamento dos sujeitos integrados na condução do processo educacional, ou seja, toda equipe pedagógica.

Se é possível ver constituída no Brasil uma educação democrática em que todos possam usufruir do bem-estar social e educacional, é necessário construir um currículo diverso. Nesse sentido, é importante que os professores possam criar, mediar, disputar espaços de conscientização em prol das diversidades, pois a prática pedagógica decolonial possibilita aprender com diferentes culturas, além de permitir entender como as culturas dos diferentes povos se comunicam.

A comunicação entre culturas ensina a valorização do diálogo entre diferentes grupos raciais, mostrando o quanto cada grupo, por meio de sua história coletiva, deixou um legado para a humanidade. Sabendo-se disso, entende-se a legitimidade da diversidade como um elemento que nos constitui os seres humanos, abrindo espaço para a interação, a curiosidade do conhecer e a naturalidade do entendimento de que somos uma pluralidade. Uma aula comprometida com esse propósito, prioriza todos os grupos enquanto contribuidores do conhecimento do sistema-mundo, qualificando outros tantos conhecimentos realizados e deixados por tantos povos.

Cuidado com a pedagogia decolonial ‘nutella’

Contudo, educadores, cuidado com a pedagogia decolonial de estilo “nutella” que não altera, de fato, a estrutura da aprendizagem. Neste perfil curricular, a forma de ensinar apenas reconhece os problemas que a colonização trouxe para as sociedades, como por exemplo o racismo, sem levantar questionamentos que provoquem superação dos problemas, não desenvolvendo uma educação libertária, democrática e decolonial. Para isso, é preciso se precupar constantemente em se comportar de maneira antirracista, entendendo que o saber escolar é uma construção coletiva, promovida pelo diálogo da turma diante a mediação intelectual do professor. 

Assim, convido a todos a fazer da sala de aula um espaço acolhedor, com regras estabelecidas em conjunto com a turma, e os conteúdos abordados evidenciando de forma positiva a diversidade, provocando reflexões que não terminam ao final das aulas, mas que continuam nas conversas dos corredores ou no recreio.

Lavini Castro é educadora antirracista. Doutoranda em História Comparada pelo PPGHC/UFRJ. Mestre em Relações Étnico Raciais pelo PPRE/CEFET-RJ. Historiadora pela UFRJ. Professora de História do Ensino Fundamental e Ensino Médio das redes pública e particular do estado do Rio de Janeiro. Idealizadora e coordenadora da Rede de Professores Antirracistas. Ganhadora do Prêmio Sim à Igualdade Racial do ID_BR em 2021.

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